Publicado originalmente no blog Desintegrações
Não é raro, quando eu chego nos lugares em minha cadeira de rodas, as pessoas começarem a me encarar, encarar meu corpo, meus gestos. Percebo uma diversidade de olhares, uns mais pesarosos, outros mais ousados, mas todos curiosos. Meu corpo-cadeira-de-rodas causa incomodo e uma espécie mórbida de atração. Sinto que vivo em uma fronteira muito específica: entre o desejo curioso em meu corpo e a repulsa que desejá-lo provoca. Interessante é também experimentar essa a fronteira entre o desejo e a repulsa quando falo publicamente sobre minhas pesquisas sociológicas em torno de pessoas sem deficiência que 1) se atraem sexualmente por deficientes ou que 2) sentem a necessidade de se transformar em pessoas deficientes[i].
“Como é possível alguém desejar sistematicamente corpos deficientes? Como é possível alguém “normal” buscar amputar uma perna? Como esses indivíduos vivem? Essas pessoas realmente existem?” Essas são algumas questões que vem à mente das pessoas quando me apresento e ajudam a demonstrar que uma das curiosidades mais pontuais sobre os aspectos da vida das pessoas com deficiência é sobre seu corpo e sua ‘sexualidade’.
A partir do momento que mostramos interesse afetivo em alguém até o ponto em que temos desejo de explorar sexualmente nosso próprio corpo, as pessoas com deficiência são desacreditadas na sua capacidade de construir relações eróticas e afetivas. O documentário espanhol de 2015 Yes, We Fuck!, dos diretores Antonio Centeno e Raul de la Morena, faz a importante tarefa de desmitificar a vida sexual das pessoas deficientes, não só mostrando que elas fodem das mais diversas maneiras, mas também explorando formas menos padronizadas de nos relacionarmos intimamente com nossos corpos e com os corpos de outras pessoas.
Yes, We Fuck! (Sim, Nós Fodemos) vem para ser um interessante contraponto político e cultural para as perguntas que a sociedade constantemente faz para as pessoas deficientes: “mas, afinal, vocês transam? como?” A resposta positiva e provocante, por se utilizar de um termo que causa espanto aos mais pudicos (foder), foi a aposta da equipe de ativistas políticos deficientes espanhóis para discutir a intersecção entre deficiência e sexualidade. Mostrando exatamente o ‘local de fala’ das pessoas deficientes, isto é, suas perspectivas e posicionamentos, Yes, We Fuck! estreou em circuito mundial ao longo do ano de 2015 e tem ganhado cada vez mais destaque em eventos internacionais e festivais de cinema ao redor do mundo[ii]
Aos menos acostumados com diferentes possibilidades estéticas e corporais, o documentário é um ‘choque’. Como pesquisador sociocultural das relações entre deficiência e sexualidade, tive a oportunidade de participar e comentar duas sessões do documentário Yes, We Fuck! aqui no Brasil e o que percebi dos e das espectadoras é um momento inicial de incredulidade misturada a doses de ‘como isso é possível?!’. Durante o mês de setembro, a Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e a Universidade de Campinas (UNICAMP) promoveram duas sessões públicas do documentário e pude discuti-lo na companhia de duas antropólogas que acompanham de perto as movimentações sexo-ativistas espanholas: a pesquisadora Carolina Branco de Castro Ferreira e a pesquisadora espanhola, e uma das colaboradoras do filme, Andrea García-Santesmases Fernández (que estava de passagem pelo Brasil desde meados de 2016)[iii].
