Por Laura Trajber Waisbich1
BRICS: espaços “civilizados” e “populares”
A Índia recentemente sediou o 8º Encontro de Cúpula do BRICS. O país mostrou-se orgulhoso em anunciar a realização de uma série de 112 eventos oficiais ocorridos em diferentes cidades indianas2, abrangendo uma ampla gama de áreas relativas às políticas públicas, e que reuniu diversos atores do BRICS: de presidentes a primeiros-ministros, de ministros de comércio a ministros da saúde, além de jogadores juniores de futebol3.
Grupos da sociedade civil indiana investiram significativa energia para sediar uma série de eventos e encontros dirigidos a seus pares na Índia. Muitos deles aconteceram ao longo do ano, por meio de reuniões prévias, destinadas a estimular e chamar a atenção da sociedade civil Indiana para esta difícil criatura que é (e permanece sendo) o BRICS.
Quando outubro chegou, grupos da sociedade civil na Índia e seus pares nos outros países do BRICS reuniram-se em dois grandes eventos: o Fórum Civil sobre o BRICS (Nova Déli, 3-4/outubro) e o Fórum dos Povos sobre o BRICS (Goa, 13-14/outubro). Neste texto vamos analisar esses dois principais espaços cuja participação pode ser classificada como “por convite” ou “criada/reivindicada”4 em relação ao BRICS, assim como os espaços abertos para o engajamento cidadão com as ideias, projetos políticos, políticas públicas e ações do BRICS5.
Como primeiro exercício, vamos traçar um breve panorama sobre a forma como a participação social tem ocorrido no BRICS. Depois de um ciclo completo de presidências, desde que a África do Sul uniu-se ao grupo em 2011, o engajamento da sociedade civil com o BRICS (tanto em nível nacional, quanto internacional) evoluiu significativamente, apesar de um cenário constantemente tomado por obstáculos. Conforme observado por Pomeroy et al6:
“apesar do ambiente de engajamento aparentemente mais promissor nas ‘potências democráticas emergentes’ [nomeadamente o, chamado em inglês, IBSA-África do Sul, Brasil e Índia], mesmo nesses países os esforços da sociedade civil para alcançar influência efetiva sobre a agenda de Cooperação Sul-Sul para o Desenvolvimento do BRICS, seja em cada um ou no conjunto, enfrentam muitos obstáculos. Nacionalmente, a Cooperação Sul-Sul para o Desenvolvimento é vista, em geral, como uma agenda de política externa tradicionalmente fechada ao engajamento da sociedade civil, além de que as restrições crescentemente impostas ao ambiente doméstico favorável à sociedade civil serem pedras no caminho do engajamento […]. Internacionalmente, mesmo sob as presidências de Índia, África do Sul e Brasil, o BRICS provou ser certamente menos aberto à sociedade civil do que a outros setores, tais como academia e empresas, que têm seus próprios canais para chegar aos líderes de governo. Dentro do IBSA, a falta de um diagnóstico comum da sociedade civil em relação às potencialidades e armadilhas do BRICS contribui para uma agenda de engajamento fragmentada, que é composta pela dificuldade de construir pontes com as organizações da sociedade civil desses países tendo em vista, também, os diferentes contextos da China e da Rússia7.” (2016, p. 171)
Apesar da diversidade de atores, da profusão de agendas e da falta de clareza sobre o que os projetos do BRICS representam, uma série de encontros de atores da sociedade civil dos países do BRICS e entre estes e os líderes do BRICS ocorreram desde a Cúpula de 2011 na Índia. Não apenas por causa da miríade de eventos, oficinas e seminários ocorridos, praticamente, em todos os países do BRICS entre as reuniões de Cúpula, os grupos da sociedade civil foram capazes de efetivamente mobilizar e construir espaços de diálogo às margens dos encontros oficiais em “cúpulas do povo”. Primeiro em Durban (2013) com o “BRICS a partir da base”, depois em Fortaleza (2014) com os “Diálogos sobre o Desenvolvimento: o BRICS a partir da perspectiva dos povos”. Em 2015, os russos decidiram executar um outro modelo, chamado “BRICS cívico”. Pertencendo a uma espécie diferente de evento, os “espaços cívicos de reunião” na Rússia ganharam um reconhecimento oficial sem precedentes na agenda do BRICS, mas foi duramente criticado por muitos atores socais dos outros países do bloco como sendo um espaço altamente controlado. Como resultado, muitos dos principais atores que sediaram encontros dos povos anteriores no IBSA não participaram do Fórum Civil do BRICS e/ou abertamente o boicotaram8.
