Nas duas semanas desde que chegou ao poder, Donald Trump abriu uma ‘lata de vermes’ (can of worms é uma figura de linguagem corrente na língua inglesa), espalhando medidas políticas draconianas regressivas em muitas direções: fechou as fronteiras dos EUA, suspendeu de acordos e compromissos internacionais, inclusive em relação à comércio, e deu sinais de que, “caso necessário’, poderá mobilizar intervenções militares agressivas. Como já se podia prever pelo tom da sua campanha eleitoral, essa atividade frenética e sombria também comporta discursos e medidas que impactem diretamente na questões de gênero e sexualidade. A mais flagrante delas foi o imediato restabelecimento da chamada Regra da Mordaça que restringe o acesso de ONGs de outros países que prestam serviços de aborto ou mesmo que defendem o aborto legal à recursos financeiros da cooperação internacional dos EUA, a qual repercutiu rapidamente na mídia global e também no Brasil.
Originalmente estabelecida por Reagan, em 1984, a Regra da Mordaça pode ser descrita como uma “política vampírica”. Desde então então, foi suspensa duas vezes para ressurgir outras tantas ao sabor da alternância de poder entre presidentes republicanos e democratas. Mas, como analisa com precisão o informativo (em inglês) da Kaiser Family, o memorando emitido em 23 de janeiro ampliou significativamente o escopo e os efeitos potencialmente negativos dessas restrições agora associadas, não apenas a recursos para planejamento familiar mas também a fundos que financiam a política global de HIV e AIDS, especialmente o PEPFAR, mas também fundos canalizados para intervenções de saúde global através de grandes instituições como os Centros de Controle de Doenças e o Institutos Nacional de Saúde. Os efeitos deletérios dessa ampliação são ainda imprevisíveis ( leia entrevista de Sonia Corrêa sobre a Regra da Mordaça no Jornal Nexo)
O PEPFAR é outro domínio da política pública norte –americana político que deve ser analisado mais de perto. A Dra. Deborah Birx, atual coordenadora, nomeada pela administração Obama, foi convidada a permanecer no cargo, pelo menos por enquanto. Isso não é exatamente uma surpresa, talvez, vez que a Dra. Birx é evangélica e suas posições sobre questões tais como abstinência como medida de prevenção do HIV e o papel a ser desempenhado por organizações religiosa na resposta á epidemia já foram elogiadas por grupos religiosos conservadores. Pode-se, talvez, levantar a hipótese de que, no passado recente, as opiniões da Dra. Birx tenha sido contidas pelas diretrizes políticas então vigentes, atual ambiente político atual, ela talvez se sinta mais confortável e confiante para transportar esses valores para o plano da implementação de políticas. Em uma recente entrevista que concedeu a Religious News Services (RSN) ela declarou, por exemplo, que “o Presidente Trump poderá controlar a pandemia da SIDA“. Ainda mais preocupante, é a vinculação, acima mencionada, da Regra da Mordaça ao financiamento do PEPFAR que já foi criticada por vários grupos.
Outra arena de política pública a ser examinada é ainda mais problemática: as iniciativas de apoio aos direitos LGBT promovidas pelo Departamento de Estado. Essa linha da política externa norte-americana expandiu-se e assumiu franco protagonismo nos últimos anos da administração Obama. Nesse período foi criado, por exemplo, o posto de Enviado Especial dos EUA para os direitos LGBT, cujo mandato incluía visitar outros países identificando violações dos direitos LGBT e emitindo opiniões sobre as mesmas. Por um lado, os discursos e a política externa de direitos LGBT do governo Obama tiveram apoio nacional e internacional no mundo do ativismo. Por outro, também foram duramente criticados por uma ampla gama de vozes acadêmicas e ativistas – tanto do Sul como do Norte do Equador – que interpretam essa prioridade de política externa como mais uma manifestação do homonacionalismo, como justificativa para intervenções militares ou políticas, ou como mera estratégia de inserção no crescente mercado global da diversidade sexual (pinkwashing).
Ainda não se sabe exatamente quais são as propostas da administração Trump para este domínio já bastante conturbado da política sexual. Quando esta nota estava sendo escrita, o jornal digital Washington Blade publicou um artigo informando que nenhuma definição ainda foi tomada, por exemplo, em relação ao posto do Enviado Especial. Do ponto de vista do SPW, no entanto, o que mais importa nesse momento é situar os sinais nesse campo da política externa, em relação à moldura geral da ideologia neonacionalista e neoimperial que informa a agenda da nova administração, sintetizada no lema A América será grande de novo. Esta lógica e esse tom são, por exemplo, evidentes numa observação incluída na Ordem Executiva de 27 de janeiro que fechou as fronteiras do país:
“Além disso, os Estados Unidos não devem admitir aqueles que praticam atos de intolerância ou ódio (incluindo homicídios de” honra “, outras formas de violência contra as mulheres ou a perseguição de pessoas que praticam religiões diferentes das suas) ou aqueles que Oprimir os americanos de qualquer raça, gênero ou orientação sexual. “
Essa flagrante visão islamofóbica já está sendo contestada. A Aliança Muçulmana para a Diversidade Sexual e de Gênero emitiu, imediatamente, uma declaração (em inglês) que analisa criticamente a nova política imigratória e, em particular, associa esse argumento com o potencial estabelecimento de testes para medir atitudes dos imigrantes e refugiados frente à igualdade gênero e os direitos LGBT como um critério para admissão nos EUA.