Yes, We Fuck! é um composto estético de vivências eróticas, pornográficas, afetivas e de cuidado que, em sua maioria, gira em torno da vida sexual e íntima das pessoas deficientes. Paraplégicos, tetraplégicos, paralisadas cerebrais, cegas, pessoas com síndrome de down, enfim, corpos e comportamentos que se enquadram na grande categoria da ‘deficiência’ são acompanhados em suas mais íntimas fantasias eróticas. Extrapolando a máxima feminista de que o pessoal é político, o documentário mostra o cotidiano e negociações afetivas que circulam entre as pessoas deficientes, a partir de uma parcela do ativismo deficiente espanhol. As pessoas com ‘diversidade funcional‘, nome politicamente adotado na Espanha para se referir a ‘deficiência’, relatam seus fetiches e mostram como criam relações e parcerias entre si e com outras ‘identidades sexuais’, para poderem fazer o que todos acham inacreditável que façamos: sexo.
O ativismo erótico-pornográfico dos diversos funcionais (deficientes), representado em Yes, We Fuck!, precisa ser visto e interpretado como extremamente entrelaçado ao ativismo feminista e queer[iv] de Barcelona. Somos introduzidos ao mundo erótico e pervertido da diversidade funcional por duas lésbicas, uma delas, inclusive, faz questão de que a chamem de sapatão. Ao longo do filme vamos nos deparando com histórias de discriminação e marginalização social por questões de sexualidade, gênero e corporalidade que criam uma identidade entre gays, lésbicas, viados, sapatões, deficientes e aleijados. Ao mesmo tempo são essas conexões que possibilitam o que o filme mostra de melhor: o redimensionamento da discriminação sofrida por esses indivíduos em uma estética crítica e comunitária dos padrões e normas dos relacionamentos sexuais e afetivos humanos.
SIM, NÓS FODEMOS! E SEU IMPACTO SOBRE AS IDENTIDADES DEFICIENTES NORMATIVAS
No Brasil, nem o ativismo político das pessoas deficientes e nem as teorias socioculturais sobre deficiência elegeram historicamente a sexualidade como uma categoria a ser colocada em tensão política nesses circuitos. Mesmo que este contexto esteja mudando, por aqui os ativistas e teóricos da deficiência no Brasil ainda estão muito centrados em um modelo biomédico de sua interpretação. Essa maneira de alocar a deficiência acaba dando ênfase a uma despolitização do corpo deficiente, pois só o considera uma consequência de falhas orgânicas, disfunções. Desse modo, falar de políticas sociais para a população com deficiência brasileira fica circunscrito a questões de acessibilidade no ambiente social para acesso ao mercado de trabalho.
Na verdade, temos visto no Brasil um apelo cada vez maior às ideias de autonomia e independência para pessoas com deficiência sem refletirmos criticamente sobre elas. Esses apelos acríticos, no meu modo de interpretar, tem nos levado a um tipo de acessibilidade estrutural e Inclusão com vistas a somente colocar mais indivíduos no mercado de trabalho, sem muitas preocupações com questões de permanência no serviço, horas trabalhadas, auxílios extras e recursos humanos (como cuidadores e acompanhantes diários).
O corpo deficiente, portanto, acaba sendo uma realidade fantasma. Ao mesmo tempo que muitas pessoas deficientes dizem que seu corpo não é impedimento algum, as estruturas sociais não comportam todo e qualquer tipo de corpo em suas dinâmicas. É por isso que muitas empresas que necessitam seguir a lei de cotas para pessoas com deficiência escolhem os e as deficientes ‘menos piores’ para preencherem seus cargos. As pessoas que mesmo com alguma deficiência física, sensorial ou cognitiva conseguem ‘se virar sozinhas’, são as preferidas, pois inclusive elas conseguiriam trabalhar em locais com pouca ou nenhuma acessibilidade.
Felizmente alguns de nossos e nossas ativistas deficientes já estão ligados nessas mobilizações coletivas internacionais e políticas em torno do documentário e estão interessados em começar um movimento semelhante no Brasil. É o caso de Ana Rita de Paula e Tuca Munhoz que têm incentivado o debate através das redes sociais e encontros presenciais entre os interessados na questão na cidade de São Paulo[v]. Por algumas coincidências cibernéticas, entrei em contato com Munhoz e mostrei a ele um pouco de meu trabalho como ativista e sociólogo que se interessa exatamente pela interface entre sexualidade e deficiência. Em uma breve conversa, Tuca Munhoz comentou que falar sobre a sexualidade na deficiência de uma maneira mais provocante pode fazer o movimento político de pessoas deficientes no Brasil prestar mais atenção em questões de cuidado e interdependência como pautas públicas e políticas.
