por Mark Gevisser
Talvez a sessão mais emocionante, no seminário “SexPolitics: Mapping Key Trends and Tensions in the Early 21st Century”, promovido pelo Observatório de Política e Sexualidade (SPW) em julho, em Durban (África do Sul), tenha sido o debate final sobre HIV/Aids. Richard Parker e Peter Aggleton falaram sobre a remedicalização da epidemia e suas apresentações repercutiram em uníssono entre os participantes que, em suas intervenções, fizeram eco à raiva e à dor de ativistas e pesquisadores que dedicaram grande parte de suas vidas ao combate à epidemia, mas hoje se veem frustrados – ou até mesmo prejudicados – pelo comercialismo, auto-generativo, da indústria da Aids.
Eu que sou mais ou menos um outsider em relação ao SPW – este foi meu primeiro encontro no contexto da iniciativa – fui tomado por duas questões durante essa sessão. A primeira foi perceber, uma vez mais, que a epidemia de Aids abriu espaços para que as sociedades encarassem de frente a sexualidade como nunca antes haviam feito, e produziu (ou pelo menos inspirou) uma geração de ativistas e pesquisadores que redefiniram a forma como pensamos esse tema.
“E tantos deles”, eu disse a mim mesmo, “estamos sentados nesta sala”. Esse foi meu segundo insight. As pessoas reunidas pelo SPW em Durban eram, com poucas exceções, de uma geração particular, uma geração pioneira, minha própria geração. Nós somos filhas e filhos da segunda onda feminista e anticolonial dos anos 1960, as irmãs e os irmãos mais novos das e dos ativistas pelos direitos gays dos anos 1970. Somos ativistas da Aids e ativistas globais dos direitos LGBT dos anos 1990 e 2000, irmãs e irmãos mais velhos dos ativistas queer e trans dos dias atuais.
O perfil geracional deu ao encontro do SPW uma energia particular: o dom da retrospectiva e, certamente, da reflexão, mas também um certo desânimo sobre o estado do mundo. Teria uma geração mais nova de pesquisadores e ativistas compartilhado essa mesma visão, perguntei a mim mesmo? Esse desânimo é com frequência efeito de uma expressão de idealismo que potencializa o ativismo árduo e abnegado – um idealismo que impregna, em particular, aqueles de nós que viveram o marxismo revolucionário de meados do século XX – e, por isso, fiquei muito satisfeito quando, no início do encontro, Richard Parker alertou-nos sobre os perigos do ‘milenarismo inútil’.
Também me parece que o clima de pessimismo sentido ao longo dos debates decorre de que a maioria dos participantes não são nativos digitais, não são exatamente as ‘crianças globalizadas’. Isso significa — novamente, com notáveis exceções – que ainda enxergamos ativismo e advocacy com as lentes do século XX, ações centradas na negociação com o ‘Estado’ e que se desenvolvem, de alguma forma, dissociadas de outras dinâmicas ou energias que talvez sejam mais difíceis domar, como a revolução da informação, a migração em massa, a expansão do capitalismo das commodities e do turismo, entre outras.
Isso se refletiu no que eu considero ser uma lacuna significativa nos debates do encontro: a compreensão dos efeitos da tecnologia digital e da revolução da informação sobre a política sexual e de gênero e suas práticas. Também representa uma preocupação com o que que significa o poder do estado, como observado por Sonia Corrêa ao dizer que: “Nós devemos superar nossa fixação pelo Estado!”. Eu compartilhei esse sentimento nos meus comentários finais, mas, ao fim e ao cabo, concordei, com Juan Marco Vaggione quando ele nos lembrou da importância de continuar negociando ‘mudanças’ com as estruturas de poder, sugerindo que “renovássemos nossos votos” com os estados, mas levando em consideração o novo ambiente globalizado, no qual as demandas e agenciamentos fluem em direções distintas daquelas que predominaram no século XX.
As metáforas do ‘casamento’ também estiveram presentes. Pode-se mesmo dizer que, em muitos momentos, dominaram os debates em função dos avanços ocorridos no âmbito das reformas legais que garantiram direito ao casamento igualitário e do que isso representou em termos de triunfo das lutas da política sexual, de tal modo que tem eclipsado outras questões cruciais do campo, de forma mais ampla, os direitos sexuais e o trabalho sexual. Cytnhia Rothschild compartilhou, com frustração, como os dados e informações sobre iniciativas no âmbito dos direitos LGBT ocuparam o espaço da pesquisa que ela e Susana Fried fizeram sobre política sexual nos Estados Unidos, prevalecendo amplamente sobre outras áreas como o direitos ao aborto e questões dos trabalho sexual. Muitos participantes, sobretudo da América Latina, contrastaram os avanços no campo do casamento com a ausência de progresso, ou mesmo regressões no terreno do direito ao aborto. Várias vozes recorreram a análises sobre homonacionalismo e homonormatividade como dimensões centrais desse cenário.
