Publicado originalmente no Nexo Jornal
Os protestos contrários e favoráveis à participação da filósofa Judith Butler no evento “Os fins da democracia”, realizado no Sesc Pompeia, em 7 de novembro de 2017, revelam algumas questões que vão além da discordância com as ideias e posicionamentos da intelectual sobre gênero ou ainda sobre democracia. A polêmica fornece elementos para se pensar sobre o atual cenário político brasileiro em formação para as eleições de 2018. É isso que revela a pesquisa “‘Ideologia de Gênero x Ideologia de Gênesis’: percepções e controvérsias nas manifestações pró e contra Judith Butler em São Paulo”, que coordenei no NEU (Núcleo de Etnografia Urbana e Audiovisual) da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo. Com a participação de membros do NEU e pesquisadores convidados, a pesquisa trata das controvérsias entre os grupos mobilizados em torno da participação da filósofa no evento. A investigação foi estruturada a partir das seguintes dimensões: gênero, infância, educação, política e religião.
É possível afirmar, com base na pesquisa realizada na manhã do dia 7, que contrários e favoráveis à presença de Butler se organizaram em dois grupos com equivalente número de participantes. Ao longo de quatro horas, os dois grupos contabilizaram em torno de 200 pessoas. Entre os favoráveis, estavam presentes lado a lado membros da torcida corintiana antifascista e da torcida comunista palmeirense. Do lado contrário, um grupo de skinheads realizava a “segurança” do protesto dos descontentes. Um dos momentos de maior tensão se deu quando um palmeirense passou a se comunicar com integrantes da torcida para um possível embate com os comunistas e antifas de seu time e do time adversário. Não estávamos apenas na rua do Sesc, estávamos também em um território marcado pelas disputas de futebol, a apenas 500 metros de distância do estádio do Palmeiras.
Considerando as mais de 370 mil assinaturas de uma petição online contra o evento, o número de manifestantes na rua foi pequeno. No início, a manifestação chegou a contar apenas com 15 pessoas entre os contrários, sob o olhar de curiosos, transeuntes, pesquisadores, acadêmicos, jornalistas, fotógrafos e frequentadores do Sesc. Não é possível afirmar ainda que estes protestos sejam representativos de opiniões compartilhadas pela população em geral. Como comparação, de acordo com recente pesquisa do Ibope, a maioria dos brasileiros é favorável à discussão de gênero nas escolas. E, mesmo o perfil geral dos contrários e favoráveis deve ser analisado em contexto, já que se trata da realização de um evento também de natureza acadêmica com a presença de universitários, intelectuais e pesquisadores nos protestos. Entre os favoráveis à filósofa Judith Butler, se destaca numericamente pessoas autodeclaradas brancas, com mais tempo de escolarização e maior renda. Esta amostra reflete aspectos de classe e raça visíveis entre o público universitário na comparação com a população em geral.
Entretanto, apesar do número relativamente pequeno de manifestantes, os protestos conseguiram atrair atenção e mobilizar distintos grupos e coletivos (na rua e na internet) com lideranças e integrantes que exercem o papel de formadores de opinião e provedores de informação (fundamentadas ou não). A expressiva e crescente audiência dessas lideranças se define por um público que vai desde uma ultradireita defendendo intervenção militar e/ou intervenção divina até eleitores potencialmente indecisos entre candidatos considerados de direita, centro ou de esquerda.
De acordo com dados da pesquisa, 45,5% dos contrários concordam totalmente com a afirmação “a solução para o Brasil poderia vir de uma intervenção divina” e 72,97% concorda totalmente ou em parte com a afirmação “uma intervenção militar poderia ajudar o Brasil”. Por outro lado, 19% dos favoráveis afirmam não acreditar em direita e esquerda no Brasil e entre os contrários 16,2% não acreditam. Se somados os que não souberam responder, esta parcela de descrentes em esquerda e direita e indecisos representa 27% dos contrários e 28,5% dos favoráveis.
Neste cenário, o evento do Sesc foi pretexto para demonstrações de força e visibilidade de grupos favoráveis e contrários resultando na mobilização de rua de rivais históricos no futebol, coletivos periféricos antifascistas, anarquistas, ateus, jovens mães (organizadas pelo movimento homeschooling), comunistas, feministas de direita, skinheads, grupos ultranacionalistas, apoiadores de Jair Bolsonaro, militantes do Psol, missionários evangélicos, católicos da TFP (Tradição Família e Propriedade), lideranças negras conservadoras, ativistas negros LGBTQ, feministas de esquerda, jovens brancos periféricos de direita, grupos contrários à ONU (Organização das Nações Unidas), militantes transexuais, manifestantes anti-antissemitas, grupos reivindicando uma urgente intervenção militar no país e lideranças indígenas guarani protestando contra as mais variadas violações de direitos humanos em São Paulo e no Brasil.