Um documentário como Yes, We Fuck! nos dá a chance de extrapolar a ideia de acessibilidade para além das estruturas coletivas de nossa sociedade. O filme alarga as premissas da acessibilidade para o cotidiano íntimo das pessoas com deficiência, o que possibilita pensar os corpos humanos em espaços que não são considerados políticos por excelência, como o banheiro, a cama, o quarto, a relação de dependência familiar e amorosa. A ideia de ‘acesso sexual’ contida no filme é um ótimo exemplo para politizarmos tanto as estruturas sociais que rodeiam nossos corpos deficientes, como para deflagrar que sentir tesão em alguém e ser aceito sexualmente são coisas imersas em inúmeras relações de poder. Nesse ponto, o papel da assistência sexual ganha proeminência no longa metragem por ser um tipo de relação que possibilita a alguém deficiente uma pessoa que a auxilie a se masturbar ou a fazer sexo com seu companheiro. Em outras palavras, o papel da assistência sexual não é prover exatamente o sexo para as pessoas deficientes, mas ser um suporte interpessoal para que relações eróticas e afetivas possam se concretizar[vi].
SEXUALIDADE E DEFICIÊNCIA: UM BREVE CONTEXTO POLÍTICO
Ainda é muito comum ouvirmos falar na interação entre ‘sexualidade e deficiência’ quase que exclusivamente sob um registro biomédico. O discurso e investigação biomédica da sexualidade humana recebe o nome de sexologia. A sexologia, genericamente falando, é parte de uma rede de estudos ampla sobre o comportamento humano que parte do pressuposto que os indivíduos são movidos por necessidades fisiológicas universais como comer, dormir, cagar, mijar e fazer sexo. É por isso que historicamente partimos do pressuposto que as pessoas com deficiência possuem ‘incapacidades naturais’ para o seu suposto problema com a sexualidade.
Durante muito tempo, como mostrei na postagem passada (https://desintegracoes.wordpress.com/2016/10/26/qual-e-teu-problema-a-deficiencia-como-duvida/ ), a deficiência foi única e exclusivamente interpretada como um problema anatômico e fisiológico, o que a relegou aos domínios médicos da reabilitação e da correção do corpo ‘incapaz’. Quando os movimentos de pessoas deficientes começaram a se tornar visíveis na segunda metade do século XX, essa noção de que a deficiência é algo natural, algo que sempre se define no corpo do indivíduo como uma falha\defeito, foi desestabilizada.
Isso se deve ao fato da militância antirracista, dos movimentos feministas e dos movimentos de liberdade sexual terem questionado, ao longo do século passado, o próprio estatuto natural dos corpos e de práticas afetivas e eróticas centradas em aspectos hierárquicos e segregacionistas de gênero, raça e desejo. Fundamentalmente, essas mobilizações mostraram o caráter histórico e político dos níveis mais íntimos das relações humanas. Uma vez que nos atraem coisas que podem estar a nosso alcance, mesmo que em projeção, o nosso próprio gosto possui condicionantes sociais e culturais que vão nos permitir achar alguém feio, bonito, interessante, amigável etc. Em suma, relacionar-se erótica e afetivamente com alguém vai muito além de um suposto ‘instinto sexual’. Então, fica a pergunta, como as pessoas deficientes podem ser um ‘objeto de desejo’ se elas não estão em plena ‘circulação erótica’ no mundo?
