por Sonia Corrêa
Fui ver a exposição de arte dos povos originários do continente ilha que conhecemos como Austrália, na Caixa Cultural no Rio de Janeiro. Fiquei a um só tempo encantada e desconfortada. O desconforto se instalou tão logo li o subtítulo da exposição: “arte aborígene contemporânea da Austrália ”. Sei bem que essa terminologia é usada, mundialmente, para nomear os grafismos em pigmento e peças esculturais elaboradas, possivelmente há milênios, por essas culturas. Ainda assim esse conjunto de palavras é perturbador.
Por exemplo, a vinculação simplista do termos ‘arte contemporânea’ aos contextos culturais e rituais que inspiram os desenhos e demais peças da exposição deve, sempre, ser interrogada. Além disso, a palavra ‘Austrália’, nesse contexto, denota uma identidade nacional supostamente homogênea que, de fato, foi consolidada ao custo e em detrimento da sobrevivência dessas culturas que produzem essa ‘arte contemprânea’. O termo ‘aborígene’ que ocupa o centro da locução é uma nomenclatura inexoravelmente colonial. Quando lemos os textos descritivos apegados a cada peça vamos aprendendo que as e os artistas cuja sofisticada habilidade poética e estética é exibida na exposição, de fato, não se reconhecem nessa palavra, mas sim como Gija, Wuramyianga, Milikapiti, Biripi/Worimi, Maningrida, Wangkajunga, Aliawerre, Warlpiri, entre outras auto-definições etno-linguísticas.[1]
Não lembro, com precisão, quando ouvi ou li pela primeira o termo ‘aborígene australiano’. Deve ter sido nas aulas de história geral do ginásio que descreviam — num grande painel esquemático cheio de nomes e datas — a expansão colonial como processo civilizatório definitivo. Ou talvez, tenha sido na eurocêntrica coleção Tesouro da Juventude que habitava minha estante de livros. Mas, tanto num caso como noutro, as narrativas que me apresentaram aos ‘aborígines’ do outro lado do mundo os definiam — assim como os africanos (dos filmes de Tarzan) e os ‘peles vermelhas’ (dos filmes de cowboy) — como povos que haviam sido ou deviam ser civilizados (ou eliminados caso resistissem na ‘barbárie)’. Ao recuperar esse fios de memória, me dei conta de que, significativamente, ao menos nesses textos, o tratamento dado aos ‘nossos aborígnes” era paradoxal. Por um lado, sendo ‘selvagens’ — os textos sempre sublinhavam as práticas canibais pré-coloniais — deviam ser civilizados. Por outro lado, os índios brasileiros eram também constitutivos da identidade nacional, seja no imaginário projetado pelos romances novecentistas, seja nos corpos nus de bronze da estatuária pública. [2] Nos livros textos nacionais, os ‘nossos índios ‘ estavam no andar de cima da hierarquia estabelecida pela ideologia ‘civilizatória’ para situar os muitos ‘outros’ do desencontro colonial. Já os ‘aborígenes australianos’ ocupavam as posições inferiores, sendo descritos como os mais primitivos entre todos. Se não estou enganada, li textos afirmando que eles seriam, na verdade, ‘muito próximos dos primatas’.
Nos anos 1970, contudo, eu reencontraria os povos originários do continente dito australiano em narrativas de outro teor: nos textos que li e debati no curso de etnologia da Sorbonne VII em Jussieu, um departamento que, naquele então, era fortemente informado pela crítica ao etnocentrismo de corte Levy-Straussiano. Nem tudo que se lia aí era anti-etnocêntrico, mas era essa a clave de leitura que prevalecia na atmosfera do curso. Os ‘aborígenes australianos’ eram especialmente proeminentes nas análises desenvolvida por Bruno Bettelheim, em ‘Feridas simbólicas’, livro texto da disciplina Psicanálise e Antropologia. Nessa aula que era um campo de batalha, as jovens alunas feministas não deixavam passar em branco nenhuma palavra, sugestão ou interpretação que estivesse enviesada por traços patriarcais ou falocêntricos dos textos de Freud ou de seus interpretes.
