O Observatório de Política e Sexualidade (SPW) e a Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS (ABIA) têm apoiado o ativismo intenso das organizações de trabalhadoras do sexo no mundo e no Brasil em nome da descriminalização da prostituição. No ano de 2013, a ABIA publicou junto com a Davida um relatório sobre um estudo realizado sobre contextos de prostituição em termos de direitos humanos e políticas públicas no Brasil. Já naquela época, o relatório apontava o silêncio em relação à prostituição em diversas esferas federais e a falta de políticas baseadas na promoção de direitos das mesmas. Hoje, em 2016, é difícil acreditar que encontramos um cenário pior, no qual as instâncias entrevistadas, como a Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM) e a Secretaria de Direitos Humanos, foram rebaixadas institucionalmente no organograma do governo federal. Como parte da campanha All in for #Decrim, aqui compartilhamos algumas reflexões sobre esse cenário nacional e internacional, nossas preocupações e possíveis caminhos de resistência.
O ano de 2016 foi particularmente estarrecedor. Em meio aos sucessivos golpes e investidas conservadoras ao redor do mundo, Brasil e EUA ajudaram a compor uma trama que, ao que tudo indica, será ainda mais regressiva no próximo ano. Entre tantos aspectos e âmbitos sociais e políticos, o universo do trabalho sexual não está imune aos ventos tempestuosos da conjuntura. Por isso mesmo, os caminhos de resistência e a rearticulação dos movimentos sociais é crucial para fazer frente ao futuro nebuloso.
Em maio, o afastamento de Dilma Rousseff da Presidência no Brasil – que tornar-se-ia definitivo em agosto – foi resultado de um movimento conservador amplo, apoiado, entre outras bases, em discursos religiosos dogmáticos. O novo governo imediatamente retirou de prioridade ações e planos de promoção dos direitos humanos, em particular dos direitos sexuais e reprodutivos. Os ventos da moral sexual colocavam em movimento a engrenagem da restauração conservadora, conforme o SPW analisou.
Não foi, entretanto, um acontecimento inesperado. O gabinete dos “homens brancos”, o rebaixamento institucional das secretarias de Direitos Humanos, Igualdade Racial e de Políticas para as Mulheres, assim como uma gama de ações e sinais contrários a inúmeros direitos sociais (como saúde, educação e cultura), podem ser compreendidos com mais propriedade diante do crescimento e do fortalecimento de setores conservadores no tecido social e nos espaços institucionais nos últimos anos. O próprio governo destituído já emitira sinais claros de que determinadas temáticas, como o trabalho sexual, não seriam promovidas sob pena de perder a sustentação na coalização de governo. Em 2013, a gestão Dilma Rousseff recuou e retirou de circulação uma campanha do Ministério da Saúde destinada à prevenção do HIV/AIDS entre prostitutas. Um passo atrás que deu continuidade a uma série de outros recuos em campanhas de prevenção, como a voltada para jovens gays no carnaval de 2012. O resultado disso é, além do aumento de infecções pelo HIV, o desmoronamento de uma política de resposta à epidemia vista em outros tempos como modelo, conforme avaliou o relatório da ABIA “Mito vs Realidade: sobre a resposta brasileira à epidemia de HIV e AIDS em 2016”.
Nesse roteiro, quando enfim o atual governo se empossou definitivamente no mês de agosto, a tempestade já estava formada e em curso. Recentemente, quando a 1ª turma do Supremo Tribunal Federal decidiu por revogar a prisão de acusados por prática de aborto ilegal, com base na tese de inconstitucionalidade da criminalização da prática, o Congresso prontamente reagiu, instaurando comissão para confrontar a decisão. A reação foi pilotada pelo deputado João Campos (PRB-GO), líder da bancada evangélica e autor de um projeto de lei destinado a criminalizar clientes de prostitutas.
O projeto de lei do deputado João Campos é um dos dois projetos de lei que ameaçam direitos de profissionais do sexo no Brasil. O outro projeto é do deputado Flavinho (PSB-SP), que pretende retirar “profissional do sexo” do Código Brasileiro de Ocupações (CBO) do Ministério de Trabalho – direito conquistado pelo movimento brasileiro de prostitutas em 2002. Tanto o projeto de João Campos quanto o projeto de Flavinho vão na contramão de uma série de documentos e estudos organizados por instituições como Organização Mundial da Saúde, Anistia Internacional, Comissão do Estatuto da Mulher e uma edição recente do Lancet que refutam a criminalização da prostituição.Todos recomendam a descriminalização da prostituição como a melhor forma de proteger e promover os direitos das prostitutas, inclusive e principalmente em termos de prevenção do HIV. Conforme dito por Shannon e colegas em seu artigo no Lancet.
