por Mariana Rodrigues Meriqui
No dia 10 de setembro, durante o Fórum Awid, ocorrido na Costa do Sauípe de 08 a 11 deste mês, o Observatório de Sexualidade e Política (Sexuality Policy Watch – SPW), em colaboração com CAL – Coalition of African Lesbians, CONECTAS Human Rights, DAWN – Development Alternative with Women for a New Era, organizou uma sessão/oficina intitulada ‘Poderes Emergentes, gênero, sexualidade e direitos humanos”. Seu objetivo foi aprofundar e compartilhar as implicações das mudanças políticas e econômicas globais, mais especificamente tal como manifestadas nas formações de novos blocos geopolíticos, em especial o BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul na sigla em inglês) e sua correlação com as políticas de gênero, sexualidade e direitos humanos.
A sessão compartilhou os resultados da última rodada de análises globais desenvolvida pelo SPW, um projeto de pesquisa global que examinou essa dinâmica nos quatro países do sul, ou seja Brasil, China, Índia e África do Sul, entre outra razões porque a Rússia não cabe exatamente nessa categoria. Esse esforço deu continuidade ao projeto SexPolitics:Reports from the Frontlines (2004-2007) e aos Diálogos Regionais em Sexualidade e (Geo)Política na Ásia, América Latina e África, desenvolvido pela SPW (2009-2014).
O debate se iniciou com a observação de que essas mudanças geopolíticas têm gerado expectativas de que o surgimento de um “poder ao Sul” poderia abrir espaço para nova plataforma de políticas sexuais, de gênero e direitos humanos, livre das imbricações e tensões Norte-Sul (ou pós-coloniais) que atravessam esse campo de debate. Nesse sentido, fazia-se necessário entender se, onde e como essas dimensões estão presentes nesse processo de emergência de novos blocos geopolíticos. Entre outras razões porque essas questões estão invisibilizadas nas análises e nos discursos dos atores principais que têm refletido sobre essa dinâmica, sejam eles institutos de pesquisa, acadêmicos, economistas, analistas de relações internacionais ou mesmo organizações não governamentais.
Uma primeira observação feita na sessão é que a ‘emergência’ e, nela, a formação do BRICS é um objeto vasto e complexo, cuja interpretação é muito desafiante mesmo do ponto de vista mais convencional do desenvolvimento ou da economia, pois engloba fluxos de comércio e financeiros e múltiplos acordos bilaterais e multilaterais. Essa análise se torna ainda mais complexa e desafiadora quando se adicionam as dimensões de gênero e sexualidade.
Uma segunda reflexão desenvolvida foi que se, por um lado, gênero e sexualidade, não são vistos como tópicos relevantes seja nos discursos oficiais, seja na representação do BRICS na mídia ou nas análises econômicas, basta um olhar mais atento às fotos, registros e vídeos dos encontros oficiais do bloco para verificar que as dimensões de gênero e sexualidade desses novos processos de configuração econômica são incontornáveis. Isso é flagrante, por exemplo, no incômodo de Dilma em várias fotos, ou mais ainda na postura corporal de Putin em quase todos os registros das Cúpulas do BRICS. Essas dimensões ou tropos também podem ser rastreados, sem maiores dificuldades, nos materiais de propaganda oficiais chineses como, por exemplo, um vídeo recentemente lançado em que são marcantes as construções de masculinidade e feminilidade ou em uma campanha veiculada na TV indiana, alguns anos atrás, como apelo à ‘reconstrução da nação’ que projeta uma imagem peculiar de masculinidade sólida e firme, associada ao caminho para o desenvolvimentismo.
Outro ponto importante a ser destacado no debate foram as reflexões acerca da criação do Novo Banco de Desenvolvimento (NDB) do BRICS que se anuncia como uma nova alternativa no âmbito dos organismos multilaterais e cujo modelo se inspira nos bancos do desenvolvimento nacionais dos países membros, como o BNDES. Embora o código de ética do novo banco inclua referências à valorização da diversidade e a criação de ambientes favoráveis à equidade de gênero, de fato e na prática as diretrizes de políticas até aqui apresentadas pelo NDB não estão centradas nas pessoas e direitos humanos, mas flagrantemente priorizam, uma vez mais, metas econômicas. Os empréstimos já aprovados pelo banco são todos para grandes obras infraestruturas como, por exemplo, fontes energéticas, painéis solares e plataformas de transmissão de dados. A menção à promoção da equidade nos documentos de princípio não significa que isso será traduzido em práticas. Neste sentido, o envolvimento e participação ativa da sociedade civil nos debates sobre o NDB são cruciais para que se estabeleça alguma forma de controle social sobre a instituição que de novo só tem nome, pois pois seu portfólio não inclui nada além das propostas convencionais de desenvolvimento.
