Em janeiro de 2017, buscando arte que refletisse o estado distópico do mundo, lembrei-me de caminhar sobre a rachadura (já preenchida) que foi aberta por Doris Salcedo em 2007, no piso do Turbine Hall na Tate Modern, em Londres, para criar Shibbolet. Sempre que passava pelo hall, eu evitava pisar sobre a rachadura porque sentia como se estivesse infligindo dor em uma cicatriz ainda aberta.
Eu já tinha visto algumas obras de Salcedo, mas nunca tinha ouvido falar de Shibboleth. Violência, limites forçados e separações drásticas são questões centrais na estética explorada por Salcedo, inspiradas por décadas de conflito armado na Colômbia, seu país de origem. Mas sua obra também dialoga com o panorama do mundo dos anos 2000, crescentemente atravessado por rachaduras: novos muros sendo construídos, fronteiras antes abertas sendo fechadas. Morrer nesses limites é o sentido de Shibbolet:
“‘… uma palavra utilizada como teste para detectar pessoas de outro distrito ou país por meio da pronúncia; uma palavra ou um som muito difícil para estrangeiros pronunciarem corretamente. O Antigo Testamento relata que os Eframitas tentavam cruzar o Rio Jordão quando foram capturados pelos seus inimigos Gileaditas, que os forçaram a dizer a palavra “shibboleth”. Na medida em que o dialeto dos Eframitas não incluía o som “sh”, isso permitiu aos Gileaditas identificar e assassinar um grande contingente de Eframitas. Então, shibboleth é um “token de poder: o poder de julgar e matar”
( de um artigo de Jon Henley no The Guardian)
A metáfora de Salcedo ilumina a profundidade histórica da violência estatal nas fronteiras. Também revela como essa violência está arraigada na narrativa bíblica, com frequência mobilizada nos dias atuais, no Brasil e em outras partes como ‘única fonte confiável de verdade e justiça’. Ao escolher Shibbolet para ilustrar o estado do mundo em janeiro de 2017, pensei em Shibboleth como signo das interseções entre gênero, sexualidade e controle das fronteiras, fazendo uma analogia entre a regra bíblica da palavra errada e os testes aplicados a imigrantes muçulmanos na Europa, a partir do final dos anos 2000, com o objetivo de avaliar suas atitudes em relação aos direitos das mulheres e das pessoas LGBT como critério para admissão nos países. Em janeiro de 2017, essa premissa acabava de ser gravada no Decreto Executivo da administração Trump que fechou as fronteiras dos EUA [1].
Mas a metáfora de Shibbolet é polissêmica. Em outubro de 2018, ela sobretudo evoca a polarização política da sociedade brasileira. Mimetiza a súbita aparição de rachaduras internas que erodem a habilidade das pessoas de se comunicarem umas com as outras, incita velhas e novas formas de violência e, principalmente, infecta o mundo da vida com suspeitas e medos de natureza política. Nessa semioesfera fraturada, toda e qualquer verbalização de tom político pode potencialmente ser tão letal como Shibboleth.[2]
Para saber mais sobre Shibboleth, veja os sites do Tate Modern e da Academy Khana.
Clique aqui para saber saber mais sobre o trabalho de Doris Salcedo.
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Nota
[1] Ver Dhawan, Nikita “Homonationalism and State-phobia: The post-colonial predicament of queering modernity. Em Maria Amelia Viteri and Manuela Picq (ed) Queering Paradigms V- Queering Narratives of Modernity. Peter Lang, Oxford (2015). O texto do decreto de Trump inclui a seguinte definição: ...Além disso, os Estados Unidos não devem admitir aqueles engajados em atos de intolerância ou ódio (incluindo “crimes de honra”, outras formas de violência contra a mulher, ou perseguição àqueles que praticam formas distintas de religião) ou àqueles que oprimam americanos de qualquer raça, gênero e orientação sexual.
[2]Semiosfera é o conceito criado pelo semioticista estônio Yury Lotman para descrever o ambiente criado por signos emitidos por organisamos que o habitam.