*Este artigo foi traduzido do inglês de sua versão original no jornal The Nation, publicado no dia 13 de setembro de 2017.
Desde os direitos de pessoas com deficiência, passando pelo movimento ‘vidas negras importam’ até o ativismo ambiental, o conceito de autonomia corporal pode aproximar linhas díspares da esquerda americana.
David M. Perry*
Diante do constante terror provocados pelo desgoverno do presidente Donald Trump e seus facilitadores do Partido Republicano, como nos organizamos politicamente? Escrever uma lista de intenções que nunca serão cumpridas de políticas louváveis? Abandonar a política identitária (como se houvesse alguma política que não fosse sobre alguma forma de identidade)? Ter como alvo o nível micro das necessidades de comunidades específicas? A diversidade da esquerda americana é onde encontramos nossa força, mas ela apresenta desafios para os organizadores e marketeiros.
Como militante dos direitos das pessoas com deficiência, tenho procurado formas de estreitar as minhas principais causas com as de outros grupos – pessoas que priorizam a justiça reprodutiva, justiça racial, despenalização de narcóticos, direitos queer, medidas de enfrentamento a pobreza e muito mais. Cada um de nós existe como interseções específicas entre necessidades e preocupações. Para ganharmos, devemos encontrar maneiras de unir nossas lutas sem apagar nossas diferenças. Há um lugar em que elas se conectam: a necessidade de defender a autonomia corporal.
A “autonomia corporal”, como um princípio filosófico abstrato, remonta pelo menos até os filósofos gregos antigos. Ao longo dos séculos, estudiosos jurídicos e filósofos políticos pensaram muito sobre a relação entre direitos e leis, o indivíduo e o grupo, o Estado soberano e o indivíduo autônomo. Nos círculos de ativistas americanos, a autonomia corporal é mais frequentemente acionada em torno da luta por direitos reprodutivos. No entanto, não percebo um esforço para aproveitar esse princípio de uma maneira que faça com que os nossos movimentos, aparentemente dispersos, se atem.
Vamos começar com a deficiência. Eu sou o pai de um menino com síndrome de Down. Minhas preocupações para ele e para a comunidade de pessoas com deficiência prolongada incluem oposição à institucionalização, à esterilização forçada e a outras práticas eugênicas, como a cirurgia involuntária, os regimes obrigatórios de drogas, a negação de direitos para pais com deficiência, a proteção para crianças com deficiência contra cuidadores e professores violentos e a falta de acomodações para corpos não típicos. Em cada caso, essas questões exigem um governo que se abstenha de coagir os corpos com deficiência e que os proteja da coerção privada. A autonomia corporal se estende por essas questões aparentemente bastante díspares.
Os direitos reprodutivos têm sido o lugar mais óbvio onde devemos promover que cada indivíduo exerça soberania sobre seu próprio corpo. De vez em quando, os democratas “pró-vida” exigem que sejam incluídos dentro da festa. Apesar do flerte que o presidente do Comitê Nacional Democrata Tom Perez estabelece com essa facção, nossa resposta deve ser clara. Todos têm direito às suas crenças e desenvolvem práticas baseadas nelas, no entanto, o governo não pode regular o acesso de ninguém à completa escolha reprodutiva. Uma mulher exerce soberania sobre seu corpo e isso não está sujeito a debate, quer se trate sobre o aborto, o controle de natalidade ou o enfrentamento da violência sexual.
Os direitos reprodutivos e os direitos das pessoas com deficiência são frequentemente percebidos em tensão, mas eles não precisam estar. Como recentemente discutido pelo advogado e ativista com autismo, Shain Neumeier, a história nos mostra que permitir que o governo exerça controle sobre a reprodução sempre afeta negativamente as pessoas com deficiência. Isso é ainda mais famoso na história a respeito da esterilização eugênica de homens e mulheres com deficiência nos Estados Unidos, mas continua em batalhas mais sutis, inclusive se as pessoas com deficiência devem ter permissão para fazer sexo. Os direitos de deficiência e os direitos reprodutivos encontram uma trincheira comum ao resistir à intrusão governamental nas decisões reprodutivas individuais. O princípio abstrato da autonomia corporal une em vez de fragmentar.