Podemos citar como uma característica geral dos Fóruns dos Povos o fato de reunirem organizações e movimentos nacionais de grande alcance, cujas causas são mais intimamente conectadas ao BRICS, tais como o caso do movimento contra mineração ou de grupos ambientais lutando contra usinas nucleares e de carvão, assim como um conjunto diverso de grupos locais da cidade-sede (grupos afetados pelo Porto no Sul de Durban em 2013, os Comitês Populares da Copa do Mundo em 2014, e uma série de grupos em Goa, como os grupos contra o turismo predatório). Aparentemente, esses grupos aproveitaram a oportunidade de sediar um evento do BRICS para amplificar suas lutas e encontrar solidariedade internacional, mas não para fazer parte de fóruns do BRICS subsequentes. Mas a presença deles tem sido crucial para dar uma cara concreta e mostrar como é o modelo de desenvolvimento privado ou predatório.
Esse breve relato histórico nos alerta a não subestimar relações de poder mesmo em espaços de participação, relembrando que nunca são neutros, sendo eles mesmos moldados por relações de poder9. Particularmente em relação ao BRICS, o especialista sul-africano Patrick Bond e a brasileira Ana Garcia apresentam uma categorização interessante para observar atores sociais no e do BRICS de acordo com seus pontos de vista ideológicos. Os dois autores listaram 10 diferentes pontos de vista, que podem ser agrupados em três grupos maiores: “BRICS a partir de cima” (líderes e chefes de governo, aliados corporativos e da elite), “BRICS a partir do meio” (Fórum Acadêmico do BRICS, intelectuais, sindicatos e ONGs), e “BRICS a partir da base” (ativistas de base cujas visões partem do local para o global). Na visão de Bond (2016), o primeiro grupo é co-dependente, o segundo é cooptado e o terceiro seria aquele que leva aos modos de engajamento confrontacionais10.
Apesar da tipologia de Bond e Garcia colocar claramente o poder na perspectiva de análise e ser um modelo inicial útil para compreender os grupos, é necessário ir além, pois o mosaico é mais complexo (e às vezes mais nuançado), refletindo não apenas a diversidade e as divisões em cada um dos membros em um determinado ponto, mas também mudando e evoluindo em relação às identidades daqueles grupos durante o processo de construção do BRICS11.
Além disso, é evidente que tais divisões não estão acontecendo da mesma forma em cada uma das Cúpulas do BRICS, e cada espaço internacional da sociedade civil é profundamente moldado pelo estado da sociedade civil no país-sede, que acaba cristalizando algumas das divisões por meio do entrincheiramento de grupos específicos marginalizados em campos de confrontação popular. Mas também – e de maneira muito concreta – por meio de enquadramentos escolhidos para os eventos da sociedade civil, assim como suas narrativas condutoras e redes de parceiros. Esses encontros também são profundamente afetados pela economia política (e ecologia política) dos grupos que oferecem suporte material – com recursos – a cada espaço, bem como pela rede de parceiros12.
Nas próximas seções, vamos descrever com mais detalhes como os encontros da cidadania aconteceram na Índia, tentando estabelecer mudanças e continuidades entre os Fóruns dos Povos e os Fóruns Civis do BRICS.
Índia 2016: o presente e o ausente
A edição indiana do Fórum Civil BRICS, ocorrida em Nova Déli na primeira semana de outubro, foi a segunda tentativa (depois do Fórum Civil BRICS de Moscou, em 2015) de construir um espaço oficial (acordado entre representantes de governo e grupos da sociedade civil) para o engajamento da sociedade civil com o BRICS. O espaço foi resultado de uma intensa negociação entre três atores: o Ministério de Relações Exteriores da Índia, a think thank Research and Information System for Developing Countries (RIS) e o Fórum de Cooperação para o Desenvolvimento da Índia (FDIC), um fórum hospedado pela RIS e composto de representantes da Agência Indiana de Parceria e Desenvolvimento, acadêmicos e representantes da sociedade civil13. O FDIC foi criado em 2013 com o objetivo de facilitar as discussões entre diferentes sujeitos e partes interessadas na Cooperação Sul-Sul para o Desenvolvimento da Índia. Para alguns representantes da sociedade civil, co-sediar o Fórum Civil BRICS foi uma importante realização em termos de desvendar a caixa-preta da política externa indiana e a cooperação para o desenvolvimento.
