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O encarceramento de Lucinha: precariedade, gênero e silêncio

Sonia Corrêa, diretora do SPW,  faz uma análise sobre o tratamento jornalístico da Folha de São Paulo dado a uma notícia que chocou o Brasil. Em Uburetama, Ceará, Maria Lúcia de Almeida Braga (Lucinha) foi mantida em cativeiro por seu pai e seu irmão por 16 anos num cômodo de 12 m² sem cama e sem vaso sanitário. No entanto, a comunidade inteira sabia de Lucinha, mas não enxergava como cativeiro. No mínimo, é uma notícia que levanta muitas perguntas e questões, as quais Sonia explora neste artigo.

 

Essa matéria da Folha de São Paulo deflagra uma pletora de dimensões e questões que, lamentavelmente, não foram, como deveriam ter sido, objeto da investigação jornalística.

A primeira delas é a precariedade extrema, no sentido definido por Butler, que caracteriza o contexto familiar e social em que Lucinha ficou presa em cativeiro durante 16 anos. Seu crime teria sido ter sexo e engravidar. Essa precariedade é descrita, mas não é examinada a fundo. Não é percebida como condição que, em parte, explica essa brutal violação imposta a ela e sua mãe pelo pai e pelo irmão. Falo aqui do não-lugar, do desamparo, do desalento, de vidas ao largo nas quais a coerção e violência são naturalizadas. Situações como essa não estão apenas em Uruburetama mas em muitos outros espaços desse nosso país tão desigual.

Luiza Prado

A segunda é a oclusão da dimensão gênero-sexualidade mais que flagrante nos contornos dessa trágica história. A matéria diz que, segundo o irmão, Lucinha foi presa “para não ser de novo abusada”. Ela menciona que a mãe de Lucinha também estava cativa, embora em ‘melhores condições’. No entanto, em nenhum momento, investiga as razões do encarceramento materno ou estabelece conexões com a punição de Lucinha por seu deslize sexual. Sobretudo, não diz com todas as letras o que deveria ser dito. O que aconteceu nesse sítio distante do sertão cearense foi que dois homens (um pai e um irmão) trancafiaram uma jovem mulher porque ela teve relações sexuais e engravidou e o mesmo fizeram com sua mãe. Talvez o tenham feito porque consideraram que ela teria sido conivente. Mas não sabemos. Dito de outro modo, a matéria deixou escapar uma oportunidade para examinar como — em situações extremas de desamparo e de carência de recursos materiais e simbólicos — a lei que resta é o poder do pai, ou a lei dos homens sobre os corpos das mulheres.

Mas não é só isso, há muito mais. A terrível história de Lucinha também é assombrada pelo espectro da conivência social ampla, geral e irrestrita com a violência intramuros. Não só o texto deixa evidente que o povoado sabia o que acontecia, como também informa que o filho de Lucinha, Pablo, ia visitá-la no cativeiro, acompanhado pela vizinha que cuida dele desde que nasceu. Lucinha deixou de frequentar a escola quando foi trancafiada, mas ninguém do sistema educacional fez nada para levá-la de volta. Em nenhum momento até a denúncia anônima de alguns meses atrás, ninguém fez nada com relação ao que acontecia.

Como não perguntar o que explica esse silêncio e inação? Seria descaso, medo ou simplesmente, o velho habito de achar que o que se passa entre as quatro paredes de uma casa, lá mesmo deve ficar? Lamentavelmente, essa dimensão tampouco foi explorada como deveria ter sido pela matéria.

Não menos importante, o autor do artigo comprou a interpretação psiquiátrica de que Lucinha tem esquizofrenia simples de origem congênita sem maiores interrogações. Não levantou a hipótese muito razoável de que qualquer pessoa submetida às condições em que ela viveu durante 16 anos, pode desenvolver sintomas de dissociação e paranoia. Não considerou que sendo Lucinha ‘doente mental desde sempre’, seu cativeiro seria justificável para muit@s leitor@s, ainda que em outras condições.

Finalmente, a matéria tem um aspecto positivo. Pergunta corretamente se o caso deve ser objeto da justiça criminal. Ou seja, levanta dúvidas quanto ao uso da lei penal como recurso para reparar o sofrimento de Lucinha. Mas não pergunta, como deveria fazer num caso como esse, se faz sentido incriminar um indivíduo, o irmão de Lucinha. Podemos considerar que esse caso pode não ser pensado pela ordem criminal quando contou com a cumplicidade de uma comunidade inteira e de atores estatais, como é o caso de professoras e outros responsáveis pelo sistema escolar de Uruburetama. Nesse, como em outros casos semelhantes, a lei penal é decididamente inócua.



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