Em setembro, a política sexual foi intensa no Brasil e também no mundo. O marco mais relevante é, sem dúvida, o Dia Global de luta pelo Direito ao Aborto, que mobilizou protestos, debates e, no caso do Brasil, uma Virada Feminista de 24 horas de conversa sobre a questão e também um cobertura jornalística significativa. Se em 2016 quando compilamos apenas 14 registros na mídia sobre o dia 28 em 2017 foram publicadas ao menos 40 matérias e artigos. Oferecemos aqui uma compilação bastante completa das marchas, eventos, artigos e notícias nacionais e também internacionais no nosso site em inglês.
No âmbito global há muitas notícias positivas a registrar. Um grupo amplo de dirigentes e de relatoras/es especiais da ONU fizeram uma declaração de apoio ao aborto legal e seguro e um estudo realizado pela OMS foi divulgado, cujos resultados informam que criminalização do aborto não reduz sua incidência e seus efeitos nefastos sobre a saúde das mulheres. Na vizinha Bolívia, uma lei foi aprovada que alarga as causas que permitem o aborto legal e a Irlanda anunciou que realizará um referendo para mudar a sua legislação, uma das mais repressivas na Europa. Enquanto na Colômbia, depois da descriminalização do aborto em três causas em 2006, foram divulgados os resultados de uma pesquisa sobre a percepção em torno da interrupção voluntária e dos direitos das mulheres realizada em 32 capitais. Os resultados são extremamente positivos e demonstram como uma ação apoiada institucionalmente, abre caminhos para aceitação popular e até uma mudança cultural em relação ao entendimento sobre direitos sexuais e reprodutivos numa sociedade tão religiosa. Nela, 65% dos pesquisados foram favoráveis aos termos da descriminalização do aborto em três causas.
No caso do Brasil, essa ampliação e intensificação da mobilização em torno do aborto é especialmente relevante no contexto da restauração conservadora que vem se aprofundando no Congresso Nacional, em outras instâncias estatais e na própria sociedade. Isso se manifesta nos vários projetos de lei regressivos. Em especial, nesse momento, a PEC 181 cuja votação foi adiada para o dia 04 de outubro. Contudo, a restauração conservadora não está em curso apenas no Congresso nem tampouco diz respeito exclusivamente ao direito ao aborto. De fato, vem se alastrando, com virulência, por toda parte e em torno a muitas outras questões das políticas de gênero e sexualidade. Como se sabe, também em setembro, um juiz federal de Brasília concedeu uma liminar que permitia psicólogos a oferta de serviços de reversão sexual – a chamada “cura gay”. A decisão provocou reações indignadas na sociedade foi condenada pelo Conselho Federal de Psicologia, que recorreu à decisão e também pela ONU. Também teve repercussão internacional.
Ainda mais inquietante, o mês foi marcado por vários episódios graves de censura artística e intelectual. Por pressão de grupos evangélicos e do MBL, a exposição de arte ‘Queermuseu: cartografias da diferença na América Latina’ foi cancelada no dia 10 no centro cultural do Santander em Porto Alegre. (confira as peças em exibição na nossa sessão de Arte & Sexualidade). Tal medida repercutiu em outras exposições. Em seguida, foi a vez do cancelamento da peça ‘O Evangelho segundo Jesus, Rainha do céu’, que estrelava uma atriz trans como Jesus no SESC Jundiaí. (Leia aqui e aqui.) No Mato Grosso do Sul, um quadro intitulado ‘Pedofilia’ foi apreendido em uma exposição após denúncia de deputados estaduais. Como bem lembra um matéria da Folha, a onda de censura artística não é nova. Mas está se intensificando. Além dos episódios já mencionados, uma palestra de Drauzio Varella sobre gênero e sexualidade em colégio particular de São Paulo foi alvo de protesto assim como a realização do show da cantora trans Pablo Vittar.
No que diz respeito a censura, o episódio que causou mais comoção foi a performance do artista Wagner Schwartz no MAM de São Paulo. Nela, o artista nu convida as pessoas a interagirem com seu corpo. Em uma das sessões, participaram uma mãe com duas meninas pequenas, uma das quais tocou os pés e as mãos do artista. A cena gravada em vídeo fez com que a mãe fosse acusada de estar promovendo a pedofilia por representantes do MBL, por Jair Bolsonaro e por Marcos Feliciano depois que um vídeo foi divulgado da interação da criança.
