Sxpolitics [PTBR]

A montanha pariu um papa

João Manuel de Oliveira*

 

Captura-de-Tela-2017-07-07-às-16.02.46Reza a lenda que Portugal é um país conservador, com um suposto glorioso passado — claro, a colonização e o seu envolvimento no tráfico de escravxs absolutamente retirado da equação –, profundamente religioso e muito marcado pela influência de um catolicismo endêmico. Os sociólogos sempre com a sua equação Europa do norte – ética protestante (capitalista?) Vs. Sul – catolicismo – lógica do perdão, seguem a descrever o retângulo — a quem Chico Buarque pedia cheirinhos de alecrim — como profundamente camponês, atrasado e beato, santarrão, com cheiro de vela e igreja pelo país afora. As ciências sociais, que se desenvolvem no exterior e em Portugal apenas depois da Revolução, rapidamente adotam como hegemonia o nacional positivismo que aprenderam fora. Alimentados pela ideia “que bom que era estar em Oxford e que miséria que viemos parar à piolheira[1]”, muitxs cientistas sociais antes de esquerda (agora já nem tanto), esqueceram que Portugal não é apenas um país da Europa e da União Europeia, quando o descrevem por comparação a outros. Mas que fora um dos impérios coloniais mais longos da história, descrito por Boaventura de Sousa Santos como estando entre Próspero e Caliban, entre colonizadores e colonizados, na shakesperiana Tempestade. A posição semiperiférica, que o nacional positivismo das ciências sociais (inconscientemente) emula, ratifica e legitima, sorrindo alegremente, enquanto se ajoelha a qualquer anglo-saxônico que por cá passe.

Captura-de-Tela-2017-07-07-às-16.13.14Parto desta figura fundo: uma crítica aberta sobre os diagnósticos produzidos sobre o país que precisava desenvolver-se, democratizar-se e descolonizar-se. Sempre esquecendo as diferentes temporalidades de um país, com esta configuração, e uma colonização que nunca mais acabava, estendendo-se ao longo do século XX, espremido entre impérios mais impérios que este e colônias que chegam a ser metrópole. Este olhar sobre o país implica a tanto sua incomparabilidade com a maioria dos países da Europa Ocidental quanto o fracasso da teoria do atraso, teoria ela mesma colonial, e da mesma lógica que as potências coloniais aplicam aos países que colonizam/ram. Efeito de semi-periferia. Esta figura narrativa tende a obviar o esforço de modernização do país como se ele tivesse acontecido apenas movido a fundos estruturais europeus (e sim, claramente não teria sido possível sem eles), esquecendo a utopia da revolução, o país de Abril, a esquerda nas ruas, a ruptura total com o fascismo. E também desse povo, que Glauber Rocha entrevistava de forma excitada– como outrxs realizadorxs que aqui estiveram e daqui filmaram– uma revolução que, como uma cascata, transformava léxicos políticos, abria horizontes de possibilidades, punha Portugal a fazer o impensável. O povo que a sociografia trata como atrasado face aos outros, mais europeus.

Captura de Tela 2017-07-07 às 18.16.17Para mim, feminista, a revolução começou num livro, as famosas três Marias – Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta, Maria Velho da Costa no seu Novas Cartas Portuguesas – a desfazerem de uma vez o gênero, o fascismo, a colonização e a sua guerra podre e o patriarcado nacional católico. Em 1972, pediram o aborto, o direito ao nosso corpo – título de livro em 1975. Só o tivemos em 2007, servindo à Igreja Católica o sinal da sua destituição como força inelutável – Relembro Paula Rego e a sua série de quadros sobre o aborto. Tivemos a infelicidade de recentemente uns senhores mui católicos em nome da lei contra as desavergonhadas que ousavam fazer escolhas, a quem se chegou a pedir que assinassem ecografias para lhes garantir a tortura de verem o embrião. Tudo em nome do austericídio – políticas de austeridade que culminam com o esvaziamento do Estado Social, degradação das condições de vida e de saúde da população, cortes de salário e rendimento- que vivemos, entre 2011 e 2015 nas mãos de um governo de lacaios, dispostos a fazer o que o eixo alemão da União Europeia, o Fundo Monetário Internacional e o Banco Central Europeu entendessem, desde piruetas econômicas a outras acrobacias amestradas. Obediência cega, cortes cegos, austeridade que mata – sem importar as consequências para a população. É este o papel que a direita fez durante os anos do austericídio. Felizmente, soubemos ver-nos livres disso e num revés da história, as esquerdas juntaram-se contra os amestrados. Esses mesmos os derrubámos, as esquerdas juntas, para a incredulidade da direita que não acreditava que estava a ser apeada. Boa noite e boa sorte, augurando-nos um abismo, porque sem eles os senhores da Europa iam apertar-nos contra a parede. Afinal não.