O que se viu foram manifestações que incluíram ainda xingamentos entre jornalistas e manifestantes, uma pequena briga de socos entre lados opostos do protesto e mesmo desentendimentos entre as lideranças e a equipe da pesquisa (relativamente numerosa se considerarmos que uma em cada duas pessoas presentes aceitou ser entrevistada). Mas o ponto alto do protesto começou com a exposição de bonecos em tamanho natural representando o multimilionário George Soros e o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso.
De acordo com as entrevistas, Fernando Henrique está sendo acusado de promover, com o suporte financeiro de Soros, uma estratégia de apoio a grupos de esquerda no Brasil para formar o que se define como “globalismo”. Globalismo seria uma espécie de governo supranacional anti-israelense que promoveria a “islamização do mundo”, o “marxismo cultural” e a descriminalização das drogas – aspectos que revelam como as noções de esquerda e direita, tradicionalmente mobilizadas nos debates acadêmicos e análises políticas, não encontram referentes em certos discursos presentes no senso comum e defendidos por parte destas lideranças conservadoras.
Juntamente com os bonecos de Soros e Fernando Henrique, o ápice dos protestos ocorreu com a performatização de elementos de exorcismo contra a boneca em tamanho natural de Judith Butler, com a foto do rosto da filósofa, vestida com chapéu de bruxa e sutiã rosa à mostra. Em uma roda, em que estavam presentes muitos jornalistas, os bonecos foram queimados primeiramente na calçada e, depois, permaneceram em chamas na via pública representando a morte de Butler, Fernando Henrique e Soros. E, após quatro horas, as manifestações terminaram com a limpeza do local realizada pelas mulheres dos protestos contrários varrendo a rua Clélia, sob o olhar atônito dos favoráveis.
O que é possível afirmar é que, em termos simbólicos, essas manifestações revelam operações de condensação e deslocamento, conceitos utilizados na psicanálise para se referir ao universo onírico. Ou seja, os protestos tratam menos da defesa da família e das crianças brasileiras, e mais de uma série de equivalências e redes de significados que condensam ideias, afetos, narrativas, posições políticas, categorias de acusações, bem como processos de construção de legitimidade e instrumentalização de grupos e pessoas ali presentes. O conteúdo manifesto, aquilo que é visível, dito e narrado, se centra na luta contra a “ideologia de gênero” (termo que serve de categoria de acusação e operação política que não é reconhecido no campo acadêmico). Mas seu conteúdo latente, ou seja, aquilo que não é claramente explicitado, faz referência a uma cadeia de significados que unem grupos distintos em defesa da ideia da Escola Sem Partido.
Os termos “ideologia de gênero” e “ideologia de gênesis” são utilizados pelos grupos autodenominados “conservadores” (81,1% dos contrários) como categoria de acusação e operação política contra os “progressistas” (28,6% dos favoráveis) e “libertários” (42,9% dos favoráveis). A expressiva marca de autodenominados “libertários” pode ser explicada, em parte, pela presença de anarquistas, autônomos e antifascistas que lideraram a manifestação do contra ato chamado pelo coletivo Periferia Antifascista. Nas entrevistas qualitativas se procurou investigar como esses termos são definidos e a comparabilidade entre o uso e/ou reconhecimentos destas categorias, em ambos os grupos.
Nesse sentido, a pesquisa revela uma clara identificação entre “ideologia de gênero” e “comunismo”, daí a aproximação com o movimento Escola Sem Partido e os esforços de impossibilitar debates de gênero no cotidiano escolar. Se a supressão do debate gênero é o conteúdo manifesto desses protestos, o que está por trás dessas mobilizações de rua e internet é a Escola Sem Partido. O movimento Escola Sem Partido representa um conjunto de ações e ideias que visam o afastamento das crianças de pautas que são identificadas como sendo da esquerda, marxistas ou comunistas. Especificamente, nesses protestos circunscritos, o que se viu não foi um antipetismo e sim um anticomunismo, já que estavam ausentes referências a figuras como de Lula, Dilma ou o próprio Partido dos Trabalhadores.