A autonomia corporal pode se estender a outras campanhas de direitos, protegendo, por exemplo, os americanos que se identificam como LGBTQ. O princípio pressupõe o direito básico das pessoas transgêneros em acessar cirurgia, hormônios e outros cuidados médicos sem discriminação. Além disso, embora tenhamos despenalizado em grande parte a prática sexual não-heterossexual, os teocráticos de extrema-direita sempre se aproximam, procurando encontrar novas formas de punir legalmente a homossexualidade. O vice-presidente Mike Pence supostamente apoiou a terapia de reorientação sexual quando ele estava concorrendo ao Congresso em 2000 (Pence negou isso). A autonomia corporal nos dá mais uma maneira de articular nossa oposição a essa prática bárbara.
De fato, os direitos das crianças emergem como particularmente importantes, além da preocupante questão da terapia de reorientação sexual. A mutilação genital feminina, por exemplo, é praticada contra o direito de controlar o próprio corpo, assim como o castigo corporal degradante em todos os contextos.
Preocupa-se com o encarceramento em massa e a guerra contra as drogas? O princípio também funciona para essa questão. Você tem o direito de colocar substâncias em seu corpo desde que o faça de uma forma que não exponha outros a perigo. Assim, nós também precisaremos descriminalizar o trabalho sexual devido ao nosso respeito pela autonomia corporal. A todos os libertários decepcionados pelo procurador-geral Jeff Sessions, sejam bem-vindos de volta ao Partido Democrata.
As vidas negras realmente importam. O enquadramento básico dos direitos humanos e da justiça racial continua a ser primordial. No entanto, se nos organizarmos em torno do princípio de que um corpo é soberano de si mesmo, somos obrigados a recuar na prática de interceptar e revistar e a limitar o uso de força letal por policiais. Corpos pretos merecem autonomia assim como todos.
Quando priorizamos os direitos sobre o corpo, devemos igualmente defender o acesso universal a alimentos saudáveis, habitação segura e ar e água limpos. Lutamos contra a agressão sexual e a tortura, e defendemos os direitos dos prisioneiros (incluindo prisioneiros com deficiência, uma questão de especial preocupação para mim).
Não há propósito em fingir que a construção da coalizão é fácil. Nenhum princípio, incluindo a autonomia corporal, deve ser adotado de forma absoluta, pois precisamos de compaixão e flexibilidade a fim de nos coligar. Nós vivemos vidas emaranhadas, cheias de direitos e escolhas conflitantes. Nos limites distantes onde discutimos casos extremos, os princípios básicos geralmente se enfraquecem (pense a liberdade de expressão ou o pacifismo, por exemplo). Mas o compromisso com a autonomia corporal poderia emergir como um princípio fundamental dos movimentos atuais de esquerda.
Neste momento difícil, as forças com medo da mudança tentarão dividir-nos. Se cada grupo ativista for fixado apenas em uma fatia de política, então podemos ser compelidos a competir sobre os restos da reforma. Essa não é uma receita para a vitória eleitoral ou muito menos para a justiça.
Os princípios revelam os lugares onde as campanhas aparentemente divergentes se sobrepõem. Podemos nos unir em torno da luta pela autonomia corporal e apoiar iniciativas políticas específicas que de outra forma poderiam parecer estrangeiras à nossa área de ativismo. É vital para uma pessoa voltada principalmente ao direito das pessoas com deficiência ao trabalho, também se voltar para a descriminalização de narcóticos. Aqueles que querem legalizar a maconha também devem se unir à luta pela liberdade reprodutiva. Essas agendas específicas são e sempre foram parte da mesma batalha.