Descriminalização do trabalho sexual teria o maior efeito sobre o curso da epidemia de HIV em todas as configurações, evitando 33-46% das infecções pelo HIV na próxima década. Intervenções estruturais e lideradas pela comunidade são cruciais para aumentar o acesso à prevenção e ao tratamento e promover os direitos humanos para trabalhadoras sexuais em todo o mundo.
No entanto, na regressiva conjuntura, não é irreal que projetos como estes sejam recolocados em pauta, reativando a luta política em torno do direito das prostitutas e abrindo espaço para que visões progressistas também venham à tona, como é o caso do projeto de lei Gabriela Leite, do deputado Jean Wyllys (PSOL-RJ), que atualmente tramita no Congresso Nacional e propõe a descriminalização e regulamentação da profissão.
Preocupadas com o cenário nacional e cada vez mais convencida da necessidade de mobilização internacional, a Rede Brasileira de Prostitutas, junto com Davida, Observatório da Prostituição, Grupo de Mulheres Prostitutas do Pará (Gempac), Associação Mulheres Guerreiras, Transrevolução e a Casa Nem submeterem um relatório sobre violações de direitos humanos de prostitutas e sobre a necessidade de descriminalização já para a Revisão Periódica Universal do Brasil diante da Comissão de Direitos Humanos ONU no 2017.
Do Brasil para os EUA. A conjuntura brasileira não foi uma tempestade isolada. Pelo contrário, está ligada a um cataclismo amplo, de alcance global. A eleição de Donald Trump à Presidência dos EUA, em novembro, integra o fenômeno. E representa um danoso ataque aos ideais de direitos humanos, especialmente quando se leva em conta o peso do país no mundo. Até o momento, as pessoas indicadas para ocupar os principais postos e ministérios suscitam arrepios. Na diplomacia, política energética, educação, saúde, defesa predominam figuras profundamente conservadoras. No campo dos direitos sexuais e reprodutivos, a tendência não é diferente. Durante a fase de debates com a oponente Hillary Clinton, Trump já tinha afirmado que iria privilegiar indicações para a Suprema Corte de juristas contrários ao direito ao aborto. Mike Pence, vice-presidente eleito e figura de proa na condução da futura administração Trump, é um ferrenho opositor dos direitos sexuais e reprodutivos, tendo atuado, quando congressista e governador do Estado de Indiana, contra o direito ao aborto, a prevenção ao HIV/AIDS e a população LGBT. Durante a campanha, conversas privadas de Trump vazaram e revelaram conteúdo machista e sexista, com menção a atos de agressão sexual.
No âmbito do trabalho sexual, a perspectiva não é promissora. A profissão já é crime nos Estados Unidos, e a USAID (Agência para o Desenvolvimento Internacional), que planeja e executa ações pelo mundo, é um ator relevante na questão. Em 2003, a administração de George W. Bush estabeleceu que instituições financiadas pelo órgão deveriam explicitamente posicionar-se contra a prostituição para estarem aptas a financiamento no combate ao HIV/AIDS. A iniciativa foi considerada inconstitucional pela Suprema Corte em 2013 para organizações nacionais, mas continua em vigor para organizações internacionais que recebem fundos do governo americano. Apesar de uma mobilização considerável de diversas organizações nacionais e internacionais ao longo da última década e até um espaço de debate no New York Times, no qual a postura brasileira de recusar a assinar a cláusula, e por consequência, devolver mais de US$40 milhões da USAID, foi destacada, o cenário atual representa um combustível à manutenção da chamada “prostitution pledge”. Isso cria um clima favorável à intensificação de medidas e discursos contrários à prostituição e ao fortalecimento de uma visão abolicionista e anti-prostituição.
Em um mundo em ebulição, no qual discursos de ódio, misóginos, dogmáticos e criminalizantes florescem e ocupam crescentemente espaços institucionais e de tomada de decisão, o momento é propício para a articulação de frentes de resistência que reúnam não só prostitutas, mas todas as camadas marginalizadas e movimentos sociais cujos direitos em disputa são atacados em bloco, em todas as partes do mundo. A campanha desta semana, em favor da descriminalização, mostra o vigor e a importância da resistência de organizações de prostitutas e aliadas. A campanha da Rede Internacional de Profissionais do Sexo #arewenotwomen é um exemplo de iniciativa que abrange e inclui diversos movimentos (neste caso, o movimento de mulheres e de profissionais do sexo) para juntar a lutar por seus direitos em horizontes cada vez mais difíceis.
Imagem: Lourdes Barreto, Desfile DASPU, no IFCHS UFRJ (Rio de Janeiro, 2015)