Não me parece aleatório que os contrários, um grupo majoritariamente formado por apoiadores de Jair Bolsonaro (62,2%), não tenham feito referências a Lula, virtualmente seu principal opositor em eleições presidenciais. O que mais chama atenção não é a presença de Fernando Henrique (representado por seu boneco), mas a ausência de Lula, considerando a repulsa ao PT nas recentes manifestações políticas, como apontado por outros pesquisadores e também fortemente presente em uma pesquisa que fizemos entre os acampados da Fiesp, no ano passado. Aliás, foi durante a pesquisa na Fiesp que vimos, pela primeira vez, essa queima de bonecos (lá, no caso, Lula e Dilma). No Sesc Pompeia, a queima do boneco de Fernando Henrique está ligada a um conjunto de ideias defendidas pelos contrários que o posicionaria como parte de uma articulação da esquerda. Mas ao pouparem o PT e seus representantes, os apoiadores de Bolsonaro ali presentes conseguem disputar uma parcela de possíveis eleitores e simpatizantes de Lula. Entre os contrários, 27% não souberam responder em quem gostariam de votar para presidente em 2018 e 8,1% afirmaram ter votado em Dilma Rousseff no segundo turno da última eleição.
Assim, não é que os protestos tenham mobilizado pautas variadas e aleatórias, é que os grupos ali presentes no espaço público (ou nas redes sociais) têm mobilizado cadeias de significados e estabelecido equivalências que podem ser representadas em equações em que, surpreendentemente, a defesa de direitos humanos pode se tornar o equivalente ao incentivo da pedofilia. Dados qualitativos coletados a partir da realização das entrevistas abertas permitiram mapear essas teias de equivalências que podem ser mais ou menos sofisticadas e que são condensadas, por exemplo, na ideia compartilhada por alguns grupos conservadores de que a “ideologia de gênero” deve ser combatida com sua antítese que é a “ideologia de Gênesis”.
O cruzamento dos dados coletados nos questionários com as entrevistas abertas indica que, neste contexto específico dos protestos, parece haver o entendimento por parte dos entrevistados de que o “ensino sobre sexualidade” envolve exclusivamente temas de saúde reprodutiva com base em padrões heteronormativos. Já em relação à palavra “gênero” parece haver um entendimento de que se trata de um conjunto de práticas nocivas que afetariam negativamente a orientação do desejo das crianças. De acordo com essa visão, o ensino de sexualidade estaria no campo da prevenção da gravidez precoce e de infecções sexualmente transmissíveis, enquanto a discussão de gênero afetaria formas consideradas naturalizadas de papéis e identidades de gênero fazendo com que meninos venham a se comportar, agir e vestir como meninas e vice-versa.
A construção dessas cadeias de significados se baseia na manipulação do medo e da informação (e desinformação) no campo de disputas do senso comum. Sua força reside exatamente no fato de que nenhuma mãe, pai ou cuidador quer sua criança vítima de abusos e maus tratos físicos, emocionais e psicológicos (tendo a pedofilia e, por vezes, a zoofilia como o pior desfecho trágico). Nesse sentido, um dado importante da pesquisa revela disputas entre diferentes concepções e percepções sobre o papel do Estado na sociedade – tendo a escola pública como principal referência e campo de controvérsia.
Dessa perspectiva, quando os favoráveis gritavam “Fora Temer” e os contrários respondiam com “Fora Butler”, ambos os lados estavam travando posições em relação ao papel do Estado, posicionando o campo da educação das crianças, o ambiente escolar e as instituições culturais como um terreno de batalha e disputa política prioritários tanto para conservadores quanto para progressistas. A despeito de possíveis interpretações equivocadas do Sesc como uma instituição pública, o fato é que os lugares da família e da religião, nesse contexto, são compreendidos pelos conservadores em uma relação de contrapeso com o Estado. A presença de valores religiosos e familiares considerados tradicionais e desejáveis seria uma forma de prevenir a instauração de um Estado comunista no país. Perspectiva que, por vezes, encontra reforço na ideia da necessidade do porte de armas por parte da população para fazer frente a um Estado autoritário de esquerda. Chama atenção o fato de que, entre os favoráveis, 85,71% concordam com a afirmação “o Estado é importante para a vida das pessoas” e apenas 43,24% entre os contrários. Entre os contrários, a soma entre os que discordam totalmente ou em parte dessa afirmação é de 56,75%.
