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Direito ao aborto no Brasil: o debate institucional, efeitos internacionais e mídia

Por Fábio Grotz e Sonia Corrêa

Mulheres fazem marcha pela legalização do aborto, com lenços verdes em referência à campanha que derrubou a criminalização na Argentina.
Mulheres fazem marcha pela legalização do aborto, com lenços verdes em referência à campanha que derrubou a criminalização na Argentina.

O necessário debate institucional sobre descriminalização do aborto volta à cena política brasileira nos dias 3 e 6 de agosto, com a audiência pública que integra o processo da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 442. Convocada pela relatora da ADPF no Supremo Tribunal Federal (STF), ministra Rosa Weber, a sessão no Plenário da 1ª Turma da Corte vai discutir a ação, ajuizada ano passado pelo PSOL e pela Anis – Instituto de Bioética, que interroga a constitucionalidade dos artigos 124 e 125 do Código Penal que criminalizam o aborto. A ADPF 442 /2017 é o processo com mais pedidos de entidades interessadas em serem ouvidas da história do Supremo Tribunal Federal (ver artigo de O Globo). Ao final de junho de 2018, 40 Amici Curi relativos à ADPF 442 tinham sido depostos na Corte, 29 deles apoiando e ampliando os argumentos da petição original e 11 contrários. A ministra Weber, ao tornar pública uma primeira lista de especialistas que irão participar da audiência pública, declarou que a prática do aborto é “um dos temas jurídicos mais sensíveis e delicados, enquanto envolve razões de ordem ética, moral, religiosa, saúde pública e tutela de direitos individuais fundamentais”.

Tão logo foi tornada pública a lista de expositores, os setores contrários ao direito ao aborto apresentaram um embargo declaratório, alegando desequilíbrio na composição da audiência e questionando a presença de especialista internacionais. A ministra Weber, embora tenha ressaltado num primeiro momento que a seleção respondia à proporção de pleiteadores, na última semana de junho adicionou à lista de 44 pessoas originalmente selecionadas, seis representações das várias tradições religiosas presentes na sociedade brasileira (veja a publicção oficial aqui).

Concomitantemente, ao longo das últimas semanas, forças contrárias ao aborto têm feito ameaças abertas à antropóloga feminista Debora Diniz, que é coordenadora da Anis. Tais forças também têm se manifestado de maneira cada vez mais contundente contra o conteúdo específico da ADPF 442/2017 e, também, contra o próprio STF como instância escolhida para dirimir com bases em preceitos constitucionais os efeitos deletérios da criminalização da interrupção da gravidez indesejada. (veja nossa compilação)

A trajetória que levou, no Brasil, o debate do direito ao aborto ao Supremo Tribunal Federal é longa e complexa e deve, sem dúvida, ser objeto de análise, especialmente quando essa opção de litígio constitucional estratégico se tornou alvo preferencial das forças contrárias ao direito ao aborto. Esse tema será objeto de nosso balanço mensal no mês de julho. Aqui importa sublinhar que esse caminho de luta pelo direito ao aborto legal abriu uma cunha crucial de resistência, mobilização de debates e aglutinação de vozes plurais que apoiam a livre decisão sexual e reprodutiva das mulheres num momento politicamente muito desfavorável. Isso não é exatamente trivial.

Anuncia-se um franco acirramento de tensões, à medida em que se pavimenta o caminho em direção a essa primeira audiência pública do STF em agosto. O pano de fundo dessas tensões é, certamente, a hegemonia francamente conservadora instalada na política brasileira desde o impeachment em 2016. Mas é vital contabilizar também a intensificação dos movimentos reativos das forças nacionais e globais contrárias ao aborto, especialmente o Vaticano.  Dito de outro modo, o que se passa no Brasil deve necessariamente ser situado no contexto transnacional das recentes vitórias de campanhas pelo direito ao aborto legal e seguro na Argentina e na Irlanda.

Irlanda, Argentina e a mídia brasileira: Efeitos virtuosos

Em 25 de maio na Irlanda, num referendo, 66% dos eleitores votaram pela eliminação da premissa constitucional, instaurada 1983, que protege a vida desde a concepção. O movimento feminista irlandês e demais apoiadores do direito ao aborto foram às ruas acenando lenços verdes para marcar uma vitória inequívoca num país majoritariamente Católico em que ainda tem peso a influência da hierarquia da Igreja sobre a política.

No início de junho, a Câmara dos Deputados da Argentina aprovou projeto que autoriza o direito ao aborto livre e gratuito às mulheres grávidas até a 14ª gestação. O projeto ainda vai tramitar, ao longo do mês de julho, no Senado para, então, ser provavelmente sancionado pelo presidente Mauricio Macri, que adiantou que irá seguir o entendimento do Congresso. Centenas de milhares de manifestantes tomaram as ruas, vestidos e ornados com roupas e especialmente lenços verdes, para pressionar pela aprovação do texto. Embora a oposição legislativa ao projeto não seja desprezível, o direito à autonomia reprodutiva prevaleceu e, não menos importante, o projeto de lei foi objeto de razoável consenso mesmo entre os principais veículos de comunicação de massa no país.