Eliane Brum analisa esse furor moralista, como sempre, de maneira exemplar, sublinhando como esses pânicos morais tem o efeito de distrair a sociedade de dinâmicas estruturais, por exemplo o que se passa nos píncaros do poder. Mais especificamente o “escândalo’ da performance do MAM revelou que os pânicos em torno da inocência sexual da infância e a exposição ou contato das crianças com a nudez adulta estão espraiados através do espectro político. No Rio de Janeiro, o prefeito Marcelo Crivella (PRB) iniciou uma campanha declarando que vetaria a vinda da exposição Queermuseu, onde, segundo ele, haveria “pedofilia e zoofilia”. Em um ato de resistência nacional, as instituições culturais do Brasil e seu público lançaram uma petição. Dois artigos publicados no calor do debate merecem ser lidos pois interrogam de frente essas percepções: o texto de Sergio Rodrigues e as reflexões de Samantha Buglione. Além de Contardo Calligaris, comentando um belo artigo de Stephen Greenblatt na New Yorker nos de volta a Santo Agostinho como fonte original da concepção da sexualidade como abjeção e perigo.
Mas talvez o que seja mais dramático na cena brasileira é que essa ondas de censura e pânico moral, em grande medida, centrada na homossexualidade e nos corpos trans confluem com a necropolítica que faz do Brasil um campeão mundial de assassinatos de pessoas LGBT. E, num país em que cada 23 horas morre uma pessoa cujo gênero e sexualidade difere da norma dominante o governo (de plantão) reduziu a zero o financiamento das políticas contra a discriminação por razão de orientação sexual e identidade de gênero. Nesse cenário sombrio e volátil, não é trivial que, ao apagar das luzes do mês, o STF tenha emitido uma decisão que considera o ensino religioso confessional constitucional, a qual também foi objeto de crítica imediata por parte de juristas e ativistas do direitos à educação.(Leia nossa compilação de análises) Essa decisão vai contra recomendação da ONU. Essa decisão, entre outras coisas, vai favorecer o alastramento das campanhas contra gênero nos sistema público de educação, cujos efeitos sobre direitos humanos de meninas, mulheres, jovens e mesmo pessoas adultas LGBT, pode ser nefasto.
Considerando-se tantos retrocessos e ameaças, os protestos e intervenções artísticas que aconteceram no 11º Congresso de HIV/AIDS merecem grande visibilidade, pela presença e participação ampla de atores e atrizes sociais que são hoje alvo da fúria moralista conservadora, como também por houve aí uma performance artística com nudez e sem censura e, mais importante quando do discurso do Ministro da Saúde, Ricardo Barros, aconteceu um amplo protesto em defesa do SUS como política pública, contra cortes no orçamento e problema no abastecimento dos medicamento antirretrovirais e pela censura.
Lembramos que, em agosto, foram comemorados os 3o anos da Rede Brasileira de Prostitutas, com uma série de debates em vários pontos do país sobre as políticas que propõe a abolição do trabalho sexual e seus efeitos deletérios sobre os direitos das pessoas engajadas na indústria do sexo. Ana Paula Silva produziu um relato sobre esse ciclo de conversas especialmente para o SPW. Agradecemos muito essa colaboração.
NO MUNDO
Num resumo muito sintético do que aconteceu globalmente no campo da política em gênero e sexualidade, o fato mais significativo e preocupante do mês foi resultado da eleição alemã que deu ao AfD partido da extrema direita 90 cadeiras no parlamento. Esse resultado importa não apenas em razão dos efeitos deletérios amplos e específicos que isso implica no marco da história política alemã, mas sobretudo porque ilumina os traços fortes de homonacionalismo na política sexual europeia contemporânea. A líder do partido é uma economista liberal lésbica cujas, posições racistas contra a migração parecem explicar a ampliação da base eleitoral da AfD. (Leia mais aqui).
Nos EUA, Chelsea Manning que havia sido convidada como professora visitante pela Universidade ide Harvard, teve convite suspenso por efeito de pressões do diretor da CIA. Chelsea reagiu por twitter dizendo “orgulhosa de ter sido a primeira mulher trans a ter sido desconvidada do chamado para professora visitante em Harvard… Eles minimizam as vozes marginalizadas sob a pressão da CIA”.
Crise e violência também foram registradas na África. Em Zanzibar, a polícia prendeu um grupo de 20 pais, parceiros locais e funcionários de uma ONG num workshop sobre prevenção de HIV/AIDS. E depois no Egito, como relatado por Scott Long no The Nation. Os herois da Primavera Árabe continuam a ser apreendidos pelas garras do regime autoritário. No dia 22, o hasteamento de uma bandeira do arco-íris, símbolo LGBT, durante o show de uma banda de rock libanesa, foi o gatilho para uma violenta repressão contra a comunidade LGBT.