A participação no Fórum deu-se através de convite, as organizações da sociedade civil vinculadas ao FDIC buscaram parceiros e redes dos países do BRICS e cada Ministério de Relações Exteriores poderia convidar quem julgassem apropriado em seus países. Em teoria, cada ministério supostamente validaria todos os nomes em sua “delegação”. Mas, na prática, tanto Brasil quanto África do Sul informaram que não iriam fornecer ou censurar nenhum nome. Consequentemente, retomando a tipologia dos espaços de Cornwall e Gaventa, se o Fórum Civil BRICS na Rússia foi claramente um espaço de convite (e às vezes percebido como um espaço fechado), este teve características mistas, sendo parcialmente um espaço de convite e parcialmente um espaço criado/reivindicado. Para acrescentar complexidade ao cenário, essa característica mudava conforme o país.
Dez dias depois, um outro conjunto de atores da sociedade civil do BRICS reuniu-se em Goa. A edição deste ano do Fórum dos Povos pareceu mais com uma versão menor do Fórum Social Mundial, de acordo com ativistas dos países que formam o IBSA. Organizadores afirmaram que cerca de 500 pessoas participaram no total14.
De fato, foi na maior parte um encontro de ativistas indianos – de movimentos populares a organizações não-governamentais – vindos de 27 estados diferentes da Índia, de acordo com os organizadores15, que trabalharam questões tão diversas quanto justiça ambiental, direitos das mulheres, responsabilidade financeira e comércio internacional. Foi interessante notar que, nas plenárias e em algumas das 14 oficinas paralelas, houve tradução consecutiva para o Hindi feita pelos organizadores e às vezes pelos próprios participantes. Em conformidade com os encontros preparatórios da reunião de outubro, mencionados acima, a presença de tradução é um importante indicador do esforço dos organizadores de internalizar a agenda do BRICS na Índia e democratizar o acesso ao debate16.
Participantes de fora da Índia não foram apenas minoria, mas também em menor número do que nos encontros anteriores. As razões são múltiplas: desde as crises domésticas tanto no Brasil quanto na África do Sul (o que levou a agenda relativa ao BRICS deixar de ter prioridade para os grupos sociais) às dificuldades em obter visto para entrar na Índia (sobretudo no atual momento e se o indivíduo planeja participar de uma conferência internacional como o Fórum dos Povos), e, de maneira mais significativa, ao fato de que alguns dos principais participantes – presentes em edições prévias do Fórum dos Povos (em Durban e Fortaleza) – dividiram-se entre outros dois espaços liderados pela sociedade civil em Nova Déli, na semana anterior: a reunião prévia organizada sob o guarda-chuva da VANI e o Fórum Civil do BRICS17.
Entre os sul-africanos que participaram do Fórum de Goa, podemos mencionar algumas lideranças do processo “BRICS apartir da base” de Durban18, assim como representantes da união de trabalhadores de minas na África do Sul, do movimento de estudantes #FeesMustFall e da Action Aid África do Sul. Uma gama das principais ONGs sul-africanas e movimentos sociais – alguns deles habitués de espaços relacionados ao BRICS – participaram apenas do Fórum Civil BRICS de Nova Déli19.
De participantes brasileiros em Goa foram apenas seis no total, vindos principalmente de organizações da sociedade civil que já atuam no campo do BRICS, tais como a REBRIP20 – umas das principais organizadoras do Fórum dos Povos de Fortaleza em 2014 – e a Action Aid Brasil, mas também representantes do movimentos dos trabalhadores sem-terra (MST). Entretanto, um número similar de outros brasileiros participou de eventos em Nova Déli21 (Fórum Civil do BRICS, o encontro preliminar da VANI e o encontro do Observatório Feminista do BRICS). Um representante da REBRIP, por exemplo, foi ao encontro da VANI, mas não participou do Fórum Civil do BRICS, em consonância com a posição das redes em manter a luta por um mecanismo dentro do BRICS, que deveria respeitar aquilo que a rede acredita ser um conjunto mínimo de princípios para uma participação significativa, tais como autonomia, diversidade de vozes e financiamento governamental22.