É claro que ambos os lados dos protestos constroem e reforçam diferentes cadeias de significados resultando em categorias de acusações de fascismo tanto dos progressistas para os conservadores quanto vice-versa. Se levarmos em conta apenas as categorias de acusação, o que se viu na rua Clélia foi um aparente embate de fascistas contra fascistas com a suposta defesa de liberdade de expressão em ambos os lados. Isso porque a própria ideia do movimento Escola Sem Partido se vale da pretensa defesa da liberdade individual. Em termos performáticos, talvez este tenha sido o único ponto de concordância entre os favoráveis e contrários, que alternavam uns para os outros gritos ritmados de “fascistas, fascistas, não passarão”!
Nota metodológica: A pesquisa se baseou na análise prévia dos conteúdos compartilhados nas redes sociais sobre os protestos para a definição das dimensões a serem investigadas. A pesquisa foi realizada com base na aplicação de um questionário tipo survey, entrevistas abertas e a observação de campo orientada para a realização de uma pesquisa etnográfica. Em campo, estavam presentes 19 pesquisadores. Sobre a coleta de dados do survey, foram aplicados 93 questionários estruturados em perguntas de múltipla escolha com amostra não probabilística, ou seja, a amostra não representa a população em geral e diz respeito aos perfis específicos dos participantes destes protestos em questão. Além dos questionários estruturados, foram realizadas 31 entrevistas qualitativas em roteiro aberto com participantes dos protestos e suas lideranças. Alguns participantes responderam ao questionário e também foram entrevistados. A observação de campo teve como foco a compreensão de diferentes marcadores nos protestos, tais como a identificação de lideranças, presença de jovens e crianças, participação de ativistas e transeuntes, comportamentos, reivindicações, posicionamentos, estratégias e táticas de comunicação e performances públicas. Os dados completos da pesquisa survey podem ser conferidos no site do Núcleo de Etnografia Urbana e Audiovisual.
Isabela Oliveira Pereira da Silva é coordenadora da pesquisa, doutora em Antropologia Social pela USP. Docente e coordenadora do NEU (Núcleo de Etnografia Urbana e Audiovisual) da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo.
Os protestos contrários e favoráveis à participação da filósofa Judith Butler no evento “Os fins da democracia”, realizado no Sesc Pompeia, em 7 de novembro de 2017, revelam algumas questões que vão além da discordância com as ideias e posicionamentos da intelectual sobre gênero ou ainda sobre democracia. A polêmica fornece elementos para se pensar sobre o atual cenário político brasileiro em formação para as eleições de 2018. É isso que revela a pesquisa “‘Ideologia de Gênero x Ideologia de Gênesis’: percepções e controvérsias nas manifestações pró e contra Judith Butler em São Paulo”, que coordenei no NEU (Núcleo de Etnografia Urbana e Audiovisual) da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo. Com a participação de membros do NEU e pesquisadores convidados, a pesquisa trata das controvérsias entre os grupos mobilizados em torno da participação da filósofa no evento. A investigação foi estruturada a partir das seguintes dimensões: gênero, infância, educação, política e religião.
É possível afirmar, com base na pesquisa realizada na manhã do dia 7, que contrários e favoráveis à presença de Butler se organizaram em dois grupos com equivalente número de participantes. Ao longo de quatro horas, os dois grupos contabilizaram em torno de 200 pessoas. Entre os favoráveis, estavam presentes lado a lado membros da torcida corintiana antifascista e da torcida comunista palmeirense. Do lado contrário, um grupo de skinheads realizava a “segurança” do protesto dos descontentes. Um dos momentos de maior tensão se deu quando um palmeirense passou a se comunicar com integrantes da torcida para um possível embate com os comunistas e antifas de seu time e do time adversário. Não estávamos apenas na rua do Sesc, estávamos também em um território marcado pelas disputas de futebol, a apenas 500 metros de distância do estádio do Palmeiras.