Como muçulmanos LGBTQ, estamos conscientes das políticas homofóbicas e transfóbicas do governo Trump. Sabemos que a inclusão de uma questão sobre a aceitação da homossexualidade no “teste de valores” proposto [ para novos imigrantes] não é motivada por uma preocupação sincera pelas pessoas LGBTQ. Ao contrário, tem como objetivo produzir uma “cunha” para dividir as comunidades muçulmana e queer. Nós nos recusamos a ser usados como uma cunha contra nossas próprias comunidades e famílias. Quando os membros de nossas comunidades e famílias são estigmatizados como ameaças à segurança nacional, isso prejudica a todas e todos. Exortamos todas as pessoas a rejeitarem a islamofobia e o fanatismo antimuçulmano em todas as suas formas. A proposta de um “teste de valores” também reforça a falsa ideia de que os direitos LGBTQ são província exclusiva dos EUA, prejudica os movimentos pelos direitos LGBTQ nos países de maioria muçulmana. Nós nos opomos, com veemência, á adoção de tais “testes “.
O jornal feminista digital Rewire também publicou uma análise da Ordem Executiva apontando para as múltiplas armadilhas e perigos que ela contém, em particular no que diz respeito a esta acusação de misoginia e homofobia dirigida aos imigrantes muçulmanos:
A tentativa de Trump de introduzir na ordem executiva essa preocupação paternalista e oca com as comunidades LGBTQ, as comunidades de cor e as mulheres é tanto perigosa quanto insincera. Essa visão ignora abertamente as experiências vividas pelos muçulmanos em suas comunidades e, falsamente, sugere que os princípios do Islã são inconsistentes com a igualdade e justiça. Sobretudo, contrasta flagrantemente com a hostilidade que Trump, seu governo e seus auxiliares diretos têm demonstrando em relação aos grupos LGBT, a comunidade afroamericana e as mulheres, seja nos EUA seja no exterior.
Outro evento político da semana que não pode ser contornado como forte sintoma para as aa políticas sexuais nos EUA (e potencialmente no resto do mundo) foi a indicação de Neil Gorsuch para a Corte Suprema. Na avaliação do NYT, caso seu nome seja aprovado, o juiz Gorsuch vai “votar para limitar os direitos dos homossexuais, defender as restrições sobre o aborto e invalidar programas de ação afirmativa”. E isso por um longo tempo pois ele tem apenas 49 anos de idade. Tampouco é trivial que um dia antes da audiência sobre essa nomeação Trump tenha demitido a Procuradora Geral interina (General Attorney), Sally Q. Yates, porque ela se recusou a defender a ordem executiva de fechar as fronteiras. O York Times, ao relatar esses fatos descreveu as condições políticas prevalecentes nas duas primeiras semanas do governo Trump como “caóticas”.
Vale lembrar que este é apenas o começo de uma era na qual estaremos perenemente ofegantes diante das notícias e desafiadas/os as estar sempre preparadas/os para reagir. Por exemplo, no dia 1 de fevereiro, um artigo do jornal The Nation ( em inglês) divulgou e analisou a minuta, ainda não aprovada de uma nova ordem executiva do Trump. Segundo o artigo, essa diretriz, intitulada “Estabelecendo uma Iniciativa Governamental para Respeitar a Liberdade Religiosa”, ameaça diretamente os princípios de secularidade inscritos nos marcos legais norte-americanos:
A linguagem da minuta visa protege especificamente a isenção de impostos de toda e qualquer organização que “acredita, fala ou age (ou se recusa agir) segundo crença de que o casamento é ou deve ser reconhecido como a união de um homem e uma mulher, de que as relações sexuais devem ser restringidas ao casamento, de que o masculino e o feminino, e seus equivalentes, referem-se ao sexo biológico imutável de um indivíduo como objetivamente determinado pela anatomia, fisiologia ou genética no nascimento ou antes, e de que a vida humana começa na concepção e merece proteção em todos os estágios. “
Nesse cenário mais que sombrio, a única boa notícia seja, talvez, que esta não é a primeira vez que ameaças brutais à justiça social e à perspectiva política de gênero e sexualidade baseadas nos direitos humanos estão emanam de Washington DC. Quando o SPW foi criado, em 2002, nosso primeiro investimento foi um exame crítico das políticas da administração Bush sobre sexualidade e assuntos relacionados. O relatório final do estudo, preparado por Françoise Girard e intitulado Implicações Globais de Políticas Internas e Domésticas sobre Sexualidade foi lançado em San Juan de Porto Rico, em 2004, num evento paralelo à reunião da Comissão Regional de População e Desenvolvimento, para marcar os dez anos da Conferência do Cairo. No SPW, informalmente, chamávamos esse relatório de Bush Kamasutra (muitas posições sobre sexo) e este foi o título que usamos na tradução para o português, lançada em 2005 no Rio de Janeiro.
Os vários domínios de políticas então analisados são basicamente os mesmos que devem ser hoje colocados sob escrutínio crítico. As premissas religiosas conservadoras moralistas que informaram as políticas de Bush em relação ao aborto, prevenção e tratamento do HIV, educação sexual, direitos LGBT, casamento e trabalho sexual são mais uma vez hegemônicas no aparelho de Estado dos EUA. Na verdade, os proponentes dessas visões tem hoje mais poder do quinze anos atrás: basta verificar o perfil e a trajetória do vice-presidente, Mike Pence. Embora as condições internas e globais dos EUA não sejam exatamente as mesmas registradas no início dos anos 2000, recomendamos que nossas leitoras e leitores revisitem o estudo de Françoise Girard como fonte de inspiração para iniciar a desafiante tarefa de traçar os contornos do Kamasutra agora propagado pelo ‘predador chefe’, que é como a feminista norte – americana Zilah Eisenstein chama Trump em seu mais recente e inspirador artigo.
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Imagem: Fragmento do quadro A tempestade de neve, navio à entrada do porto, de William Turner