Por Sonia Corrêa
A intervenção militar no sistema de segurança pública do Rio anunciada em fevereiro acrescenta sombras e incertezas à crise política em curso. Por um lado, esse é apenas mais um capítulo na larga trajetória de militarização da política de segurança pública na cidade de que um marco forte teve lugar em 1992 quando, durante a Eco 92, um tanque de guerra foi postado na entrada da Rocinha. Entretanto, essa é a primeira vez que esse tipo de medida se faz com base no Artigo 21 da Constituição Federal e sua adoção suscitou preocupantes declarações de autoridades militares, assim como proposições insólitas como a dos mandados de busca coletivos. A medida e seus efeitos imediatos foi analisada com acuidade pelo jurista Oscar Vilhena, em artigo publicado pela Folha de São Paulo, que a situa no contexto mais amplo da crise nacional que na sua avaliação:
….é uma consequência da multiplicação irracional e da perda de representatividade pelos partidos políticos, da erosão da integridade dos processos eleitorais que foram prejudicados por esquemas de corrupção amplos e difusos e da ação oportunista de diversos atores políticos e institucionais. O modelo de coalizão presidencial que, por mais de duas décadas, permitiu a coordenação da política brasileira, tornou-se uma máquina de cooptação. O Supremo Tribunal, que atua como moderador, tornou-se cada vez mais errático, contribuindo para aumentar a insegurança e a instabilidade política… Nesse contexto, os atores políticos e institucionais se tornaram cada vez menos comprometidos com as regras do jogo constitucional, buscando preservar seus interesses imediatos a qualquer custo. A promulgação da intervenção federal no Rio é apenas o último exemplo de conduta imprudente, que terá como única consequência levar os militares de volta ao centro da política brasileira.
Uma avaliação sobre o aborto e a política sexual não pode ignorar essa conjuntura incerta e sombria. Se não por outra razão, porque a longa trajetória de securitização e militarização da resposta brasileira ao problema do tráfico de drogas num cenário democrático não é favorável a qualquer política de descriminalização, seja das drogas ou do aborto.
Além disso, a intervenção federal no Rio afetou a dinâmica do Congresso, uma vez que nenhuma mudança constitucional pode ocorrer enquanto o Artigo 21 (V) é promulgado. Isso é bastante relevante do ponto de vista do direito ao aborto, o que se aplica a PEC 181/2015 que foi objeto de protestos e repúdio ao final de 2017, assim como às outras duas propostas de inclusão do direito à vida desde a concepção nos texto constitucional (a PEC 29/2015 e a PEC 164/2012). Embora, a curto prazo, isso possa reduzir as urgências de contenção dos retrocessos legislativos, outros projetos e lei estão tramitando que implicam riscos par o direito ao aborto como é o caso do Estatuto do Nascituro.
Um outro ângulo do cenário que também merece ser examinado diz respeito ao que Vilhena retrata como o comportamento errático do Supremo Tribunal. Embora sua análise se centre em decisões recentes sobre procedimentos criminais, regras de recurso e jurisdição institucional, sinais de volatilidade também podem ser identificados em relação a gênero, sexualidade e assuntos relacionados ao aborto, nos quais a conduta passada do Tribunal foi muito positiva e inspiradora. [3] Em setembro, por exemplo, de forma bastante inesperada, o Supremo decidiu a favor do ensino religioso confessional no sistema educacional público, em uma conjuntura política quando os currículos de gênero e sexualidade são sistematicamente atacados por forças religiosas dogmáticas. E, em dezembro, quando Rebeca Mendes solicitou ao Tribunal a autorização para se submeter a um procedimento legal de aborto médico, este recurso urgente foi rejeitado por motivos técnicos. Embora esta decisão não tenha abordado o direito ao aborto em termos substanciais, inevitavelmente suscitou preocupações em relação à ADPF 442, que demanda pela despenalização do aborto até a 12ª semana de gravidez e que está sendo examinada pelo Tribunal desde 7 de março de 2017. [4 ]
No entanto, nas últimas semanas, o Supremo parece ter retornado à rota de expansão das garantias constitucionais no domínio dos gêneros e sexualidades. Começou por conceder o direito aos presos travestis e transexuais de estarem em unidades correcionais correspondentes ao seu gênero de escolha. Ainda mais significativo, em 1º de março, emitiu uma decisão final e unanimemente positiva em resposta à petição que argumentou pela inconstitucionalidade do diagnóstico médico necessário para a mudança de identidade de gênero, que foi apresentada ao Tribunal em 2008 pelo Ministério Público Federal e contou com o apoio de muitas outras instâncias, como a Defensoria Pública da União.
Segundo o Juiz Luís Alberto Barroso em seu voto, a decisão se baseia em três premissas centrais:
Primeiro: o direito à igualdade sem discriminação abrange a identidade ou expressão de gênero. Segundo: a identidade de gênero é uma manifestação da personalidade. Terceiro: Uma pessoa não deveria ter que provar o que ele/ela é e o Estado não deveria condicionar a expressão da identidade a qualquer modelo, mesmo que estritamente procedimental.
A decisão possibilita o exercício do direito à identidade de gênero em condições equivalentes àquelas emanadas pela Lei de Identidade de Gênero da Argentina em 2012. Mesmo que o caminho para a implementação total seja turbulento, essa decisão inovadora foi enormemente comemorada pela comunidade trans e por seu aliados, entre outras razões porque impõe limites jurídicos às proposições legais e práticas sociais àqueles que se opõe às realidades e ao direito à identidade e à expressão de gênero. Mesmo sendo muito positiva, a decisão não dilui inteiramente as incertezas e os riscos que continuam a rondar os horizontes da política brasileira na sua amplitude.
[1] A decisão também afeta o processamento da Reforma da Previdência, que é cobiçada pelo “mercado” desde que Temer se tornou presidente em 2016. Essa é uma das razões pela qual alguns observadores argumentam que a intervenção militar é uma estratégia de responder às demandas por ordem e segurança enquanto atrasa as reformas estruturais, cujas aprovações têm se mostrado mais difíceis do que o previsto.
[2] Nesse sentido, outro paradoxo deve ser registrado. Luciana Temer, a filha do presidente, que é tambem advogada e Promotora no Estado de São paulo, é uma das vozes que compõe a campanha.
[3] A decisão sobre o casamento entre pessoas do mesmo sexo de 2011, a decisão de 2012 sobre o direito ao aborto em casos de anencefalia fetal e a declaração de 2016 a favor da descriminalização do aborto de maneira ampla.
[4] Outro motivo para preocupação é a respeito da Presidente do Supremo Tribunal Federal, Carmen Lúcia, que participou do lançamento da Campanha da Fraternidade de 2018, patrocinada pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). O tema da campanha desse ano é “violência” e um de seus subtópicos é “o aborto como violência contra o nascituro”.