Nesse ambiente acalorado, as descrições de Bettelheim sobre as sofisticadas de modificação corporal de alguns dos povos originários da Austrália não eram interpretadas como signos de ‘barbárie’ mas sim como evidência da complexidade do ‘pensamento selvagem’, inclusive no que diz respeito ao ‘sexo’. Especialmente controvertidas eram discussões em torno às interpretações de Bettleheim (e da sala) quanto aos significado da incisão longitudinal do pênis — que é praticada por alguns desses grupos — que abre o órgão sexual masculino o torna similar a uma vagina . Se não estou enganada, é o próprio Bettelheim quem afirma que essa prática revira pelo avesso a inveja do pênis da leitura clássica freudiana, fazendo dessa última uma narrativa culturalmente específica do Ocidente. Mas se não foi ele que o disse, certamente era isso que diziam (na verdade berravam) as jovens guerreiras feministas entrincheiradas num canto da sala. Nessas conversas intensas, comecei a me dar conta da variabilidade nas construções culturais de masculino e feminino, ou seja daquilo que um pouco mais tarde viria a se firmar como sistemas de sexo-gênero. Enquanto esses debates ferrenhos se desenrolavam em torno ao tema dos falos tornados vaginas, não faltavam vozes mais radicalmente anti-etnocêntricas perguntando, corretamente, se não estaríamos atribuindo a essas práticas um sentido que continuava sendo ‘nosso’ e portanto externo e dominante.
Os povos originários australianos habitam, portanto, momentos muitos significativos da minha formação intelectual. Mas eu os perderia, de novo, novo até o início dos anos 1990 quando comecei a interagir com feministas das ilha do Pacífico e Nova Zelândia. Percebi então, com maior amplitude e horror, a escala e profundidade dos efeitos coloniais e pós –coloniais sobre as populações originárias desse territórios, e mais especialmente a situação dramática de muitos dos grupos australianos. Desde então vi dois filmes excepcionais sobre as trajetórias de sua exclusão e subalternização na sociedade australiana: Stolen Generations (2001) que recupera a história de crianças ‘mestiças’ que foram tomadas à força de suas famílias para serem educadas por famílias brancas no começo do século e O País de Charlie, documentário de 2013 que relata de maneira nua a crua as precárias condições de vida que prevalecem hoje nas ‘reservas’ e comunidades urbanas em que vivem os povos originários [3].
Mais recentemente, fazendo buscas sobre arte e sexualidade nos espaços intersticiais do pós -colonial (para essa seção do site SPW ) fiquei encantada com os grafismos descritivos e rituais elaborados por mapans (xamãs), mas também por um vasto número de mulheres. Essa forte presença feminina na esfera dos sagrado e da expressão estética evocava, de algum modo, a disposição peculiar dos gêneros que discutíamos nas aulas conturbadas dos anos 1970. Nesse então, identifiquei vários artistas e assisti alguns vídeos sobre seus processos de desenhar, sobre os lugares em que vivem e, mais especialmente, sobre o ‘sonhar’ que é elemento nodal de sua sofisticada expressão estética. Ao desenhar e esculpir “os sonhares ’ das coisas, das plantas e dos animais, essas e esses ‘artistas’ conectam-se com o que está além da realidade imediata. Recontam estórias para manter narrativas míticas vivas. Engajam o corpo em gestos criativos que estão a um só tempo associados aos fazeres da sobrevivência e à ordem do sagrado.
Foi, portanto, tomada por sentimentos muito contraditórios que percorri a exposição. Por um lado, não consegui superar o desconforto dos traços e espectros coloniais que pairam sobre as duas salas, os quais na verdade, estão explicitados, de maneira nua e crua, em dois dos trabalhos. O Massacre do Córrego Horso de Queenie McKenzie resgata um episodio clássico da barbárie civilizatória: em 1880 um policial branco matou homens, mulheres e crianças na região de Kimberley por que o pai do artista havia matado um touro de um colono branco.
Mais contundente ainda, o quadro figurativo O Soldado Britânico Narcisista de Gordon Syron foi pintado na cela da prisão onde ele cumpria pena de prisão perpétua, por ter matado o homem a quem acusava de ter roubado as terras do seu pai. O soldado se olha ofuscado num olho d’água envenenado, sendo essa imagem um registro da prática usada pelos colonizadores para desalojar os povos originários de seus territórios e ocupá-los com gado. Syron aprendeu a pintar na prisão. Teve sua pena suspensa após dez anos e desde então se dedica a lutar pelos direitos dos grupos originários, especialmente no âmbito da arbitariedade policial e níveis excessivos de encarceramento. [3]
Por outro lado, tampouco, consegui resistir ao encanto. Fiquei deslumbrada com simplicidade do ‘Universo’ de Rover Thomas e do Sal em Mina Mina de Dorothy Napangardi, mas também com os insólitos ‘sonhares’ do Cachorro Selvagem, de Clifford Possum Tjlapaltjarri, do Diabo Espinhoso, de Kathleen Petyarre, da Folha de Arbusto de Abie Loy Kemarre e com a explosão cromática de Olho d’Água do mapan (xamã) Wimmitji Tjanpangarti. O muito fálico Sonhar das Mulheres de Lily Nungaray Hargraves que evoca os falos abertos das minhas aulas de Psicanálise e Antropologia.