Dipika Nath e Carrie Shelver, por exemplo, expuseram a lógica do homonacionalismo de maneira muito vívida, no começo do encontro, quando falaram sobre as “roupas de casamento que são manchados de sangue pelo militarismo utilizado contra estados que não aderem às normas do Ocidente” e que nos dias atuais incluem, obviamente, os direitos LGBT. Paul Amar nos desafiou a compreender a retórica combinada de amor e guerra que circula no século XXI mobilizada pela semântica dos Estados Unidos, por exemplo, como no discurso do presidente Obama após a decisão da Suprema Corte sobre casamentos entre pessoas do mesmo sexo. Esse discurso evoca a ideia de um ‘trovão global de amor’ se espalhando pelo mundo afora – ou seja avanços nas lei de casamento igualitário – e que se define como estando em oposição direta ao ódio, aos ‘abraços da morte’, perpetrados pelo Estado Islâmico e os inimigos da democracia. David Paternotte ilustrou com clareza essa mesma dinâmica ao examinar como as forças da direita buscam, na Europa Ocidental, barrar ou excluir novos imigrantes com base na justificativa de sua suposta homofobia.
Sonia Corrêa nos lembrou que a pauta do casamento igualitário, como parte da agenda dos direitos sexuais, tem sido objeto de jogos por parte dos estados. Esses jogos devem ser lidos contra o pano de fundo do projeto de ‘modernização conservadora’ que tem dominado a América Latina desde os processos de independência século XIX. E Maria Amelia Viteri falou, de maneira convincente, sobre como a aderência à pauta do casamento entre pessoas do mesmo sexo tornou-se um novo dispositivo de admissão do Sul global no ‘mundo ocidental civilizado’. Muitos outros participantes discorreram sobre como os direitos LGBT – agora concentrados sob o guarda chuva do casamento igualitário – se tornou um fetiche de modernidade, um marcador de cidadania global, uma virtude para ser barganhada nos competitivos mercados globais. Anna Kirey and David Paternotte exploraram como nas regiões sobre as quais pesquisam a dinâmica está vinculada ao acesso à União Europeia e como a Rússia reage nesse contexto alimentando a ideia de ‘guerras culturais globais’ contra o Ocidente. Christine Barrow também examinou a maneira como essas mesmas ‘guerras culturais’ estão se desenrolando no Caribe, onde forças reacionárias que falam em nome ‘dos valores tradicionais’ – usando ideologias religiosas – são cada vez mais articuladas e ativas contra a ‘modernidade secular do Ocidente’. E no que diz respeito às forças religiosas, Horacio Sívori e Juan Marco Vaggione compartilharam insights importantes sobre as ideologias da sexualidade propagadas pelas igrejas evangélicas e católicas, respectivamente.
Eu fiquei, particularmente, interessado na interpretação de Anna Kirey quanto ao hiato dramático que se observa em países do antigo bloco soviético, entre um quadro legal razoavelmente progressista – como a descriminalização da homossexualidade – e as atitudes sociais muito reacionárias contra pessoas LGBT. Isso se deve, segundo ela, a que essas iniciativas legais decorrem basicamente do ‘desejo dos estados’ de aceder à comunidade ‘moderna’ das nações europeias e não, exatamente, de movimentos de base comprometidos com mudanças de fundo. Em outras palavras, esses têm sido processos verticais operados ‘de cima para baixo’ ou mesmo transportados ‘de fora’.
Enquanto ouvia Kirey, me lembrei do que disse o presidente do Senegal, Macky Sall, a Barack Obama quando de sua visita a esse país africano em 2013. Obama acabara de se posicionar enfaticamente em favor do casamento entre pessoas do mesmo sexo em seu país. Ele estava, de fato, acenando a seu eleitorado doméstico, tendo em vista que a Suprema Corte dos EUA acabara de derrubar o Estatuto de Defesa do Casamento, que impedia o reconhecimento federal do casamento entre pessoas do mesmo sexo. Em Dacar, ele celebrou a decisão, acrescentando que as pessoas LGBT deveriam ter direitos iguais também na África. O presidente Sall respondeu que a África, na realidade, não estava preparada para tal e retrucou com o conhecido argumento de que os africanos não andam por aí pregando a poligamia ao Ocidente. Na sequência, o presidente senegalês defendeu sua posição em entrevista ao jornal alemão Die Zeit, ressaltando que mudanças culturais são lentas e que o Ocidente estava exigindo mudanças muito rápidas dos africanos. “Apenas ontem, as relações entre pessoas do mesmo sexo foram reconhecidas por vocês, mas mesmo assim estão exigindo aos países africanos que façam essas mudanças agora! Isso está acontecendo de forma muito rápida. Mas nós vivemos em um mundo em que as coisas mudam lentamente!”