Considerando as mais de 370 mil assinaturas de uma petição online contra o evento, o número de manifestantes na rua foi pequeno. No início, a manifestação chegou a contar apenas com 15 pessoas entre os contrários, sob o olhar de curiosos, transeuntes, pesquisadores, acadêmicos, jornalistas, fotógrafos e frequentadores do Sesc. Não é possível afirmar ainda que estes protestos sejam representativos de opiniões compartilhadas pela população em geral. Como comparação, de acordo com recente pesquisa do Ibope, a maioria dos brasileiros é favorável à discussão de gênero nas escolas. E, mesmo o perfil geral dos contrários e favoráveis deve ser analisado em contexto, já que se trata da realização de um evento também de natureza acadêmica com a presença de universitários, intelectuais e pesquisadores nos protestos. Entre os favoráveis à filósofa Judith Butler, se destaca numericamente pessoas autodeclaradas brancas, com mais tempo de escolarização e maior renda. Esta amostra reflete aspectos de classe e raça visíveis entre o público universitário na comparação com a população em geral.
Entretanto, apesar do número relativamente pequeno de manifestantes, os protestos conseguiram atrair atenção e mobilizar distintos grupos e coletivos (na rua e na internet) com lideranças e integrantes que exercem o papel de formadores de opinião e provedores de informação (fundamentadas ou não). A expressiva e crescente audiência dessas lideranças se define por um público que vai desde uma ultradireita defendendo intervenção militar e/ou intervenção divina até eleitores potencialmente indecisos entre candidatos considerados de direita, centro ou de esquerda.
De acordo com dados da pesquisa, 45,5% dos contrários concordam totalmente com a afirmação “a solução para o Brasil poderia vir de uma intervenção divina” e 72,97% concorda totalmente ou em parte com a afirmação “uma intervenção militar poderia ajudar o Brasil”. Por outro lado, 19% dos favoráveis afirmam não acreditar em direita e esquerda no Brasil e entre os contrários 16,2% não acreditam. Se somados os que não souberam responder, esta parcela de descrentes em esquerda e direita e indecisos representa 27% dos contrários e 28,5% dos favoráveis.
Neste cenário, o evento do Sesc foi pretexto para demonstrações de força e visibilidade de grupos favoráveis e contrários resultando na mobilização de rua de rivais históricos no futebol, coletivos periféricos antifascistas, anarquistas, ateus, jovens mães (organizadas pelo movimento homeschooling), comunistas, feministas de direita, skinheads, grupos ultranacionalistas, apoiadores de Jair Bolsonaro, militantes do Psol, missionários evangélicos, católicos da TFP (Tradição Família e Propriedade), lideranças negras conservadoras, ativistas negros LGBTQ, feministas de esquerda, jovens brancos periféricos de direita, grupos contrários à ONU (Organização das Nações Unidas), militantes transexuais, manifestantes anti-antissemitas, grupos reivindicando uma urgente intervenção militar no país e lideranças indígenas guarani protestando contra as mais variadas violações de direitos humanos em São Paulo e no Brasil.
O que se viu foram manifestações que incluíram ainda xingamentos entre jornalistas e manifestantes, uma pequena briga de socos entre lados opostos do protesto e mesmo desentendimentos entre as lideranças e a equipe da pesquisa (relativamente numerosa se considerarmos que uma em cada duas pessoas presentes aceitou ser entrevistada). Mas o ponto alto do protesto começou com a exposição de bonecos em tamanho natural representando o multimilionário George Soros e o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso.
De acordo com as entrevistas, Fernando Henrique está sendo acusado de promover, com o suporte financeiro de Soros, uma estratégia de apoio a grupos de esquerda no Brasil para formar o que se define como “globalismo”. Globalismo seria uma espécie de governo supranacional anti-israelense que promoveria a “islamização do mundo”, o “marxismo cultural” e a descriminalização das drogas – aspectos que revelam como as noções de esquerda e direita, tradicionalmente mobilizadas nos debates acadêmicos e análises políticas, não encontram referentes em certos discursos presentes no senso comum e defendidos por parte destas lideranças conservadoras.
Juntamente com os bonecos de Soros e Fernando Henrique, o ápice dos protestos ocorreu com a performatização de elementos de exorcismo contra a boneca em tamanho natural de Judith Butler, com a foto do rosto da filósofa, vestida com chapéu de bruxa e sutiã rosa à mostra. Em uma roda, em que estavam presentes muitos jornalistas, os bonecos foram queimados primeiramente na calçada e, depois, permaneceram em chamas na via pública representando a morte de Butler, Fernando Henrique e Soros. E, após quatro horas, as manifestações terminaram com a limpeza do local realizada pelas mulheres dos protestos contrários varrendo a rua Clélia, sob o olhar atônito dos favoráveis.
