por Jaime Barrientos
O Chile começa o ano de 2018 com a visita do Papa Francisco. O país ainda se lembrava da visita realizada por João Paulo II em pleno período militar, quando convocou milhares de pessoas às ruas de todo o país, que por sua vez saíram em massa para receber o pontífice. No entanto, neste ano de 2018, as coisas seriam completamente diferentes da visita anterior. A Igreja Católica chilena receberia o atual pontífice no meio de uma grave crise de credibilidade devido à gestão, por parte da hierarquia, das alegações de abuso sexual por parte dos padres. A crise chegaria ao auge quando, em maio de 2018, toda a hierarquia seria convocada ao Vaticano para refletir sobre a crise e seu alcance. Até aquela data, a Igreja Católica do Chile nunca havia vivido momentos tão negativos. Dias depois dessa reunião, os trinta e quatro bispos apresentariam uma carta de renúncia ao papa.
A maioria dos chilenos se lembra do papel fundamental desempenhado pela Igreja Católica durante a ditadura, que protegeu muitos homens e mulheres perseguidos pelos militares. Uma vez devolvida a democracia, a Igreja também desempenhou um papel importante na vida social e política nacional, muitas vezes retardando os avanços pela conquista de direitos. A Igreja era vista como um interlocutor válido e legítimo da classe política dominante, uma vez que muitos políticos receberam proteção e apoio durante a época de Pinochet.
Assim aconteceu desde os anos 90 até a aprovação da lei do divórcio em 2004. A Igreja era apreciada e ouvida e seus argumentos eram muitas vezes utilizados no debate público nacional. No entanto, nesse mesmo ano de 2004, várias denúncias foram apresentadas contra o padre Fernando Karadima, líder espiritual e educador de muitos jovens da classe mais alta do país. A partir de então, várias denúncias começam a ser feitas lentamente contra os padres. Alguns alcançaram visibilidade pública, mas a maioria não.
Assim, chegamos ao ano de 2018, quando o país começou a ouvir, paralelamente ao movimento #MeToo liderado por universitárias chilenas, um conjunto de novas queixas contra vários padres em todo o país. Estas se apresentam contra membros da Ordem Marista, mas também da Ordem Jesuíta, e estão sendo contestadas pelos acusados. No entanto, as denúncias continuam a emergir. Agora, o tratamento desses casos pela hierarquia religiosa também começa a ser questionado. Há, pela primeira vez, uma enorme pressão e contestação sobre a prática de encobrimentos realizados pela hierarquia, ampliando os alvos contra a Igreja. Inclusive critica-se como o Papa lidou com o caso do renomado bispo Juan Barros, acusado de encobrir o padre Karadima, quando fora perguntado sobre isso durante sua visita ao Chile e respondeu de forma ríspida, protegendo Barros.
Paralelamente, no mesmo ano de 2018, a atriz trans Daniela Vega, estrela do filme “Uma mulher fantástica” exalta o país nas premiações de Hollywood, quando o Chile, pela primeira vez, ganha o Oscar de melhor filme em língua estrangeira. O termo “trans” passa a ocupar as primeiras páginas de jornais, TVs e rádios. A visibilidade das pessoas transgênero está em toda parte enquanto se discute a lei de identidade de gênero. E a Igreja, que havia até então participado pouco no recente debate a favor e contra leis, se pronuncia sobre o tema trans. O bispo da cidade de Santiago, a figura mais alta na hierarquia da Igreja Católica nacional, Ricardo Ezzati, quando perguntado sobre o direito dos transexuais a mudar seu nome legal e sexo, declara que “além do nominalismo, devemos olhar a realidade das coisas. Não é porque a um gato o nomeio cão, que este passa a ser cão (…) A questão fundamental não é apenas a idade, é algo mais profundo.”