Nas Nações Unidas, o Relator Especial para a proteção contra violência e discriminação baseadas em orientação sexual e identidade de gênero, Vivit Muntarbhorn, se afastou do cargo por motivos familiares e de saúde. Essa é uma posição extremamente importante, cuja vacância promove certa preocupação, considerando que a população LGBTI é a mais vulnerável. Nesse mês, também aconteceu em Genebra a Revisão Periódica Universal, quando o Brasil e outros países responderam às recomendações feitas pelo Conselho de Direitos Humanos da ONU. As organizações da sociedade civil brasileiras e estrangeiras, em nota conjunta, desaprovaram a posição brasileira, confrontando as suas respostas ao cenário nacional atual de corte profundo de gastos em programas sociais. (Leia tudo sobre o Brasil na RPU pela Conectas).
Sexualidade e Arte
‘O que você não vê: a prostituição vista por nós mesmas’ – Exposição virtual do projeto “Os impactos dos megaeventos esportivos nos mercados do sexo no Rio de Janeiro” do Observatório da Prostituição.
‘Até você mudar‘ – Artista Paola Paredes, em sua obra fotográfica, explora até onde vão os limites, ou a ausência desses, entre a cura e a tortura, fazendo referência à ‘cura gay’.
Recomendamos
Compilação da decisão do STF sobre ensino religioso
Novas e Velhas Questões sobre Corpo, Sexualidade e Reprodução, artigo de Ana Paula Portela
O encarceramento de Lucinha: precariedade, gênero e silêncio – artigo de Sonia Corrêa – Observatório de Sexualidade e Política (SPW)
‘Feminicídios: conceitos, tipos e cenários’ na Revista Ciência & Saúde Coletiva vol.22 no.9 Rio de Janeiro set. 2017
Pye Jakobsson: Há quem queira trabalhar com sexo – O Globo
Como age, pensa e o que é uma mulher – Suplemento Pernambucano
Para alemãs, Merkel é um símbolo, mas não a salvadora – Folha de São Paulo
Aquelas que vieram antes de nós – Nexo Jornal
Cuerpos aprisionados – Letra ESE
Armas: a caixa de Pandora das exportações brasileiras – Nexo Jornal
A revisão da encíclica Humanae Vitae e os direitos sexuais e reprodutivos – José Eustáquio – Associação Brasileira de Estudos Populacionais (ABEP)
Dossiê: Religião, Direitos Humanos e Direitos da Natureza – Revista Horizonte v. 15, n. 47, jul./set. 2017
‘Feminismo islâmico: mediações discursivas e limites práticos’ – Tese de doutorado de Cila Lima – USP
Não perca!
OPORTUNIDADES
ONU Mulheres seleciona Coordenador de Programa na área de empoderamento econômico – Prazo: 23 de outubro
Fundo ELAS seleciona Analista de Projetos – Prazo: 20 de outubro
EVENTOS
1ª Mostra Rosa Teatral de 02 a 11 de outubro – Udesc Ceart e Teatro Armação – Florianópolis
Evento Gênero ameaça(n)do: Análises e resistências frente a movimentações conservadoras sob a perspectiva dos Direitos Humanos. Dia 30 e 31 de outubro na UERJ, Auditório 91, Bloco F
Exposição Guerrilla Girls no MASP
De 29 de setembro a 14 de fevereiro de 2018.
Aborto: Desafios para a pesquisa e o ativismo – 04 de outubro, Auditório do IMS/UERJ, de 9:30h às 17h.
“Cine Diversidade – gênero e sexualidade no cinema” vai acontecer no Centro de Artes da Maré, nos dias 06 e 07 de outubro
Lançamento do livro “Vamos fazer uma sacanagem gostosa? – Uma etnografia da prostituição masculina carioca” no dia 6 de outubro, às 17h na Livraria da Travessa, Botafogo – Rio de Janeiro
ACADEMIA
Brazilian Journalism Research – Chamada de artigos para 2018 (Vol. 14, n. 1): Jornalismo e os Estudos de Gênero. Prazo: 1 de novembro de 2017.
Compilação de oportunidades na área de gênero – Núcleo de Estudos de Gênero Pagu (UNICAMP)
II SEJA: Gênero e Sexualidade no Audiovisual em Goiânia – Chamada de trabalhos e inscrições – Prazo: 22 de outubro