Em Goa, vimos a radicalização da tendência de anos anteriores de muito poucos ativistas da Rússia e China para o extremo de nenhum participante russo e aparentemente nenhum identificando-se oficialmente como chinês, apesar de haver rumores sobre a presença de dois ou três ativistas chineses na sala. Houve participantes de outros países asiáticos que falaram sobre a China (sobretudo em termos da política externa da China e seus impactos na região). A presença da China na África foi também um assunto em pauta. Mas a Rússia esteve virtualmente ausente, tanto como um tópico quanto como presença em Goa. Em contrapartida, representantes chineses e russos participaram do Fórum Civil BRICS. Da Rússia foram principalmente acadêmicos23, alguns dos quais lideraram o Fórum Civil da Rússia em 2015. Oxfam Rússia também esteve presente. Do lado chinês, do mesmo modo, houve uma série de estudiosos, representantes da Associação das Nações Unidas da China, Oxfam Hong Kong e alguns grupos ambientalistas24.
Agendas circulares
O Fórum Civil estruturou seus debates no sentido de expandir a agenda de crescimento do BRICS, trazendo a perspectiva do desenvolvimento humano à mesa como um componente central daquilo que se tem chamado de “justiça global” pelo bloco. A maior parte do evento foi dividida em sessões paralelas que cobriram tópicos como atenção à saúde, segurança alimentar, segurança humana, pobreza, além de desenvolvimento sustentável, urbanização, e temas financeiros incluindo-se o Novo Banco de Desenvolvimento (NBD). Em geral, os painéis eram formados por todos os países-membros. Para os organizadores, o espírito do evento foi “garantir um diálogo construtivo entre a sociedade civil e os tomadores de decisão” em diferentes esferas sociais25.
Uma declaração final do Fórum foi emitida após os dois dias de debate, negociada principalmente entre o que os organizadores chamaram de “chefes de delegação” e, em seguida, foi disponibilizada para comentários por alguns dias após o evento. Mesmo assim, a declaração do Fórum Civil não foi mencionada na “Declaração de Goa”, declaração oficial dos chefes de Estado (diferente de outros eventos, como o Fórum Acadêmico, o Conselho de Negócios ou o Festival de Filmes e o torneio de futebol sub-17 do BRICS, em que todos reconheceram o texto da declaração). Quando a Declaração de Goa veio à luz, o experimento do Fórum Civil figurou apenas em uma lista anexada em separado junto com todos os eventos ocorridos sob a presidência indiana do BRICS. Mas ficou completamente ausente da cena se, por exemplo, procurarmos no site oficial do Ministério de Relações Exteriores da Índia26 ou no site de documentos oficiais da 8º Cúpula do BRICS27.
No caso do Fórum dos Povos, os organizadores estruturaram o encontro não como destinado a construir uma “agenda alternativa ao BRICS”, mas com o objetivo de ir além do marco definido pelo BRICS, ou seja, enfocou os temas que realmente importam para as pessoas em termos de justiça social, econômica e ambiental, incluindo: o resgate e aprofundamento da democracia para o poder corporativo, a luta contra a degradação ambiental, o combate da “violência sexual e patriarcal, racismo, comunalismo, discriminação de casta, xenofobia e homofobia”28.
Nesse último ponto, é importante sublinhar que questões de gênero, sexualidade e direitos humanos foram amplamente enfatizados em Goa, com uma ênfase forte na interseccionalidade em processos de marginalização e violação nos três países que formam o IBSA (e quase certamente nos demais países do BRICS). Também foi enfatizado que questões de sexualidade precisam de apoio mais amplo por parte dos movimentos sociais do BRICS. Conforme um participante afirmou em um painel sobre justiça social, não apenas não há tradução Hindi para pessoas LGBTI, como também “se arranharmos o verniz de ativista de cada participante neste Fórum dos Povos de Goa vamos descobrir muitas pessoas ainda resistentes ao tema. Então, justiça também tem que começar aqui conosco”. Frustração similar em relação ao sexismo foi expressada por uma mulher negra, líder do movimento #FeesMustFall da África do Sul, Omhle Ntshingila: “foi [e continua sendo] difícil participar do movimento que eu mesma criei”.