As críticas se intensificam e vem de todos os lados fulminando o bispo, que dias depois tenta se retratar. As críticas vêm inclusive de dentro da própria igreja, criticando a sua falta de tato e inépcia. Pouco tempo depois, o Ministério Público Nacional, que investiga as acusações contra os padres, convoca Ezzati a depor, acusado de encobrimento de abuso sexual. Esse seria um dos momentos mais difíceis que a Igreja Católica do Chile alguma vez imaginou viver. O chefe máximo da Igreja Católica do Chile está sendo investigado e questionado. Ao mesmo tempo, o promotor que investiga as alegações de abuso sexual nos casos da Igreja chilena contra os padres declara que as evidências dos casos de abuso foram destruídas. Em outras palavras, o encobrimento seguia um método teria sido organizado.
Até agora, o ano de 2018, de acordo com um recente “desastre” emitido pela Procuradoria Nacional, há um total de 158 bispos, sacerdotes e laicos que foram ou estão sendo investigados por abuso sexual no Chile desde 1960. Além disso, a Procuradoria alega que tem certeza de um total de 266 vítimas, 178 delas são crianças e adolescentes de crimes perpetrados por membros ligados à Igreja Católica, e mantém abertas 36 investigações, enquanto 108 já terminaram. A Igreja Católica Chilena vive os momentos mais sombrios de sua história. E o silêncio é quase total. O Gabinete do Procurador continua com a investigação e dá prosseguimento às diligências do processo. Além disso, a crítica negativa à Igreja é relativamente unânime e, pela primeira vez, surpreendeu o país assistir a uma igreja em silêncio. Alguns padres pedem uma renovação total da hierarquia. O Papa todavia não decidiu sobre o estado de vários dos bispos que apresentaram suas renúncias durante a sua visita ao Vaticano em maio.
O país, no entanto, segue o seu caminho. Em 2018, o presidente Sebastian Piñera (centro-direita) assume pela segunda vez o mandato do país, avançando as políticas neoliberais. Além disso, atualmente discute-se a aprovação da lei de identidade de gênero e o movimento feminista exige uma ampliação das três causas previstas pela lei do aborto, cuja demanda foi recebida com muita violência por parte de grupos de extrema-direita no dia 25 de julho. Neste dia, três mulheres foram violentamente agredidas e apunhaladas, um feito inédito nas mobilizações anteriores no país. Ainda mais grave, esse acontecimento tentou ser justificado por alguns grupos, outra primeira vez para o país.
Enquanto isso, a Igreja Católica que anteriormente se opunha tanto à conquista de direitos, hoje não consegue sequer levantar a cabeça, articular a sua voz ou se opor aos novos direitos para chilenos e chilenas. A diferença do ocorrido em outros países, o golpe católico no Chile foi retumbante, deixando a Igreja, que antes se mantinha firme e apoiada, no chão. Compara-se ainda a situação da Igreja chilena ao acontecido anos antes nos EUA, publicado pelo relatório da Promotoria da Pensilvânia, o que confirma uma ruptura total com esta instituição.
Aconteça o que acontecer, depois desta crise a Igreja Católica Chilena nunca mais será a mesma e nunca mais ocupará o lugar que uma vez ocupou na vida nacional deste país. Chilenas e chilenos aguardamos ansiosamente por mudanças e estamos conscientes de que a geografia social e política do país, com uma Igreja desacreditada e deslegitimada, nunca mais será a mesma.
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Jaime Barrientos é doutor em Psicologia Social e é atualmente Professor Associado da Faculdade de Psicologia da Universidade Alberto Hurtado. Seus tópicos de pesquisa se centram em violência homofóbica, o impacto do preconceito e da discriminação na saúde mental de gays e lésbicas. Além disso, ele realizou pesquisas sobre HsH e MtF no Chile e também adaptou e validou diferentes medidas sobre a violência homofóbica no país. Seu livro mais recente é a Violência Homofóbica na América Latina e no Chile (Editora El buen aire, 2015).