O que é possível afirmar é que, em termos simbólicos, essas manifestações revelam operações de condensação e deslocamento, conceitos utilizados na psicanálise para se referir ao universo onírico. Ou seja, os protestos tratam menos da defesa da família e das crianças brasileiras, e mais de uma série de equivalências e redes de significados que condensam ideias, afetos, narrativas, posições políticas, categorias de acusações, bem como processos de construção de legitimidade e instrumentalização de grupos e pessoas ali presentes. O conteúdo manifesto, aquilo que é visível, dito e narrado, se centra na luta contra a “ideologia de gênero” (termo que serve de categoria de acusação e operação política que não é reconhecido no campo acadêmico). Mas seu conteúdo latente, ou seja, aquilo que não é claramente explicitado, faz referência a uma cadeia de significados que unem grupos distintos em defesa da ideia da Escola Sem Partido.
Os termos “ideologia de gênero” e “ideologia de gênesis” são utilizados pelos grupos autodenominados “conservadores” (81,1% dos contrários) como categoria de acusação e operação política contra os “progressistas” (28,6% dos favoráveis) e “libertários” (42,9% dos favoráveis). A expressiva marca de autodenominados “libertários” pode ser explicada, em parte, pela presença de anarquistas, autônomos e antifascistas que lideraram a manifestação do contra ato chamado pelo coletivo Periferia Antifascista. Nas entrevistas qualitativas se procurou investigar como esses termos são definidos e a comparabilidade entre o uso e/ou reconhecimentos destas categorias, em ambos os grupos.
Nesse sentido, a pesquisa revela uma clara identificação entre “ideologia de gênero” e “comunismo”, daí a aproximação com o movimento Escola Sem Partido e os esforços de impossibilitar debates de gênero no cotidiano escolar. Se a supressão do debate gênero é o conteúdo manifesto desses protestos, o que está por trás dessas mobilizações de rua e internet é a Escola Sem Partido. O movimento Escola Sem Partido representa um conjunto de ações e ideias que visam o afastamento das crianças de pautas que são identificadas como sendo da esquerda, marxistas ou comunistas. Especificamente, nesses protestos circunscritos, o que se viu não foi um antipetismo e sim um anticomunismo, já que estavam ausentes referências a figuras como de Lula, Dilma ou o próprio Partido dos Trabalhadores.
Não me parece aleatório que os contrários, um grupo majoritariamente formado por apoiadores de Jair Bolsonaro (62,2%), não tenham feito referências a Lula, virtualmente seu principal opositor em eleições presidenciais. O que mais chama atenção não é a presença de Fernando Henrique (representado por seu boneco), mas a ausência de Lula, considerando a repulsa ao PT nas recentes manifestações políticas, como apontado por outros pesquisadores e também fortemente presente em uma pesquisa que fizemos entre os acampados da Fiesp, no ano passado. Aliás, foi durante a pesquisa na Fiesp que vimos, pela primeira vez, essa queima de bonecos (lá, no caso, Lula e Dilma). No Sesc Pompeia, a queima do boneco de Fernando Henrique está ligada a um conjunto de ideias defendidas pelos contrários que o posicionaria como parte de uma articulação da esquerda. Mas ao pouparem o PT e seus representantes, os apoiadores de Bolsonaro ali presentes conseguem disputar uma parcela de possíveis eleitores e simpatizantes de Lula. Entre os contrários, 27% não souberam responder em quem gostariam de votar para presidente em 2018 e 8,1% afirmaram ter votado em Dilma Rousseff no segundo turno da última eleição.
Assim, não é que os protestos tenham mobilizado pautas variadas e aleatórias, é que os grupos ali presentes no espaço público (ou nas redes sociais) têm mobilizado cadeias de significados e estabelecido equivalências que podem ser representadas em equações em que, surpreendentemente, a defesa de direitos humanos pode se tornar o equivalente ao incentivo da pedofilia. Dados qualitativos coletados a partir da realização das entrevistas abertas permitiram mapear essas teias de equivalências que podem ser mais ou menos sofisticadas e que são condensadas, por exemplo, na ideia compartilhada por alguns grupos conservadores de que a “ideologia de gênero” deve ser combatida com sua antítese que é a “ideologia de Gênesis”.
