Pelo mundo afora
O mês de agosto nos trouxe inúmeras notícias, principalmente positivas, sobre a política sexual ao redor do mundo. Na Índia, a Suprema Corte concedeu um veredito a favor do direito constitucional à vida privada, que tem impacto principalmente sobre os direitos das minorias. No Chile, o Tribunal Constitucional aprovou uma nova lei que acaba com o a proibição draconiana ao aborto, que se estabeleceu desde os anos 1980 com a ditadura de Pinochet.
A decisão indiana é surpreendente. Ela não tem efeitos em relação ao conteúdo do artigo 377 do Código Penal, que continua a proibir o sexo homossexual. No entanto, a decisão expande a interpretação sobre o direito à privacidade ao abordar diversidade cultural, pluralidade e, principalmente, ao reconhecê-lo não só como ser deixado sozinho num espaço privado, mas também em respeito à noção de pessoa e sua habilidade em decidir o curso de sua própria vida. A decisão é crucial não só para pessoas queer, mas também para outras minorias sociais e para a igualdade de gênero.
A decisão do Tribunal Constitucional no Chile no dia 21 e a promulgação no dia 28 pelo Parlamento concretizaram a conquista do movimento de mulheres no país pela luta ao aborto. No entanto, a lei abre a exceção da objeção de consciência, que permite indivíduos e instituições a se negarem em fazê-lo, o que poderá ser um obstáculo ao acesso a esse direito recém conquistado, a exemplo da experiência uruguaia. Finalmente o país não estará na lista daqueles que proíbe o procedimento em qualquer caso (leia nossa compilação sobre a medida aprovada no Chile).
Essa importante decisão parece ter influenciado a região, mais especificamente El Salvador. A partir de uma coalizão de Deputados, um projeto de lei foi encaminhado para despenalizar o aborto em alguns casos. Essa iniciativa segue a repercussão internacional negativa a respeito da condenação a 30 anos de prisão, em julho, a Evelyn Hernández, depois de ser estuprada e dar à luz um natimorto.
Ainda sobre o Chile, Michelle Bachelet tem pressa de aprovar medidas progressistas antes do fim de seu mandato. No dia 29, foi enviada ao Congresso o projeto de lei que permitiria o casamento igualitário e também garantiria o direito a adoção por famílias homoparentais. No Nepal, aconteceu o primeiro casamento trans, entre uma mulher trans e um homem cis. Além disso, também no Nepal, a prática de chaupadi, apesar de já ter sido banida, passa a ser penalizada. A medida, segundo especialistas, mais do que depender de punição, deveria se basear em ações educativas, pois essa é uma prática historicamente entranhada na cultura e hábitos do país.
Em contramão, as boas notícias não se refletiram na Austrália, quando o Primeiro Ministro invocou uma pesquisa nacional para estimar a opinião nacional sobre o casamento igualitário sob a forma de um questionário postal. A medida teria como objetivo agradar os setores mais conservadores e deixar de fora os mais jovens. Além disso, a chamada levantou a questão de forma a contribuir para manifestações intolerantes de conteúdo homofóbico e transfóbico pelo país. (Leia nossa compilação de análises sobre o tema em inglês.) O clima tampouco é favorável na Nigéria, onde 42 homens foram presos por cometerem atos homossexuais e estão sujeitos a 14 anos de prisão. Enquanto isso, em Uganda, a Parada de Orgulho LGBT foi suspensa pelo segundo ano consecutivo.
Uma série de medidas legais em relação aos direitos das mulheres muçulmanas foram tomadas no Oriente Médio e na Índia. Em julho, a Tunísia aprovou uma lei inovadora para enfrentar a violência doméstica contra a mulher. Em agosto, os Parlamentos do Líbano e da Jordânia revogam leis que anistiavam agressores acusados de cometer estupro, caso se casassem com suas vítimas. Enquanto na Índia, a Suprema Corte considerou inconstitucional a lei que permitia o divórcio instantâneo (talaq, talaq, talaq) de forma unilateral. Apesar de ser uma conquista jurídica, especialistas feministas do Direito argumentam que a medida não promove melhoras concretas à vida das mulheres indianas. (Leia a análise em inglês.)
No Brasil
A política sexual foi especialmente intensa em agosto no Brasil. No Congresso, foram registradas novas ameaças ao direito ao aborto, inclusive nos casos já previstos em lei (estupro, risco de vida e anencefalia). Utilizando o pretexto de uma proposta de emenda à constituição para prolongar a licença maternidade para mães de bebês prematuros, deputados das bancadas religiosa e conservadora incluíram no texto a premissa de que vida é inviolável desde a concepção (aqui e aqui). Como se sabe, essa não é a única proposta legislativa que visa restringir ainda mais o acesso ao aborto no Brasil. Nesse sentido, a Frente Nacional pela Descriminalização lançou um Alerta Feminista sobre esses projetos e lembramos que o tema também é prioridade da Campanha lançada pela Anistia Internacional, Nossos Direitos não se liquidam.