Captura-de-Tela-2017-07-07-às-16.20.29Esta história começa antes. Já antes a Igreja Católica e a direita mais ébria de cercear o espaço de vida das mulheres com a derrota no referendo de 2007. A partir deste momento, entendemos e entendeu toda a esquerda, que a igreja já não ia definir a maioria da posição política. Jogaram um papel essencial nessa descredibilização: um maior laicismo e menos prática religiosa generalizada, a internacionalização e cosmopolitismo e seu desejo, o repúdio à prisão de mulheres que a lei anterior pressupunha, os Médicos pela Escolha que cindiram a classe médica ao meio e os argumentos pró-vida — na realidade anti escolha — que foram percebidos como muito conservadores e desajustados na sociedade portuguesa contemporânea.

A sucessão de leis a seguir a este primeiro pontapé na porta do conservadorismo implicaram: casamento entre pessoas do mesmo sexo, lei de identidade de gênero, adoção para casais do mesmo sexo, procriação medicamente assistida para lésbicas e outras mulheres não necessariamente casadas. Aguardamos a lei da autodeterminação de gênero, que vai interromper a colonização que alguma classe médica ainda faz dos corpos das nossxs companheirxs trans* e intersexo. Sendo certo que não partimos da posição liberal — e que sabemos das limitações de um modelo juridificado de direitos face aos seus usos — esta viragem foi imprevista pelos cientistas sociais comentadores no espaço público (o masculino é aqui propositado), sendo disso um belo exemplo o fim de semana do 13 de Maio de 2017.

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Essa data, em Portugal, assinala, para certos setores do catolicismo, supostas aparições que podem ser lidas como uma das primeiras tentativas de desestabilização da Primeira República, de condenação da Revolução Russa e tentativa do catolicismo e do nacional conservadorismo em conter as tendências republicanas e socialistas em Portugal. Nela se deu, em 2017, a aparição papal no santuário, a canonizar as figuras desse evento, Francisco e Jacinta, jovens pastorxs que receberam a suposta visita celestial. A imprensa preparou o evento convenientemente, jornais com títulos que incluíam as aparições, as televisões prepararam entrevistas, perguntava-se sobre a fé e os milhões que lá iriam. E lá foram. Fátima, fenômeno de turismo religioso que está tão na moda como a sardinha da Lisboa airbnb’zada e reduzida aos atípicos tuk tuk. O Papa esteve aqui e esperava-se grande contenção nacional e muita circunspeção, com senhoras vestidas de negro de véus pretos na cabeça.

Na realidade, o Benfica ganhou o campeonato de futebol e na Eurovisão, Portugal ganhou pela primeira vez. Lisboa desfez-se em festa. O resto do país também. Fátima permanecia sem se perceber. O futebol e a música engoliram a vaticana visita, reduzida a estrela menor do fim de semana. A mudança editorial espantou quem segue os sonhos dos sociólogxs de Oxford (e outras almas mater de pior catadura) sobre o povo “indígena” (usam a expressão como pejorativa, o que já de si diz muito sobre eles, não sobre o povo). Resumiu-se toda a preparação, anos de catequese, muita preparação para os sacramentos, muito esforço de ideologização. Mas Bergoglio, o papa do marketing social, não passou de uma visita eclipsada num país que mostrou que — ao contrário da imagem que certa sociologia lhe criou– é muito mais diverso, tem de tudo e não se limita apenas a um só alimento: onívoros.

É certo que se o catolicismo está a perder terreno, há outros atores em campo também, alguns bem sinistros e bem conhecidos do Brasil, mas há igualmente um desejo de futuro e de não sermos aquilo que eles querem que sejamos. Assim é nas políticas sexuais, na política de um país com um governo socialista, apoiado pelo Bloco de Esquerda e pelo Partido Comunista, assim é na vida. A ideologia da Igreja lida mal com isto, o seu risco é reduzir ainda mais o seu já exíguo numero de praticantes e/ ou limitar- se a servir, de agora em diante, como parque temático onde as pessoas vão, por exemplo, casar – apesar da redução do número de casamentos católicos. Afinal nem o marketing de Bergoglio deu a atenção que a hierarquia eclesial queria e a visita conseguiu ser apenas mais um evento de um Portugal que quer mais. Tenho a esperança que continuemos a desconstruir uma imagem de Portugal que mais não é que o sonho molhado de uma elite conservadora que o quer construir como passado.

* João Manuel de Oliveira é pesquisador em estudos de gênero e sexualidades no Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE-IUL) e será a partir de setembro Prof. Visitante na Universidade Federal de Santa Catarina. É doutorado em Psicologia Social pelo ISCTE-IUL.
*Para saber mais sobre política queer em Portugual, clique aqui.
Imagem 1 – Salazar a vomitar a pátria por Paula Rego
Imagem 2 – 25 de abril de 1974 – Revolução do Cravos
Imagem 3 – Capa da obra “Novas Cartas Portuguesas”
Imagem 4- Cartaz do referendo sobre aborto legal de 2007
Imagem 5 –  Protesto queer em Lisboa – foto de Miguel do Carmo

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[1] Expressão atribuída ao Rei D. Carlos para descrever o país e a sua pobreza endêmica.



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