O discurso anti-neoliberal (e anti-imperialista) foi muito presente em Goa, ecoando mais o tom de Durban em 2013 do que o de Fortaleza em 201429. Novamente, as lutas locais continuaram a ser a característica mais marcante na maioria dos discursos dos participantes. Perspectivas comparativas sobre injustiça social foram claramente visíveis, conforme apontado por um vídeo-ativista indiano com “muitos países do bloco no mesmo muro [de injustiça social]”. Entretanto, a chamada “conexão BRICS” não foi facilmente estabelecida.
O BRICS permanece como uma abstração para muitos grupos, com os efeitos e impactos do bloco concebidos mais em termos teóricos do que em termos práticos. Resistência e denúncia se moldam ante facto baseadas nas experiências de primeira-mão dos ativistas em cada um dos países (por exemplo, na luta contra a degradação ambiental, a exclusão e a marginalidade, a discriminação contra a mulher, o deslocamento de populações por mega-projetos de infra-estrutura), assim como algumas experiências transnacionais emergentes em relações bilaterais, por exemplo, os investimentos chineses, brasileiros ou indianos na África. Interessante observar que essa relação opaca também foi um aspecto recorrente no Fórum Civil, onde a maior parte dos painéis se caracterizou por acadêmicos e representantes de ONGs discutindo o atual cenário de seu próprio país (em assuntos variados: saúde e má nutrição, qualidade do crescimento econômico, juventude, urbanização sustentável, entre outros), com poucos vínculos sobre os possíveis caminhos para cooperação intra-BRICS ou como o bloco, sendo um ator internacional, está se posicionando para influenciar nas negociações globais em torno desses tópicos.
Uma clara exceção, tanto nos debates em Nova Déli quanto em Goa, é o Novo Banco de Desenvolvimento (NBD). Isso deveria ser uma surpresa, pois o NBD é a primeira e mais concreta criação do BRICS, e mesmo assim ainda não concretizada. Também, no caso do NBD, a maior parte dos países-membros têm alguma experiência com bancos de desenvolvimento e o impacto de seus projetos. A Índia, por exemplo, tem um movimento social vibrante engajado em relação a instituições financeiras, muito em função do dramático histórico do país com grandes projetos de infra-estrutura, como a represa Narmada financiada pelo Banco Mundial no final dos anos 1980. Grupos na África do Sul, Brasil e China também possuem longa história sobre instituições financeiras, em uma série de tópicos tais como degradação ambiental e deslocamento forçado. Então, a expertise combinada pode ser de grande valor no que diz respeito aos projetos do Novo Banco de Desenvolvimento. Também podemos apontar o fato de que, à medida que os governos continuem a promover futuras institucionalizações, a sociedade civil do BRICS terá, de forma mais clara e concreta, mais portas de entradas para engajar com o grupo, não obstante as táticas divergentes, desde boicotes a estratégias de desfinanciamento até advocacy com gestores de alto escalão do Banco.
No Fórum dos Povos, poucas crises internacionais foram objeto de debates consistentes. Síria e Palestina apareceram abertamente como tópicos em painéis paralelos, enquanto a África Ocidental, a República Democrática do Congo e o Haiti foram mencionados na declaração final, embora não tenham sido debatidos com profundidade no Fórum. A solidariedade internacional, contudo, não alcançou a Caxemira, apesar das operações da Índia no Paquistão na mesma semana em que o Fórum ocorreu. O Fórum Civil foi praticamente silencioso em relação a todas as crises internacionais.
Durante os debates em Goa, apesar da solidariedade internacional, da proximidade ideológica da maioria dos participantes e das conversas de alto escalão, houve um sentimento geral de pouca memória coletiva sobre os Fóruns anteriores e muito poucas menções ao que aconteceu (e o que foi acordado ou construído a partir de) nas duas edições passadas. Curiosamente, no nível discursivo, observamos uma tendência oposta no Fórum Civil BRICS. Os organizadores mencionaram expressamente a experiência russa tanto para criar um certo sentido de continuidade, quanto para apontar alguns dos avanços do experimento indiano. Entretanto, os painéis reuniram pessoas com um nível menor de consenso entre si, além disso, foi reservado pouco tempo para um debate construtivo entre os/as palestrantes.