Também no Congresso nacional, agora no Senado, voltou à tramitação o PLS 658/2011, encaminhado pela Senadora Marta Suplicy (PMDB) que trata dos direitos das pessoas trans. Essa proposta já havia sido objeto de crítica severa por parte de organizações de travestis e transexuais em 2007, porque preservaria o diagnóstico psiquiátrico como requisito para mudança de identidade e acesso à readequação cirúrgica. Nessa nova etapa da tramitação, a ABGLT também lançou uma nota pública, criticando esse e outros aspectos do projeto de lei.
Contudo, duas boas notícias foram registradas no planalto central. Na Segunda Conferência Nacional de Saúde da Mulher, foi aprovada uma moção pela descriminalização do aborto e, no âmbito do legislativo federal, o Projeto de Lei 198/2015 – que propunha “tornar crime hediondo a transmissão do HIV” – foi finalmente retirado de tramitação na Câmara de Deputados, em Brasília, no dia 31/08. (Leia a nota da ABIA.)
O mês também foi marcado por debates e acontecimentos no campo da prostituição. Em comemoração aos 30 anos da Rede Brasileira de Prostitutas, a própria Rede, o Coletivo DAVIDA e o Observatório da Prostituição (UFRJ) organizaram o ciclo de debates “Um século e meio de abolicionismo“. O ciclo se iniciou na Conferência Fazendo Gênero em Florianópolis, acontecendo também em Campinas, Belo Horizonte e Rio de Janeiro e contou com a participação de ativistas brasileiras do movimento de profissionais do sexo, como Lourdes Barreto, Monique Prada, Betânia Santos, Indianara Siqueira e as convidadas internacionais Pye Jakobsson e Mindy Chateauvert. No ensejo, a Folha de São Paulo publicou uma entrevista com Jakobsson, presidente da Global Network of Sex Work Projects, para quem alguns setores do movimento feminista falam em nome das profissionais do sexo normalizando a violações a que elas estão sujeitas.
E essas violacões são frequentes. Por exemplo, em São Paulo, também em agosto, uma ação conjunta do Ministério Público, da Guarda Civil Metropolitana e da Polícia Militar da Prefeitura de Santana Tucuruvi deflagrou uma operação que fechou diferentes estabelecimentos e selou suas portas com cimento. Monique Prada escreveu sobre os efeitos dessas medidas criticando o caráter autoritário da intervenção. Em contraste, na mesma semana, a Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro absolveu os donos de um prostíbulo do crime de exploração sexual, ao interpretar que o consentimento e a maioridade das mulheres não constituía exploração.
Contudo, o debate quente do mês foi decididamente o estupro. Uma pesquisa sobre estupro no país, realizada pelo Ministério da Saúde e o Sinan, descreveu que acontecem 10 estupros coletivos diariamente no país. Apesar dos dados alarmantes, raramente esses fenômenos são relacionados às suas causas estruturais e a medidas que atuem na sua prevenção. Especialmente quando pensamos no papel das masculinidades dominantes ou tóxicas e os efeitos que os ataques a “ideologia de gênero” propagados por setores conservadores e religiosos poderá ter sobre a violência sexual. Alguns dias após a divulgação do resultado da pesquisa, Clara Averbuck, escritora gaúcha, foi às redes sociais para denunciar um estupro que havia lhe acontecido pelo motorista contratado pelo serviço de transporte privado Uber. A repercussão foi tanta que iniciou a campanha #meumotoristaabusador, quando muitas mulheres compartilharam relatos parecidos que sofrem cotidianamente.
Na mesma semana, três casos de assédio no transporte público no Rio de Janeiro e em São Paulo, em que mulheres sofreram uma ejaculação tomou as redes. Apesar de ser um caso corriqueiro, esse chamou atenção pois o agressor de São Paulo tinha cometido vários delitos similares anteriormente, incusive com registro policial. O juiz da audência de custódia que decidiu sobre o caso considerou que “não houve constrangimento (na forma da lei), tampouco violência ou grave ameaça” e liberou o suspeito no dia seguinte. Alguns dias depois, o mesmo homem foi levado à prisão preventiva por ter cometido outro assédio e por outro crime em 2013, além de outros nove processos criminais em que está envolvido. O caso acabou classificado como atentado violento ao pudor, cuja pena será o pagamento de multa. A polêmica promoveu um debate marcado por ambiguidade sobre os limites da Justiça em relação à proteção dos direitos das mulheres e à tipificação do crime de estupro, sobre a eficácia da penalização como resposta e injustiças promovidas pelas condenações e sobre o machismo como cultura do cotidiano. (Leia nossa compilação recheada de análises sobre o evento.)
Assista e leia
Nesse mês em que a questão da criminalização de sexualidade teve muita visibilidade e ABIA e o CEDAPS organizaram uma roda de conversa sobre o tema que contou com os aportes de Maria Lúcia Karam, Marclei Silva, Verino Terto e Sonia Corrêa. Para assistir o debate clique aqui e não deixe de ler o artigo apresentado por Maria Lúcia Karam.
Também em agosto, aconteceu mais um evento para marcar os 30 anos da ABIA no enfrentamento da AIDS. No dia 9, relembrando a partida de seu primeiro presidente, Betinho, realizou-se na ABIA um momento de reflexão e memória sobre sua inestimável contribuição para a política da sociedade civil brasileira e, mais especialmente, para a resposta à epidemia.
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