Em uma de suas apresentações, a pesquisadora Andrea García-Santesmases Fernández disse algo que me marcou: que um documentário como Yes, We Fuck! ‘não surge do nada’. Isto quer dizer que por mais que a deficiência entrelaçada ao sexo e sua prática teimam em aparecer de forma inacreditável e espetacular no ‘senso comum’, existem inúmeras negociações cotidianas sendo feitas por pessoas deficientes há muito tempo com vistas a terem sua sexualidade reconhecida e possível de ser praticada. Dizer ‘Sim, nós fodemos!’, vai muito além do orgasmo momentâneo; é uma nova maneira de se colocar em perspectiva sexo-política com o mundo; como dizem os espanhóis: é uma nova maneira de imaginar e fantasiar a deficiência.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade I: a vontade de saber. São Paulo: Graal, 2005.
GARCÍA-SANTESMASES, Andrea; BRANCO DE CASTRO, Carolina. Fantasmas y fantasías: controversias sobre la asistencia sexual para personas con diversidad funcional. Pedagogia i Treball Social. Revista de Ciències Socials Aplicades. Vol. 5, No 1 (2016). Disponível em: < http://ojs.udg.edu/index.php/pedagogia_i_treball_social/article/view/252/303 >
GAVÉRIO, Marco Antonio. Medo de um Planeta Aleijado? – Notas Para Possíveis Aleijamentos Da Sexualidade. Áskesis. v. 4 n. 1, janeiro/junho – 2015. Disponível em: < http://www.revistaaskesis.ufscar.br/index.php/askesis/article/view/29
*Agradeço imensamente à Andrea García-Santesmases Fernández pelas sugestões feitas em versão prévia desse texto.
[i] As pessoas que se atraem sexualmente por pessoas deficientes são chamadas de devotees. As pessoas sem deficiência que buscam infligir voluntariamente uma deficiência em seus corpos são conhecidos como wannabes. Em minha atual pesquisa de mestrado faço uma análise de artigos científicos que buscam explicar esses comportamentos.
[ii] http://www.yeswefuck.org/
[iii] Os eventos aconteceram no dia 6 de setembro na UFSCar e no dia 21 na UNICAMP. Na UFSCar, instituição na qual estou ligado, o debate foi iniciativa do Departamento de Sociologia, do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e do Grupo de pesquisa sobre Sexualidade e Entretenimento (SEXENT), sob orientação do Prof. Dr. Jorge Leite Júnior. Na UNICAMP o debate foi promovido pelo Núcleo de Estudos de Gênero PAGU e fez parte do evento: Diálogos entre deficiências e questões trans: saberes, direitos e políticas e sua programação pode ser vista aqui neste link: < http://www.pagu.unicamp.br/pt-br/dialogos-entre-deficiencias-questoes-trans-saberes-direitos-politicas >
[iv] para uma introdução provisória de como o ativismo queer se mescla ao ativismo deficiente ver meu artigo GAVÉRIO, 2015.
[v] Recentemente o Memorial da Inclusão do estado de São Paulo promoveu um debate com a participação de De Paula e Munhoz sobre o movimento Yes, We Fuck! em uma mesa chamada Deficiência e os direitos reprodutivos e sexuais. A programação desse evento está no seguinte endereço: http://www.memorialdainclusao.sp.gov.br/mesas-redondas-estudos-sobre-a-deficiencia/
[vi] Existe uma diferença entre assistentes sexuais e terapeutas sexuais. E ainda essas duas categorias se diferenciam das categorias mais amplas de prostituição. Há um grande debate sobre esse assunto e recomendo a leitura de García-Santesmases e Branco de Castro (2016) para um panorama dessas diferenças. Recentemente o filme hollywoodiano As Sessões (dir.: Be Lewin; 2013) representou a vida do poeta e ativista deficiente Mark O’Brien e suas primeiras experiências sexuais que aconteceram através de uma terapeuta sexual. Basicamente a terapia sexual envolve práticas sexuais entre o terapeuta e o paciente a fim de tornar este capaz de reconhecer em si, e no outro, maneiras de produzir prazer. Mark O’Brien era severamente deficiente devido à poliomielite.