O cruzamento dos dados coletados nos questionários com as entrevistas abertas indica que, neste contexto específico dos protestos, parece haver o entendimento por parte dos entrevistados de que o “ensino sobre sexualidade” envolve exclusivamente temas de saúde reprodutiva com base em padrões heteronormativos. Já em relação à palavra “gênero” parece haver um entendimento de que se trata de um conjunto de práticas nocivas que afetariam negativamente a orientação do desejo das crianças. De acordo com essa visão, o ensino de sexualidade estaria no campo da prevenção da gravidez precoce e de infecções sexualmente transmissíveis, enquanto a discussão de gênero afetaria formas consideradas naturalizadas de papéis e identidades de gênero fazendo com que meninos venham a se comportar, agir e vestir como meninas e vice-versa.
A construção dessas cadeias de significados se baseia na manipulação do medo e da informação (e desinformação) no campo de disputas do senso comum. Sua força reside exatamente no fato de que nenhuma mãe, pai ou cuidador quer sua criança vítima de abusos e maus tratos físicos, emocionais e psicológicos (tendo a pedofilia e, por vezes, a zoofilia como o pior desfecho trágico). Nesse sentido, um dado importante da pesquisa revela disputas entre diferentes concepções e percepções sobre o papel do Estado na sociedade – tendo a escola pública como principal referência e campo de controvérsia.
Dessa perspectiva, quando os favoráveis gritavam “Fora Temer” e os contrários respondiam com “Fora Butler”, ambos os lados estavam travando posições em relação ao papel do Estado, posicionando o campo da educação das crianças, o ambiente escolar e as instituições culturais como um terreno de batalha e disputa política prioritários tanto para conservadores quanto para progressistas. A despeito de possíveis interpretações equivocadas do Sesc como uma instituição pública, o fato é que os lugares da família e da religião, nesse contexto, são compreendidos pelos conservadores em uma relação de contrapeso com o Estado. A presença de valores religiosos e familiares considerados tradicionais e desejáveis seria uma forma de prevenir a instauração de um Estado comunista no país. Perspectiva que, por vezes, encontra reforço na ideia da necessidade do porte de armas por parte da população para fazer frente a um Estado autoritário de esquerda. Chama atenção o fato de que, entre os favoráveis, 85,71% concordam com a afirmação “o Estado é importante para a vida das pessoas” e apenas 43,24% entre os contrários. Entre os contrários, a soma entre os que discordam totalmente ou em parte dessa afirmação é de 56,75%.
É claro que ambos os lados dos protestos constroem e reforçam diferentes cadeias de significados resultando em categorias de acusações de fascismo tanto dos progressistas para os conservadores quanto vice-versa. Se levarmos em conta apenas as categorias de acusação, o que se viu na rua Clélia foi um aparente embate de fascistas contra fascistas com a suposta defesa de liberdade de expressão em ambos os lados. Isso porque a própria ideia do movimento Escola Sem Partido se vale da pretensa defesa da liberdade individual. Em termos performáticos, talvez este tenha sido o único ponto de concordância entre os favoráveis e contrários, que alternavam uns para os outros gritos ritmados de “fascistas, fascistas, não passarão”!
Nota metodológica: A pesquisa se baseou na análise prévia dos conteúdos compartilhados nas redes sociais sobre os protestos para a definição das dimensões a serem investigadas. A pesquisa foi realizada com base na aplicação de um questionário tipo survey, entrevistas abertas e a observação de campo orientada para a realização de uma pesquisa etnográfica. Em campo, estavam presentes 19 pesquisadores. Sobre a coleta de dados do survey, foram aplicados 93 questionários estruturados em perguntas de múltipla escolha com amostra não probabilística, ou seja, a amostra não representa a população em geral e diz respeito aos perfis específicos dos participantes destes protestos em questão. Além dos questionários estruturados, foram realizadas 31 entrevistas qualitativas em roteiro aberto com participantes dos protestos e suas lideranças. Alguns participantes responderam ao questionário e também foram entrevistados. A observação de campo teve como foco a compreensão de diferentes marcadores nos protestos, tais como a identificação de lideranças, presença de jovens e crianças, participação de ativistas e transeuntes, comportamentos, reivindicações, posicionamentos, estratégias e táticas de comunicação e performances públicas. Os dados completos da pesquisa survey podem ser conferidos no site do Núcleo de Etnografia Urbana e Audiovisual.
Isabela Oliveira Pereira da Silva é coordenadora da pesquisa, doutora em Antropologia Social pela USP. Docente e coordenadora do NEU (Núcleo de Etnografia Urbana e Audiovisual) da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo.