Originalmente publicado no site da Conectas
Patrick Alley, Global Witness
Editor convidado
Oliver Hudson, Revista Sur
Editor-chefe
Cinco anos atrás, em 26 de abril de 2012, Chut Wutty, um corajoso defensor cambojano dos direitos à terra, foi morto a tiros pela polícia militar cambojana. Foi esse assassinato que levou a Global Witness a lançar uma campanha que documentasse anualmente os assassinatos em todo o mundo de defensores ambientais e do direito à terra, pois Chut Wutty era um antigo colega nosso e sua morte nos aproximou da dura realidade das ameaças que muitas pessoas comuns enfrentam diariamente defendendo suas terras e seus direitos.
No transcorrer dos anos, nossos relatórios documentaram uma tendência crescente nesses assassinatos. No entanto, sabemos que provavelmente isso seja apenas a ponta do iceberg, pois esta é uma área vastamente subnotificada. Ademais, o relatório anual não inclui as ameaças jurídicas e físicas e o assédio que outras milhares de pessoas enfrentam, principalmente porque são extremamente difíceis de documentar.
Os defensores ambientais e do direito à terra são pessoas comuns que, de repente, descobrem que a terra de suas comunidades foi negociada, sem o seu conhecimento ou consentimento, para um empreendimento industrial, como uma barragem, mina, plataforma petrolífera, extração madeireira ou monocultura agrícola. Essas operações normalmente envolvem corrupção, o que significa que os políticos e autoridades implicados se beneficiaram pessoalmente de alguma forma e então devem sua fidelidade não aos cidadãos a quem deveriam representar, mas a alguma corporação. Se o poder judiciário e os órgãos responsáveis pela aplicação da lei também foram comprados, as comunidades locais estão abandonadas. Os órgãos estatais que são destinados a protegê-las, ao invés disso, se tornam o próprio mecanismo que as ameaça e as priva de quaisquer meios legais de reparação. Então as comunidades fazem a única coisa que lhes resta: elas protestam – e, por se manifestarem, bloquearem estradas de acesso, inutilizarem máquinas, seus membros são ameaçados, espancados e, muitas vezes, assassinados.
Esses assassinatos remetem a um problema muito maior. Os recursos naturais valem muito dinheiro e, quanto mais escassos, mais as empresas querem controlá-los. A busca da riqueza oriunda dos recursos naturais deu origem ao colonialismo predatório corporativo e privado exemplificado pela Companhia das Índias Orientais e pelo Congo do rei Leopoldo nos séculos XVIII e XIX e que continuou de forma semelhante desde então, embora sob nova gestão.
Atualmente, o sistema funciona de acordo com os mesmos princípios, mas em diversos aspectos fundamentais é muito menos visível. Os recursos naturais continuam a fluir inexoravelmente para os países consumidores ricos, como antes – colonialismo extrativista – mas grande parte do dinheiro ganho desaparece em contas bancárias secretas detidas por uma parcela de empresas de propriedade anônima com sede em paraísos fiscais e jurisdições sigilosas. Somente de modo ocasional, quem sabe por meio de um vazamento de dados como os Panama Papers, os verdadeiros proprietários dessas empresas serão identificados e a escala do saque de alguns dos países mais pobres do mundo será conhecida.
Os artigos desta edição da Sur – Revista Internacional de Direitos Humanos reúnem alguns estudos de caso notáveis e significativos que ilustram que a exploração de recursos naturais é uma das principais causas de diversas violações de direitos humanos. A apropriação ilegal de terras, a instabilidade, a exacerbação da pobreza, a destruição e poluição de terras essenciais à sobrevivência das comunidades indígenas e de outras comunidades e, nos piores casos, assassinatos e guerras, são muitas vezes os resultados diretos da extração de petróleo e minerais, de projetos de energia renovável, da exploração de madeireiras e da agricultura industrial.
O papel da lei na prevenção da exploração
O Afeganistão possui diversas leis e regulações supostamente para proteger sua vasta riqueza mineral, recursos que a coalizão internacional que está tentando trazer paz para o país alardeia como sua salvação. Contudo, Javed Noorani (Afeganistão), apresenta uma conjuntura perturbadora sobre o que a exploração de recursos naturais significa em um contexto de corrupção, instabilidade e governança débil. Seu estudo de caso descreve como – apesar de um quadro jurídico teoricamente forte no país – políticos corruptos, senhores da guerra e insurgentes talibãs estão com a boca na botija mineral, enriquecendo, financiando suas guerras e saqueando o Estado. Silas Siakor (Libéria) oferece uma narrativa convincente sobre os danos causados pela exploração ilegal dos recursos naturais no país. O autor detalha como a sociedade civil da Libéria se uniu para exigir o aprimoramento do quadro jurídico, especificamente em relação ao setor madeireiro, para ajudar a garantir que as graves violações de direitos humanos infligidas na população local não possam voltar a acontecer. Foi a organização de Silas, juntamente com a Global Witness, que trabalhou para documentar, expor e advogar contra o comércio de madeira para a compra de armas do (então) presidente Charles Taylor, que resultou em sanções das Nações Unidas (ONU) contra a madeira liberiana.
O papel do Estado e da iniciativa privada na exploração dos recursos naturais
Aseil Abu-Baker (EUA) descreve como, para além da força militar e da construção do muro da Cisjordânia, Israel exerce o controle derradeiro dos territórios ocupados – por meio da empresa estatal de água Mekorot – usando a água como uma arma de poder, que atinge o âmago dos direitos das pessoas. Ordens militares, um acordo injusto de partilha da água e um regime discriminatório de planejamento e concessões criam e mantêm um abrangente sistema de controle sobre os recursos hídricos, garantindo que os palestinos sejam proibidos de exercer direitos soberanos sobre seus recursos hídricos. Aseil vai um pouco mais longe e expõe como Israel criou de fato um sistema de “apartheid da água”. Da mesma forma, Renzo Alexander García (Colômbia) oferece uma sucinta visão geral do recente e altamente inovador referendo popular no município de Cajamarca, Colômbia. Apesar de a população local demonstrar de forma esmagadora que não quer a presença de mineradoras na sua região, o governo da Colômbia está ameaçando anular uma decisão democrática, ainda que o método para chegar a ela seja protegido pela Constituição colombiana. As consequências devastadoras da ganância e da negligência corporativa e estatal são detalhadas na contribuição de Michael Power e Manson Gwanyanya (África do Sul). Eles apresentam detalhes arrepiantes sobre as circunstâncias que levaram ao massacre policial de trinta e quatro mineiros em Marikana, na província do noroeste da África do Sul. Finalmente, Caio Borges (Brasil) e Tchenna Fernandes Maso (Brasil) discuten como a destruição da bacia do Rio Doce com o rompimento da barragem de rejeitos de mineração da empresa Samarco, em 2015, é um caso emblemático da tensa relação entre assegurar direitos humanos, dentro de standards internacionais, e a ação das empresas, sobretudo transnacionais em países do Sul Global
Exploração de recursos naturais e mudanças climáticas
Os acontecimentos em Marikana, África do Sul, e Mariana, Brasil, ilustram com uma clareza devastadora as consequências imediatas da exploração dos recursos naturais. No entanto, o efeito da exploração de recursos naturais sobre o clima é normalmente esquecido. Tessa Khan (Bangladesh/Austrália) não somente mostra que a mudança climática é um dos mais poderosos, na realidade apocalípticos, causadores das violações de direitos humanos, como também destaca a necessidade de responsabilizar aqueles que não conseguem diminuir as emissões de carbono. Tessa lista numerosos exemplos de processos judiciais movidos contra empresas e governos que os obrigam a agir. O artigo de Michael Klare (Estados Unidos) nos demonstra a necessidade de responsabilizar os governos. As empresas petrolíferas são especialistas em usar seu poder de lobby e se envolver em corrupção direta para evitar ou enfraquecer as regulamentações financeiras e ambientais no Sul global, e agora estão empregando as mesmas táticas nos EUA e no Canadá, como parte do crescimento vertiginoso do fracking, assim como fizeram em todo o Sul global. Enquanto isso, na tentativa de ilustrar que a mudança climática já está tendo um impacto bastante real nas vidas dos indivíduos, esta edição da revista apresenta o trabalho de dois fotógrafos – Jashim Salam e Khaled Hassan (Bangladesh). Suas lindas – ainda que assombrosas – fotografias mostram como duas comunidades no delta do Ganges estão se adaptando a uma nova realidade à medida que as mudanças climáticas causam estragos em suas vidas cotidianas.
O papel dos indivíduos na proteção de nossos recursos naturais
É o indivíduo que deve estar no centro de qualquer discussão sobre a exploração de recursos naturais. Não somente os direitos humanos desses indivíduos são sistematicamente violados pela exploração dos recursos naturais, como também são eles que se opõem ao Estado e às empresas privadas, muitas vezes colocando suas vidas em risco enquanto fazem isso. A vida e a trajetória de Berta Carcares – uma das principais defensoras de direitos humanos da atualidade – são celebradas de modo eloquente por Patricia Ardón e Daysi Flores. Longe de silenciá-la, o assassinato de Berta em 2015 impulsionou seu trabalho para a esfera global. Seu legado serve de inspiração para os movimentos sociais liderados pelas comunidades em todo o mundo e para o papel de liderança desempenhado pelas mulheres nestes movimentos. O filantropo Alex Soros (EUA), escreve um artigo de opinião sobre o papel fundamental desempenhado pelos defensores de direitos humanos e ambientais e a responsabilidade que as pessoas com recursos têm em apoiar suas atividades.
A Sur 25 também traz o perfil de três mulheres que lutam pelos direitos humanos e ambientais, inspiradas por suas crenças religiosas e originárias de comunidades impactadas em grande medida pela exploração de recursos naturais (desmatamento, extrativismo, monocultura, etc.). Beata Tsosie Peña (EUA), Jennifer Domínguez (Guatemala) e Jôice Cleide Santiago dos Santos (Brasil) foram três participantes da conferência ecumênica “Fé no clima” que aconteceu no Rio de Janeiro em maio de 2017. O objetivo do encontro foi discutir as mudanças climáticas e fortalecer uma rede de defesa de direitos.
História em Quadrinhos
Reconhecendo a necessidade de encontrar formas alternativas de comunicação para novas audiências, a Revista Sur tem o prazer de apresentar uma trecho da história em quadrinhos “La Lucha: A História de Lucha Castro e os Direitos Humanos no México”, idealizada pela Front Line Defenders. A história em quadrinhos retrata os perigos do trabalho diário de ser um defensor de direitos humanos no México e são contextualizados com um prefácio de Lucha Castro, em cujo importante trabalho os quadrinhos se baseiam.
Ensaios
Ainda em relação ao México, temos a honra de apresentar duas contribuições do país. Primeiramente, Alejandro Anaya Muñoz examina o desenvolvimento dos regimes internacionais de direitos humanos, em um contexto de relações internacionais. O texto é de fundamental importância para qualquer pessoa interessada ou estudando RI ou direitos humanos. Um conjunto de autores (Santiago Aguirre Espinosa, Stephanie Brewer, Sofía de Robina e María Luisa Aguilar) do Centro de Derechos Humanos Miguel Agustín Pro Juárez (Centro Prodh) discute a maneira inovadora que o Grupo Interdisciplinar de Peritos Independentes, nomeado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos, investigou o caso dos quarenta e três estudantes desaparecidos de Ayotzinapa e examina por que sua metodologia pode ser vista como um exemplo de boa prática para investigações semelhantes no futuro.
Com base em um recente relatório que argumenta que a violência no México equivale a crimes contra a humanidade, Marlon Alberto Weichert (Brasil) faz a mesma pergunta em relação ao Brasil e à violência desproporcional infligida na população negra. Concluindo nosso conjunto de artigos, Vincent Ploton (França) examina os recentes desenvolvimentos nos órgãos de tratados da ONU, particularmente focando em como suas recomendações podem ser mais eficazes. Vincent se baseia no sucesso das recentes inovações realizadas pelo Comitê Contra a Tortura.
Diálogos
Juan E. Méndez (Argentina) conversa com a Revista Sur sobre seus seis anos como relator especial da ONU sobre Tortura e outros tratamentos ou punições cruéis, desumanos ou degradantes. Ele explica como suas experiências anteriores na Argentina deram base ao trabalho de sua vida, como foi nomeado relator especial e suas conquistas durante seu mandato.
Experiências
A Revista Sur sempre procura incluir materiais que seus leitores possam usar na prática. Irit Tamir (EUA) oferece excelentes sugestões sobre como construir uma campanha efetiva, tendo como base a campanha bem-sucedida da Oxfam “Por trás das marcas” (Behind the Brands, na denominação original em inglês), que buscou influenciar as políticas de fornecimento das dez maiores empresas de alimentos e bebidas do mundo.
Perspectivas Institucionais
A organização Médicos Sem Fronteiras (MSF) apareceu nas manchetes internacionais após a sua decisão de não receber mais financiamento da União Europeia (UE) em 2016, com base na oposição à política migratória da UE. Nesta edição, Susana de Deus (Portugal) e Renata Reis (Brasil) discutem o processo – e a controvérsia – por trás da decisão.
Vozes
Philip Alston (Austrália), membro do conselho consultivo da Revista Sur e acadêmico de direitos humanos de renome internacional, oferece sua opinião sobre o estado atual do movimento de direitos humanos e como este deve – com urgência – reagir para manter sua relevância.
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Por fim, gostaríamos de enfatizar que esta edição da Revista Sur foi possível graças ao apoio da Fundação Ford, Instituto Clima e Sociedade, Open Society Foundations, Oak Foundation, Sigrid Rausing Trust, International Development Research Centre (IDRC) e Swedish International Development Cooperation Agency (SIDA), bem como de alguns doadores anônimos.
Nós também somos extremamente gratos às pessoas abaixo pela colaboração a esta edição: Akemi Kamimura, Ana Carolina Alfinito, Aparecida H. Soares, Bonita Meyersfeld, Bruno Huberman, Caio Borges, Celina Lagrutta, Daniella Hiche, Evandro Lisboa Freire, Fernando Campos Leza, Fernando Sciré, Josua Loots, Karen Lang, Kristina Ardaga, María José Guembe, Muriel Asseraf, Renato Barreto, Sebastián Porrúa Schiess, Stephen Carter, Tom Lomax e Vivian Calderoni. Além disso, agradecemos especialmente a colaboração dos autores e o trabalho árduo da equipe editorial e do conselho executivo da Revista.
Por último, a equipe de comunicação da Conectas merece um enorme reconhecimento por sua dedicação a esta edição. Como sempre, somos muito gratos pelo inestimável apoio e orientação dos diretores da Conectas Direitos Humanos – Juana Kweitel e Marcos Fuchs.