Finalmente, apesar das óbvias diferenças entre os espaços, havia uma série de tópicos e tendências comuns entre eles, embora com tonalidades particulares e narrativas específicas de cada um. Entre os tópicos assinalamos, em primeiro lugar, a metadiscussão sobre a participação no BRICS e seus limites. Em segundo lugar, ambos os espaços enfatizaram aquilo que foi “deixado para trás” nos projetos do BRICS, destacando o quadro de desigualdades, ou a questão da justiça social e marginalização. Em terceiro, as promessas e, mais notadamente, as armadilhas do Novo Banco de Desenvolvimento também formavam um tema comum do debate em ambos os espaços. Assim, se esse modelo dual permanecer, essas questões poderiam ser portas de entrada para futuras pontes entre esses espaços.
Para além de 2016: o que o próximo ciclo pode nos oferecer?
A Cúpula do BRICS de 2016 na Índia marca o fim do primeiro ciclo de cúpulas oficiais com todos os cinco países-membros, lembrando que a África do Sul participou pela primeira vez apenas em 2011, em Sanya (China). Este ciclo completo nos permite propor algumas reflexões iniciais sobre como o bloco se construiu, quais têm sido as agendas lideradas pelos governos, como os grupos da sociedade civil reagiram a isso e quais são os pontos que continuam esquecidos.
Considerando-se algumas das principais questões levantadas pelo projeto Poderes Emergentes, Sexualidade e Direitos Humanos, do SPW, sobre o mosaico de dinâmicas e os impactos gerados pelas potências emergentes, em especial o BRICS, em uma série de agendas sociais, fica claro que a metáfora dos cegos que tateiam em torno de um elefante tentando adivinhar o que poderia ser aquilo está dando lugar a outra imagem, desta vez a partir do conto As Roupas Novas do Imperador: o Rei está nu.
Observando cautelosamente a miríade de peças em movimento sobre areias movediças, saber se o “BRICS tem o potencial de influenciar processos transnacionais que poderiam rearticular a economia política voltada para a justiça, ao invés de se tornar um impedimento ou um caminho, desde o Sul, para novos níveis de acumulação de capital”30 é uma questão que permanece válida, mas parece provocar mais divisões entre os atores da sociedade civil e os movimentos sociais do que antes. Aquilo que parecia ser as “potencialidades paralelas” dos projetos BRICS é cada vez mais visto com menos otimismo. Não obstante esse diagnóstico comum, a sociedade civil nos BRICS não é somente muito diversa, também está escolhendo diferentes táticas de relacionamento com o bloco, como mostra claramente a realização de um Fórum Civil e um Fórum dos Povos na Índia este ano.
Longe das acusações mútuas de “cooptados”, por um lado, e “descrentes em instituições”, por outro, mas sem negar essa diversidade e o papel que desempenha alimentando o pensamento e a ação coletiva, pode-se perguntar se haveria espaço para o diálogo entre os atores da sociedade civil do BRICS para seguir criando massa crítica necessária para lidar com os diversos desafios e oportunidades que esse exercício traz para suas próprias sociedades e para o mundo.
Aqui corremos o risco de responder que sim. Ao reverberar as questões e lutas locais, esses espaços têm gerado mecanismos que criam significados e produzem novas e emergentes visibilidades em termos de questões sociais nos países-membros do BRICS. E apesar de os dois espaços terem claramente atraído e atrair audiências diferentes desta vez, há uma série de atores que foram ao Fórum Civil mas que, definitivamente, apreciariam participar e ter voz num evento como o Fórum dos Povos, entretanto por razões de logística – principalmente pela não acidental divisão – tinham que escolher um ou outro.
Além disso, esses eventos, apesar de todos os desafios, foram capazes de galvanizar a atenção interna para o BRICS, criando um ambiente para construir (senão sinergias e solidariedade) pelo menos áreas comuns para estabelecer vínculos internacionais e revelar questões convergentes. Se as pontes podem parecer muito frágeis diante da incerteza sobre a agenda política do BRICS, dos persistentes desafios sociais, bem como das múltiplas crises desenfreadas que a maioria dos países-membros do BRICS enfrenta em casa, o fato de tantos grupos se mobilizarem e reunirem-se (local e internacionalmente) ano após ano demonstra que esta agenda está aqui para ficar.
