Neste momento de luto, enquanto processamos os acontecimentos e fazemos o nosso melhor para re-existir na atmosfera sombria pós-eleitoral do Brasil, o SPW traz de volta para nossas telas três artistas que usaram a sua arte, corpos e palavras para abrir espaços, ainda que estreitos, durante os sombrios dias da ditadura militar (de 1964 a 1985).
Foi quando “a arte deixou os museus, foi às ruas e foi transcrita mesmo nos corpos dos artistas”, nas palavras da historiadora de arte Claudia Calirman. No início dos anos 1970, a pintura e a escultura deram lugar à performance, que assumiu o palco principal da expressão artística por causa de sua efemeridade, já que tornava mais fácil driblar a censura contra o que foi escrito, esculpido ou pintado. Corpos e ruas tornaram-se as telas onde a denúncia da violência do Estado e a nostalgia da liberdade se manifestaram artisticamente em intervenções surpreendentes e fugazes.
“O corpo é a obra”, de Antonio Manuel (1970)
Em 1970, o projeto de Antonio Manuel “O corpo é a obra” foi rejeitado pelo Salão Nacional de Arte Moderna no Museu de Arte Moderna (MAM), no Rio de Janeiro.
Em resposta, Manuel apareceu nu na vernissage de abertura do Salão no MAM, cujo projeto foi mais tarde reconstruído como um ato, em uma instalação de fotos chamada “Corpobra”.
“Trouxas ensanguentadas”, de Artur Barrio (1970)
Artur Barrio explorou a precariedade, para evocar o conceito de Butler, a fim de se referir a tudo o que deixamos de lado: formas e materiais negligenciados pelos critérios estéticos promovidos pelo establishment da arte do “primeiro mundo”.
O uso de tais materiais também evocava os mortos e os assassinatos da repressão letal do Estado. Ele encheu trouxas com pregos, ossos, lixo, sangue, comida, cabelo, borracha, urina. As trouxas eram deixadas em espaços de despejo, como esgotos, becos e córregos.
Seu trabalho provocava tanto curiosidade quanto repúdio no público. E, como também aconteceu com os restos de repressão deixados nas ruas, as trouxas eram frequentemente recolhidas pela polícia para investigação.
“Inserção em circuitos ideológicos”, de Cildo Meirelles
A série “Inserções em circuitos ideológicos”, desenvolvida pelo artista Cildo Meireles, buscou explorar as alternativas artísticas e de comunicação para provocar verdadeira guerrilha contra a ditadura e contra as relações econômicas mais amplas, que inclusive apoiavam o governo autoritário militar.
Nesta série, Meirelles logrou inserir a contestação em ampla circulação na sociedade, usando notas de dinheiro e garrafas de Coca-Cola. O caminho e propósito utilizados por Meirelles subverteu o significado original destinado a esses objetos/plataformas.
As notas foram carimbadas com denúncias de crimes de Estado e as garrafas foram impressas com mensagens como “Yankees, voltem para casa”, uma receita para fazer um explosivo doméstico do tipo Molotov e outros textos abordando o imperialismo dos EUA e a troca global de mercadorias.
Uma nota usada de Cruzeiro (a moeda na época) foi carimbada com a pergunta: Quem matou Vladimir Herzog ? Vladimir Herzog foi um jornalista assassinado durante uma sessão de tortura, cuja morte foi negada pelas autoridades da época.
Vale a pena mencionar que, por absurdo que pareça, em 2018 a prática de tortura perpetrada durante os anos militares é mais uma vez negada pelo recém-eleito presidente e por seus partidários.