Durante a sessão foi proposto um exercício de observação do BRICS e dos poderes emergentes em que as participantes foram convidadas a criar uma representação visual das mudanças geopolíticas e do novo bloco. As representações visuais que se produziram, embora diversas sublinhem que este processo de reconfiguração geopolítica pareça já estabelecido, apontam que ainda está em andamento e deve ser examinado para além do bloco em si mesmo. Por exemplo, como analisar o BRICS em relação às recentes mudanças de governo na América Latina que apontam para uma direção cada vez mais conservadora e comportam um forte componente neoliberal no desenho das políticas internas e externas? Ou então, como interpretar a presença crescente de grandes empresas chinesas – ou mais recentemente de companhias da área do Golfo — na construção de mega-empreendimentos na América Latina e na África que apareceu com força nas ilustrações. Esse movimento de capitais, segundo algumas participantes, são como um “sombra monstruosa”, do ponto de vista da justiça social e ambiental. E sugerem que não devemos driblar a pergunta se o BRICS estaria ou não significando um novo ciclo imperialista, sobretudo no caso dos países africanos.
Conhecer e participar é, portanto, peça chave de resistência aos métodos e impactos dessa nova formação em termos de questões de soberania nacional, empreendimentos transnacionais, continuidade de políticas econômicas neoliberais e debilidades de políticas sociais, numa perspectiva articulada com as dimensões de direitos humanos, gênero e sexualidade. Ou seja, pensar essas novas formações geopolíticas tanto em termos de direitos básicos trabalhistas e de acesso à água, quanto de direitos e saúde sexual e reprodutiva.
As reflexões da sessão indicam que é preciso pensar o BRICS não apenas como formação de Estados-nacionais do Sul global, mas como um conglomerado que articula Estado e forças capitalistas tanto do Sul Global quanto do Norte hegemônico, cujos efeitos potenciais são de aprofundamento da desigualdade. Também é preciso reconhecer que muito embora a China ocupe um lugar central na formação BRICS, é vital situar sua economia no contexto mais amplo das cadeias de produção global, ou seja pensar que a China não apenas consome recursos naturais de outros países, mas que o que se produz na indústria chinesa está em toda parte. Basta, por exemplo, verificar onde o seu celular foi produzido. Finalmente, mas não menos importante, os países membros do BRICs aglomeram uma parcela substantiva da população mundial e que estão eles mesmos atravessados por desigualdades internas que são de classe, gênero, raça/etnia e também vinculadas à sexualidade.
Sobretudo na sessão, chamou-se atenção para as heterogeneidades entre os países do bloco. Por exemplo, o que significa a África do Sul ser parte do BRICS no complexo contexto político pós-apartheid e quando o país se projeta como potência emergente na África? Ou então o que significa para o agenda BRICS a desigualdade econômica que persiste, a incidência dos estupros e do HIV? Ou então, o que significa o BRICS, ou talvez a China, para o Brasil da Era Temer, seja do ponto de vista econômico, seja do ponto de vista da pauta de direitos humanos, gênero e sexualidade, quando se sabe que as forças hoje hegemônicas no país ganharam espaço e poder atacando abertamente essas agendas? A recente mudança ilegítima da presidência, por sua vez, não parece ser motivo de inquietação para o governo chinês que, tão logo concluído o impeachment de Dilma Rousseff, publicou um anúncio de página inteira na Folha de São Paulo, cujo texto começava com a afirmação que a relação entre a China e o Brasil não foi e não será entre governos, mas está baseada numa perspectiva de cooperação estrutural e estratégica de longo prazo. Ou seja, um posicionamento que evacua, por completo, a dimensão política. E devemos nos perguntar o que querem dizer exatamente os termos estrutural e estratégico. Finalmente, no caso da Índia não é possível pensar o BRICS sem considerar a reativação de construções carismáticas de masculinidade atrelada a força e soberania, hoje encarnadas na figura do primeiro ministro.
Pode-se afirmar talvez que, com o recente afastamento de Dilma Rousseff da Presidência, a marca forte do BRICS é, nesse momento, masculinidade e poder. Entre as muitos aprendizados da sessão, o mais significativo talvez seja o de pensarmos o BRICS como uma criatura complexa em que capitalismo, discursos nacionalistas, traços fortes de militarismo e formas variadas de retorno do religioso articulam-se como política. Seja como for, não é possível pensar poderes emergentes econômicos sem também pensar nas políticas sexuais.
Para ler os Working Papers e assistir aos vídeos produzidos pelo SPW sobre Poderes Emergentes, Sexualidade e Direitos Humanos (em inglês)
Para ler o Working Paper 10 [em português]