Concluindo, o que poderia se recomendar para incrementar as pontes do fórum “civilizado” do BRICS, o Fórum Civil, ou do fórum “popular” do BRICS, o Fórum dos Povos, e, claro, entre eles? Primeiro, para a sociedade civil dos países-membros do IBSA, investir na criação de conexões mais profundas com parceiros russos e chineses. Abordagens baseadas em questões como o NBD, a degradação ambiental ou a violência de gênero podem ser portas de entrada para que esses encontros aconteçam e surjam sinergias. Em segundo lugar, fazer uso da gama de ferramentas existentes e metodologias de participação social para criar as oportunidades certas para que essa diversidade de vozes se reúna, ao menos, simultaneamente em um espaço grande e plural. Os grupos da sociedade civil podem continuar a optar por espaços que parecem mais legítimos ou estratégicos, mas teria sido interessante ter um ou dois representantes das entidades que participaram da reunião da VANI ou do Fórum Civil para compartilhar e relatar a experiência nesses espaços para o amplo grupo reunido no Fórum dos Povos, que é exatamente o que as representantes do emergente BRICS Feminist Watch tentaram fazer em Goa. Isso poderia elevar o nível das informações e criar mais sinergias. O BRICS é um assunto muito complexo, com um número limitado de atores dispostos a se envolver, sem uma massa crítica proveniente de um amplo espectro de grupos da sociedade civil de todos os cinco países será difícil impactar o processo global. Por fim, para a sociedade civil dos países-membros do BRICS investir na sistematização dos processos, resultados e eventual reflexão crítica sobre os espaços liderados pela sociedade civil, seria interessante também facilitar a construção de uma memória coletiva de tudo isso. Se o país sede acaba por atrair mais grupos nacionais e se todos os anos temos uma grande número de pessoas diferentes, isso não é necessariamente desanimador uma vez que alargará progressivamente o alcance dos debates relacionados ao BRICS abrangendo grupos maiores em cada um dos países-membros.
Notas
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1. Cientista política e analista de relações internacionais, pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) e do Centro de Estudos e Articulação da Cooperação Sul-Sul (Articulação Sul). A autora esteve presente em diferentes espaços da sociedade civil paralelos aos Encontros de Cúpula do BRICS (Durban, 2013; Fortaleza, 2014; e Delhi/Goa, 2016), também, é membro do projeto “Poderes Emergentes, Sexualidade e Direitos Humanos” do SPW. Este artigo é baseado em pesquisas sobre o BRICS, assim como na observação participante em uma série de encontros do “bloco”.
- A realização dos eventos em diferentes regiões da Índia deveu-se, aparentemente, a uma diretriz do Ministério de Relações Exteriores da Índia com o objetivo de “conectar mais pessoas”.
- A lista oficial de eventos pode ser conferida no endereço: http://brics2016.gov.in/upload/files/document/580389cbe5ed3GoaActionPlan.pdf
- Aqui usamos os trabalhos de Andrea Cornwall (2002) e John Gaventa (2006) que conceituam os espaços de engajamento cidadão nos processos de políticas públicas como espaços fechados, espaços com convite e espaços criados/reivindicados. Veja CORNWALL, Andrea. Making spaces, changing places: situating participation in development, IDS Working Paper 173, Brighton, Institute of Development Studies, 2002. GAVENTA, John. Finding the spaces for change: a power analysis, IDS Bulletin, 37, 2006, pp. 23–33.
- Vamos brevemente abordar dois encontros internacionais menores que ocorreram em paralelo ao Fórum Civil em Nova Déli: o 2º Encontro do Observatório Feminista do BRICS, o Voluntary Action Network India (VANI), o Forum for Indian Development Cooperation (FDIC ) e o Prelude International BRICS Meeting organizado pela Heinrich Böll Foundation India.
- POMEROY, Melissa et al. Civil Society, BRICS and International Development Cooperation. GU, Jing; SHANKLAND, Alex; CHENOY, Anuradah (eds.). The BRICS in International Development.
- Livre tradução pelo SPW.
- Veja, por exemplo, CARVALHO, Janine Salles de e BEGHIN, Nathalie. For an Inclusive, Democratic Social Participation Space in the BRICS. BRICS Voices (Vasudha Foundation), September: 1–4. 2015. Available at: http://www.inesc.org.br/news/2015-1/september/bricss-civil-society-voices-to-be-heardquarterly-to-promote-inclusion-and-accountability
- GAVENTA, John, Ibid, p. 26
- BOND, Patrick. Co-dependent BRICS from above, co-opted BRICS from the middle, and confrontational BRICS from below. BOND, Patrick e GARCIA, Ana. BRICS: An Anti-Capitalist Critique. Déli: AAKR Books, 2016. pp. 286-300.
