** Este artigo foi publicado originalmente no blog #AgoraÉQueSãoElas na Folha de São Paulo.
por Sonia Corrêa*
A cruzada contra a “ideologia de gênero” que volta suas baterias contra a presença de Judith Butler no Brasil não é uma novidade nem tampouco um fenômeno exclusivamente brasileiro.
Tal como analisado por inúmeras autoras, inclusive a própria Butler em Desfazendo Gênero, essa cruzada remonta aos debates nas Nações Unidas dos anos 1990, quando por primeira vez, na Conferência do Cairo sobre População e Desenvolvimento (1994), o conceito de gênero foi adotado num documento intergovernamental. Seis meses mais tarde, nos debates preparatórios para a IV Conferência Mundial das Mulheres de Pequim o termo gênero foi atacado pela direita católica norte-americana, que nele reconheceu um forte potencial desestabilizador da dita ordem natural dos sexos.
Inaugura-se aí uma vasta produção e disseminação de argumentos contra o conceito de gênero, descrito nesses textos como instrumento de uma conspiração feminista internacional. Uma peça importante desse acervo é o texto Agenda de Gênero, publicado no Brasil pela editora Canção Nova, logo após a visita papal de 2007. A partir dos anos 2000, essa produção se daria sob a égide do próprio Vaticano que em 2003 publicou Lexicon dos Termos sobre a Família de 2003 e no ano seguinte a Carta aos Bispos sobre a Colaboração do Homem e da Mulher no Mundo de 2004 – que já na sua primeira página critica a polimorfia sexual embutida nas proposições de igualdade entre homens e mulheres.
As campanhas anti-gênero, ao contrário do que proclamam seus arautos, não se gestaram nas bases das sociedades, mas sim nas altas esferas da política internacional e de elaboração teológica. Elas constituem um fenômeno transnacional que, apesar do vínculo de origem com a igreja católica, tem hoje a adesão de muitos outros atores religiosos: evangélicos, muçulmanos, budistas e, no Brasil, espíritas. Isso não significa, porém, que todas as pessoas religiosas comunguem com essa visão, nem tampouco que ela seja exclusivamente religiosa. Esse mesmo discurso também tem sido propagado por forças seculares neoliberais, conservadoras, ‘científicas’ e até mesmo por gente do campo de esquerda.
Cabe lembrar, por exemplo, que, na América Latina, um sinal forte de que essas campanhas iriam se intensificar se deu em 2013 quando o ex presidente do Equador Rafael Correa dedicou-se, num de seus programas semanais de televisão, a abominar a “ideologia de gênero que destrói a família”. Dois anos mais tarde, os legislativos de oito estados brasileiros já haviam votado pela eliminação do termo gênero dos planos estaduais de educação e decisões similares haviam sido aprovadas em vários municípios. Em seguida, a bancada religiosa dogmática da Câmara Federal excluiu o termo gênero do decreto administrativo presidencial que restringia o status da Secretaria de Políticas para Mulheres. Um ano se passou e, em 2 outubro de 2016, o referendum pelo acordo de paz na Colômbia foi derrotado por uma margem nada ampla de votos. Argumentos anti-gênero foram abertamente usados na campanha contra o acordo, especialmente por pastores evangélicos segundo os quais a “ideologia de gênero” teria vínculos com Cuba – onde o acordo foi firmado – ou mais precisamente à tradição religiosa afro-cubana, descrita por eles como culto ao demônio. No começo de 2017, campanhas anti-gênero foram para o ringue contra proposições em relação a educação sexual, direitos das pessoas trans, noções de famílias diversas e tentativas de positivar o aborto legal e seguro na revisão da Constituição do Distrito Federal do México. Em seguida um ônibus anti-gênero começou a circular no país.
Dois meses depois, o veículo anti-gênero já circulava no Chile, pragmaticamente pouco antes da votação da reforma legal do aborto, encerrada em agosto. A reforma deixou para trás a proibição absoluta da interrupção da gravidez promulgada durante o regime Pinochet. Os defensores da “Ideologia de gênero” espernearam. Até mesmo no Uruguai, país reconhecido pela cultura política secular, essas campanhas estão ganhando vulto e atacando o programa nacional de educação sexual. E, há duas semanas atrás, em Quito uma manifestação pela defesa da família atacou diretamente o projeto de lei contra violência de gênero em debate no congresso.
Essas cruzadas também têm proliferado na Europa, onde os embates têm sido mais flagrantes nos países de forte tradição católica, como é o caso da Espanha – lugar em que foi inventado o ônibus anti-gênero – ou Itália. Quando votou-se o casamento entre pessoas do mesmo sexo, a França laica e republicana também foi tomada por manifestações anti-gênero. Discursos semelhantes têm circulado na Alemanha e Áustria e ainda com mais intensidade Polônia e Hungria, Eslovênia e Croácia. Grupos anti-gênero também atuam na Austrália, onde influenciaram a convocação do referendo postal sobre casamento entre pessoas do mesmo sexo. Na África subsaariana, esses ataques enfatizam os traços colonialistas e não africanos do conceito de gênero.
A moldura semântica “ideologia de gênero” é um significante vazio e adaptável.
Cabem nela o direito ao aborto, as homossexualidades, os corpos trans, as famílias diversas, educação em gênero e sexualidade, transmissão do HIV, trabalho sexual, uma cesta básica que pode ser facilmente ajustada às condições de cada contexto. Seus discursos constroem analogias insólitas entre feminismo, teoria queer e comunismo, uma estratégia que tem ecos em contextos onde esse espectro continua ativo, como no Brasil.
Sobretudo, mobilizam lógicas e imaginários simplistas, esquemáticos e constituem inimigos voláteis – aqui as feministas, ali os gays, acolá, os artistas, mais adiante os acadêmicos, alhures os corpos trans – alimentando pânicos morais que distraem as sociedades de problemas estruturais que deveriam estar sendo debatidos, como as crescentes desigualdades de gênero, mas também de classe, raça e etnia.
Embora usem argumentos teológicos, as campanhas anti-gênero falam a língua do Animal Planet. Seus porta-vozes estão, de fato, aderindo a Darwin quando dizem que autonomia reprodutiva, as muitas formas de família e a plasticidade sexual não se opõe apenas à lei divina mas vão contra as leis da natureza. Acompanhando a sagaz reflexão de Eric Fassin cabe perguntar, contudo, se essa ordem natural que buscam proteger não é, de fato, frágil. Tão frágil que se faz necessário um brutal investimento para preservá-la.
Assim é, porque, no mundo da vida, o que está dentro da cesta “anti-gênero” são as experiências pessoais, grupais e sociais cada vez mais concebidas, percebidas e vividas como expressões da plasticidade e pluralidade humanas. Os discursos raivosos contra a visita de Butler mobilizam argumentos em defesa da natureza como estratégia para conter essas transformações. Atacam feminismos e a política sexual de modo mais amplo para preservar ou restaurar ordens políticas, culturais e sociais avessas à pluralidade, à deliberação democrática, à hospitalidade e aos horizontes de superação das desigualdades e da precariedade.
*Sonia Corrêa é pesquisadora associada da ABIA e co-coordenadora do Observatório de Sexualidade e Política. Professora visitante do Deptartment of Gender Studies da London School of Economics (LSE). Uma das feministas mais respeitadas do Brasil, pioneira em muitos dos debates que este blog desenvolve em seus quase dois anos de existência.