Mas, sobretudo, fiquei completamente fascinada por Emily Kame Kngwarreye. Emily nasceu no grupo Anmatyerre em 1910 e morreu em 1996. Viveu numa estação que, signifucativamente, se chama Utopia. O nome que é possivelmente uma corruptela da palavra em língua local Uturupa que significa ‘grande colina de areia’ tem um forte sentido politico pois nomeia uma das poucas comunidade autônomas dos povos nativos, que resultaram de uma luta intensa pelo direito à terra. Emily, começou a fazer trabalhos de ‘arte’ quando tinha 68 anos quando um projeto de batik foi iniciado em Utopia. Dez anos mais tarde ela era uma ‘artista’ reconhecida internacionalmente e nos seus últimos oito anos de vida produziu mais de 3. 000 trabalhos inspirados pelo ‘sonhar’ e Alhalkere que é o lugar onde nasceu e viveu. Quando lhe perguntavam o que pintava, ela sempre respondia: Pinto o todo: o sonhar do inhame, do largato diabo da montanha, das sementes de capim, do Tingu, do Emu, do Intekwe, dos feijões verdes. Isso é o que pinto: o todo.
A estória de vida de Emily, seus cromatismos suaves em cinzas e brancos, rosas e laranjas, azuis e amarelos são esplendidos. Mas há mais o que dizer. As formas que ela criou — assim como o fizeram e fazem outras e outros criadores que conheci na exposição — inspiram a uma vasta teia de questões e reflexões sobre as conexões misteriosas entre ‘o sonhar’ (ou a ‘arte’), a subalternidade, os limites e possibilidades de vidas que valem a pena ser vividas. Precariedade e beleza como inspiração para o pensamento crítico.
Imagens
- Pintura corporal para cerimônia Pukamani, Freda Warpilini
- O Sonhar das Mulheres (detalhe) de Lily Nungaray Hargraves
- Charlie (still do filme)
- O sonhar do Dingo (Cachorro Selvagem) de Clifford Possum Tjlapaltjarri
- O Massacre do Córrego Horso, de Queenie McKenzie
- O Soldado Britânico Narcisista, de Gordon Syron
- O sonhar do Diabo Espinhoso (detalhe), de Kathleen Petyarre
- Olho d’Água (detalhe), de Wimmitji Tjanpangarti
- O sonhar do Inhame, de Emily Kame Kngwarreye
Notas
[1] Assim como os ‘índios’ do território chamado Brasil são Ashanikas, Assurinis, Bororó, Caikang, Caxinauá, Fulniós, Guarani, Guajajara, Kamaiurá, Krenak, Kren –Akarore, Munduruku, Pataxó, , Parakanã, Tukano, Baré, Yanomani, Yualapiti,, Urubus para mencionar algumas das centenas de grupos territoriais e línguas dos povos originários que sobreviveram a 500 anos de destruição e expliacão sistemática.
[2] Além disso, para além ou aquém dos traços ideológicos, eu posso me lembrar quase fisicamente do fascínio que exerciam sobre mim as imagens de Bororos, Xavantes, Kamaiurás publicadas nos anos 1950 nas páginas da revista O Cruzeiro.
[3] Charlie’s country pode ser assistido no Youtube [https://youtu.be/Ly8_7Su4m4c]
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Notas
[1] Assim como os ‘índios’ do território chamado Brasil são Ashanikas, Assurinis, Bororó, Caikang, Carajás, Caxinauá, Fulniós, Guarani, Guajajara, Kamaiurá, Krenak, Kren –Akarore, Munduruku, Pataxó, , Parakanã, Tukano, Baré, Yanomani, Yualapiti,Urubus para mencionar algumas das centenas de grupos territoriais e línguas dos povos originários que sobreviveram a 500 anos de destruição e expoliacão sistemática.
[2] O Pais de Charlie pode ser assistido no Youtube
[3] A inclusão de dois cocares e uma pintura Carajá na exposição que visa criar uma analogia estética entre “aqui” e “lá”também causa muito incômodo pois não se faz nenhuma referência aos traços comuns que vinculam essas culturas no que diz respeito aso efeitos nefastos da colonização e do ‘desenvolvimento’