- Os produtos do projeto “Poderes Emergentes, Sexualidade e Direitos Humanos” do SPW, podem ser de grande valor por adicionar ao panorama um conjunto rico e diverso de reflexões e vozes de atores da sociedade civil que participaram de eventos relacionados ao BRICS, assim como de acadêmicos que pesquisam o tema. O material está disponível em http://sxpolitics.org/ptbr/novos-produtos-spw/5017
- Entre as principais entidades que têm ativamente mobilizado fundos para sediar encontros e levar representantes da sociedade civil a cada cúpula do BRICS, podemos mencionar organizações internacionais para o desenvolvimento como Oxfam e Action Aid, assim como as fundações alemães Friedrich-Ebert-Stiftung e Heinrich Böll.
- Entre as organizações da sociedade civil nas discussões partiiparam também: PRIA (Participatory Research in Asia), National Foundation for India, Oxfam India e the VANI. Veja: http://fidc.ris.org.in/
- O número aparece na declaração final dos Povos, disponível em: https://peoplesbrics.org/2016/10/24/goa-declaration-of-the-peoples-forum-on-brics/
- No site do Comitê de Organização Nacional pode ser vista a lista completa de entidades: https://peoplesbrics.org/about-the-forum/
- Entre os presentes indianos, podemos citar a National Alliance for People’s Movements (que contou com uma de suas lideranças históricas, Medha Patkar), o Indian Social Action Forum, uma gama de grupos ambientalistas (tais como Beyond Copenhagen, Centre for Financial Accountability e grupos anti energia nuclear), vários movimentos trabalhando com poder corporativo e financeiro, investimento e comércio (como a Transnational Institute ou a Rede do Terceiro Mundo), movimentos Dalit, assim como o Movimento de Mulheres Musulmanas (Bharatiya Muslim Mahila), entre outros grupos como a ONG indiana Video Volunteers ou Action Aid India.
- Por exemplo, três representantes da REBRIP (uma das principais organizadoras do Fórum dos Povos no Brasil) vieram à Índia, um participou do encontro da VANI e os outros dois foram ao Fórum dos Povos. O grupo sul-africano HURISA, presente no Fórum dos Povos em Durban e Fortaleza, participou apenas do Fórum Civil desta vez.
- Tais como os estudiosos Patrick Bond e Travor Ngwane.
- Entre eles, podemos citar o HURISA, o Legal Resources Centre, a Oxfam South Africa, o Economic Justice Network, o Studies on Poverty and Inequality Institute e representantes de associações de mulheres pequenas produtoras.
- Nomeadamente, representantes da organização feminista Instituto da Igualdade e do IBASE, tradicional ONG sediada no Rio de Janeiro.
- Por exemplo, Conectas Direitos Humanos, GIP (Public Interest Management), Oxfam Brasil, Action Aid Brasil, assim como um pesquisador do Centro de Estudos de Políticas Públicas do BRICS, e um professor da UnB.
- 2 Veja a declaração da REBRIP sobre participação: http://www.rebrip.org.br/noticias/rebrip-lanca-sua-proposta-de-criacao-do-forum-da-sociedade-civil-dos-brics-cc57/
- 2 Por exemplo, do National Committee on BRICS Research.
- Greenpeace China e o Social Resources Institute, por exemplo.
- Veja o release da RIS sobre o primeiro dia do evento: http://ris.org.in/press_release/Press_Release_Civic_BRICS.pdf
- http://www.mea.gov.in/bilateral-documents.htm?dtl/27491/Goa+Declaration+at+8th+BRICS+Summit
- Veja: http://brics2016.gov.in/content/document.php
- Esta sentença específica figura na Declaração do Fórum dos Povos de Goa.
- Possivelmente porque a sociedade civil brasileira e as principais organizadoras do Fórum dos Povos do BRICS durante a Cúpula de Fortaleza tinham uma conexão particular com o então governo do Partido dos Trabalhadores e queriam explorar mais o engajamento crítico do que o confronto aberto. Em Fortaleza, por exemplo, um importante diplomata que estava negociando o Novo Banco de Desenvolvimento naquele momento foi convidado a fazer um discurso e dialogar com os participantes do Fórum.
- Veja KHANNA, AKSHAY e CORRÊA, SONIA. Emerging Powers, Sexuality and Human Rights: “Fumbling around the elephant?”, Rio de Janeiro, Sexuality Policy Watch, 2015