Obviamente, Sall está equivocado, talvez propositalmente, em dois pontos. O primeiro é a percepção distorcida de que a pressão por mudança vem de fora – “vocês demandam para já dos africanos!” – e seu corolário: as e os africanos não tem capacidade de fazer escolhas livremente. O segundo ponto é que o mundo não está mudando lentamente, mas, na verdade, em razão da revolução digital, está se alterando de maneira muito mais rápida do que ele (ou, pelo menos, os patriarcas e marabous que ele precisa agradar) conseguem lidar. Seus argumentos são nostálgicos e neles prevalece uma imagem do mundo onde fronteiras nacionais ou culturais estão ainda intactas o suficiente para serem protegidas dos vetores da globalização. Assim sendo, – embora Anna Kirey talvez esteja correta em sua análise sobre o que se passou no antigo bloco soviético nos anos 1990 e começo dos 2000 quando a revolução digital ainda não tinha se consolidado plenamente – esses argumentos não mais se sustentam plenamente no mundo contemporâneo, onde atores do Sul global (ou do Leste global) podem estar sujeitos a muitas influências mas tomam suas próprias decisões e têm agência própria.
Em contraponto à suposição de Sall de que os estrangeiros estão impondo mudanças aos africanos, e demandando que a África mude de maneira mais rápida do que seria possível, quero recuperar as palavras que ouvi em 2013 de Olena Sevchenko, uma das líderes do movimento LGBT ucraniano. São palavras, acredito eu, que devem ser ouvidas por qualquer pessoa interessada em advocacy ou ativismo em direitos humanos e sexualidade, pois explicam como suas ações não se dão no vácuo, sobretudo nos dias atuais, em um mundo globalizado e digitalizado.
Certamente, a sociedade ucraniana não está preparada para os direitos LGBT. Mas as pessoas LGBT ucranianas, elas mesmas. não podem mais ser ‘contidas’. Elas estão online. Elas assistem TV. Elas viajam. Elas veem como as coisas são em outros lugares. E, por que não podem ter liberdades semelhantes? Por devem ser forçadas a viver escondidas? O mundo está mudando muito rapidamente, os eventos estão nos ultrapassando na Ucrânia. Não temos escolha a não ser tentar nadar nesta corrente.
Devo dizer que fiquei maravilhado com a perspicácia, sabedoria, humor e senso de justiça das cerca de 40 pessoas reunidas no seminário SexPolitics em Durban. Também fiquei muito impressionado com a rede extraordinária do Observatório de Sexualidade e Política, na diversidade disciplinar e geográfica. Entre as muitas apresentações, surgiram desafios filosóficos trazidos à tona por pesquisadores como Paul Amar, akshay khanna e Maria Amelia Viteri. Foram compartilhados resultados de pesquisas empíricas muito valiosas por pessoas como Laura Murray, Huang Yingying e Ryan Thoreson, e trabalhos analíticos instigantes de pesquisadores como David Paternotte e Juan Marco Vaggione. E também houve testemunhos pessoais de participantes como Fahima Hashim, Vivek Divan, Daughtie Ogutu e Peter Aggleton.
Mas penso que poderíamos talvez ter feito melhor se estivéssemos em sintonia com as emoções expressas por Olena Sevchenko: “nós não temos escolhas a não ser tentar nadar nesta corrente”. Se, como parte da rede global do SPW, estamos mapeando as principais tendências e tensões das política sexual do início do século XXI, precisamos desenvolver uma compreensão mais ampla do mundo interconectado em que vivemos, bem como dos efeitos dessas conexões tanto sobre as pessoas que constroem políticas públicas, quanto sobre as pessoas que a elas estão sujeitas. Isso significa compreender, mais claramente, os efeitos das forças da globalização tais como a revolução da informação e as redes sociais digitais, a migração em massa, a urbanização e o turismo global, a difusão da cultura global tanto das commodities, quanto da cultura popular, os efeitos do capitalismo transnacional, das corporações multinacionais e das elites ‘modernizantes’, as consequências do que conhecemos como política neoliberal no Sul global.
Isso também requer uma compreensão mais precisa de como as fronteiras dos direitos humanos globais estão mudando, devido às ‘guerras culturais globais’ entre aqueles que, de um lado, advogam por ‘direitos humanos universais’ e aqueles que, do outro lado, lutam pelos ‘valores tradicionais’ e ‘soberania cultural’. E isso significa imaginar como transcorre a vida daquelas pessoas que estão situadas nessas fronteiras, sempre desviando-se de balas que chegam dos dois lados.
Finalmente, isso significa chegar a um acordo a respeito de como as fronteiras da política sexual elas mesmas estão mudando. Por exemplo, esse é um tempo de distanciar-se das batalhas sobre ‘orientação sexual’ que dominaram essa arena de debates nas últimas décadas e abrir espaço efetivo para as políticas da identidade de gênero. Compreender essa dinâmica globalmente, e como as questões de identidade de gênero interagem com as áreas ‘tradicionais’ da pesquisa em política sexual – orientação sexual e direitos reprodutivos e sexuais – talvez seja um dos principais desafios da rede vinculada ao SPW nesse esforço de mapear as tendências e tensões globais do começo do século XXI.