por Fábio Grotz
Desde o início de junho, a BBC Brasil tem produzido série de reportagens sobre o fenômeno do aborto clandestino no Brasil, possivelmente para ampliar o debate interno sobre a ADPF 442/2017 ou talvez como um reflexo da decisão do referendo irlandês que descriminalizou a prática no final de maio. Essa priorização, embora bem-vinda, não está, contudo, isenta de problemas. “Exclusivo: Por dentro de uma ‘clínica secreta’ de aborto no Whatsapp”; “Abortar é matar, diz mãe de grávida morta em clínica clandestina de aborto”; “A mulher denunciada por médica de plantão e processada por aborto: ‘Fui interrogada enquanto sangrava’”; e “Minha mãe tentou me matar enquanto eu estava em sua barriga – e pensou que havia conseguido” são algumas das manchetes, cujo enquadramento narrativo notabiliza-se pelo escândalo e pela ambiguidade. Não sem razão, a primeira reportagem foi objeto de uma nota pública da Frente Nacional pela Legalização do Aborto e Descriminalização das Mulheres, que faz duras críticas aos procedimentos adotados pela repórter para acessar as fontes, além de condenar os equívocos técnicos a respeito do uso do medicamento Cytotec. Por fim, considera a matéria, em alguns aspectos, alinhada aos argumentos dos grupos contrários ao direito ao aborto no Brasil.
Do ponto de vista do Observatório de Sexualidade e Política (SPW), o que mais salta aos olhos é o desequilíbrio da lógica editorial adotada que, de um lado, recorre a um vocabulário obcecado com aspectos mórbidos, letais e morais, e do outro, ensaia uma abordagem atenta às questões de saúde pública. Tratamento muito diferente do que foi utilizado no texto em inglês que enfatiza direitos e saúde pública. Nossa avaliação é que a escolha pelo escândalo e pelo choque da edição brasileira é apelativa, realçando aspectos dolorosos, detalhando processos fisiológicos de fragilização e sofrimento e relatando a intimidade de um evento abortivo. Ao nosso ver, nessa matéria a BBC apostou numa estratégia de sedução da audiência que recorre aos mesmos afetos exasperados que têm prevalecido, historicamente, no debate sobre aborto no Brasil. Esse não é um tratamento contemporâneo da questão.
Não cabe aqui censurar ou colocar em questão o direito e a liberdade de imprensa, pois trata-se de um princípio democrático basilar. Igualmente, se olharmos por outro ângulo, também constituem princípios democráticos fundamentais a liberdade individual e a autonomia e poder de escolha sobre o próprio corpo. Cabe, sim, explorar criticamente as fronteiras jornalísticas do aborto. Qual a lógica de apostar em linguagem que consagra a exploração dos dramas, com detalhes de brutalidade e horror que operam no registro do fait divers, quando se pode privilegiar elementos legais, econômicos e sociais, no sentido amplo e crítico, que se cruzam e estão na origem dos dramas descritos? Por que expor os circuitos e redes de solidariedade entre as mulheres que optam por terminar uma gestação? Por que sangue ao invés de política e reflexão, especialmente nesse momento tão especial e intenso do debate sobre direito ao aborto no Brasil? Isso se deve à suposição editorial de que para falar de aborto no Brasil é preciso criar pânico ou agradar a gregos e troianos? Ou essa opção apenas reflete a busca por maior visibilidade virtual, nos trails da internet? Seja o que for, a partir de nossa experiência de acompanhar o que a mídia internacional publica sobre o tema podemos afirmar ue outros veículos internacionais, que pretendem a mesma credibilidade — seja o The Guardian, o New York Times ou o El País – nunca adotam esse tipo de abordagem.
Também constatamos que a série de reportagens da BBC apresenta alguns problemas factuais e históricos. Como vimos a carta da Frente aponta erros técnicos graves relativos ao Cytotec no artigo sobre a “clínica secreta em Whatsapp” . Em reportagem posterior – “Por que Congresso e STF caminham para lados opostos na discussão sobre aborto no Brasil”, também tem uma falha importante. O artigo, publicado depois da aprovação parcial da reforma legal do aborto na Argentina, compara a trajetória do debate nos dois países e tem o mérito de deslocar a análise entre os planos da lei e da justiça. Contudo, comete um erro grave ao afirmar que, desde 1989, não se discutem no Brasil propostas de lei que visam ampliar as possiblidades legais de interrupção de gravidez.
Não é bem assim: pelo menos desde 1991, uma série de projetos foram apresentados com esse intuito: o PL 1135/1991, de autoria dos deputados petistas Eduardo Jorge e Sandra Starling; o PL 1956/1996, da então também petista Marta Suplicy; a proposta da Comissão Tripartite de; e, mais recentemente, o projeto do deputado Jean Wyllys (PSOL/RJ). Evidentemente, a tramitação desses textos sempre foi sinuosa, objeto de disputas entre os setores que polarizam no entorno do tema. Alguns desses projetos já foram arquivados, mas isso não pode ser interpretado como um silêncio de quase 30 anos.
No Brasil e em outros contextos, o debate sobre aborto é muito antigo, polarizado, conflituoso, pantanoso. Seu tratamento implica enormes desafios para os meios de comunicação e formadoras/es de opinião que falam do tema. O mais difícil deles é possivelmente encontrar o caminho para fomentar a reflexão sobre os efeitos nefastos da criminalização do aborto e a complexidade da prática, sem esconder o lado sombrio da experiência, mas escapando do escândalo e do reducionismo fácil entre “ser a favor” ou “ser contra”. A verificação de dados e fatos é outro aspecto crucial da boa cobertura jornalística. A produção de matérias jornalísticas que se afastem do sangue, suor, lágrimas, crime e punição para focar em questões de direitos, saúde pública e democracia e sejam apoiadas em evidências pode ser desafiante. Mas, do nosso ponto de vista, esse é o caminho possível para qualificar o debate e assegurar o direito de decisão reprodutiva das mulheres.