Os ecos da onda verde irlandesa e argentina atravessaram fronteiras. Houve considerável repercussão entre a grande imprensa brasileira, , seja noticiando ou analisando esses resultados, seja trazendo o debate para o contexto brasileiro em que a ADPF 442/2017 tem, nesse momento, um lugar central.

A repercussão foi muito positiva não só nas redes sociais mas também na FSP, El PaísHuffPost Brasil, Marie Claire e Carta Capital, o que não chega a ser uma surpresa, pois são veículos que têm cada vez mais expressado uma posição favorável ao direito de decisão das mulheres. Também a BBC Brasil que, no passado, tratou do tema em várias oportunidades, publicou uma série de reportagens sobre o aborto no Brasil que tiveram grande  repercussão, mas também foram objeto de críticas severas e que são objeto de um escrutínio específico por parte do SPW. Contudo, nesse arco amplo de repercussão positiva registra-se uma novidade, muito significativa. O jornal O Globo – que, num passado nem tão remoto, foi abertamente contrário ao direito ao aborto e que, nos anos mais recentes, ousou eventualmente defender uma decisão plebiscitária – em editorial publicado no dia 25 de junho, que trata da audiência da ADPF 442, questionando a lei penal no tocante ao aborto, manifestou-se  abertamente favorável à proposição de descriminalização do aborto. O editorial afirma que aborto é tema de saúde pública, pois mulheres morrem ao buscarem clínicas clandestinas e inseguras e clama por um entendimento razoável da questão, a partir de um olhar realista e laico ou seja descontaminado das visões religiosas dogmáticas.

Reações previsíveis do campo anti-aborto

Se a onda verde de maio-junho de 2018 deve ser muito valorizada, não podemos perder de vista a cadeia de reações que ela suscitou no campo contrário ao direito ao aborto.  A reação da Igreja Católica ao referendum irlandês foi bem mais lamentosa do que exatamente raivosa: os bispos reconheceram, com preocupação, que hoje a população está afastada da Igreja (em inglês), mas logo em seguida anunciou-se uma visita do papa ao país em agosto que, certamente, terá impactos sobre os desdobramentos legais do referendo. Já a vitória do projeto de lei na Câmara de Deputados argentina foi recebida com franca virulência pelo Vaticano. Menos de 48 horas depois, o papa Francisco I, tomando distância da retórica benevolente que caracteriza a maioria de seus pronunciamentos, evocou as práticas nazistas e eugênicas de aborto forçado para criticar o resultado.  Declaração essa que repercutiu amplamente e provocou muitas respostas críticas, algumas delas relembrando as relações entre o Vaticano e o regime nazista (aqui e aqui)

A diferença entre as reações sugere que a derrota em sua própria casa enfureceu o Cardeal Bergoglio. Sobretudo, esse diapasão estridente faz supor que o Vaticano fará o possível e impossível para conter os desdobramentos do referendo irlandês e criar obstáculos para a sanção final do projeto argentino pelo Senado. Contudo e certamente, o debate brasileiro que, nesse momento, se organiza em torno à audiência pública do STF em agosto também está sob o mesmo radar. Isso pode ser verificado, por exemplo, nos argumentos que foram arrolados em seminário organizado de maneira articulada pela Câmara e Senado em 30 maio de 2018 para debater a ADPF 442.  Nesse evento que se deu após o referendum irlandês, mas antes da votação argentina, foram feitos  ataques diretos não apenas ao conteúdo da demanda, ou seja ao direito ao aborto, mas também à legitimidade do Supremo Tribunal Federal como instância habilitada a debater a constitucionalidade da lei penal. Essa argumentação seria retomada na réplica ao editorial de O Globo, assinada por um deputado do PSC carioca que, ironicamente, elogia as decisões irlandesa e argentina como democráticas para daí inferir que o debate sobre o tema no STF é antidemocrático e vai contra o direito das maiorias.

Essa não é uma inflexão trivial da argumentação contrária ao direito ao aborto, não apenas porque abandona premissas religiosas, mas porque que inscreve o tema na nova estratégia de mobilização da cidadania religiosa desenhada pelo Vaticano ao longo dos anos 2000, analisada com acuidade por Juan Marco Vaggione  no artigo La Iglesia Católica frente a la política sexual: la configuración de una ciudadanía  religiosaComo sabemos, no caso brasileiro assim como em outros contextos, embora mobilizada pelo catolicismo, o apelo da cidadania religiosa tem mutos outros aderentes, especialmente o evangelismo neopentecostal.

As forças vivas da sociedade que defendem o direito ao aborto devem estar muito atentas a essa inflexão, compreender seu significado e mapear seus impactos potenciais. Nesse sentido, a grande mídia, que agora parece estar cada vez mais alinhada às premissas de respeito e promoção da autonomia sexual e reprodutiva e a parâmetros seculares de produção normativa, também está desafiada a cobrir o tema do direito ao aborto sob essa nova angulação, ou seja, como uma questão que deve ser balizada  por premissas constitucionais de dignidade, igualdade de gênero, racial e social e do direito à saúde, mas que também se inscreve no cerne do debate contemporâneo sobre o sentido da democracia e significado das instituições democráticas.

 



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