A classificação é um instrumento de opressão. Este artigo, que examina o abuso dirigido a Caster Semenya, antecipa o tema do Forum Internacional AWID (8-11 setembro): “Integridade corporal e liberdades”. Español English
Eu era uma adolescente quando ajudei a minha avó durante o Natal a levar caixas de bolachas a cada um dos primos maternos que ainda existiam. Pese a que a nossa família é extensa, sempre fomos muitos unido; assim que me surpreendeu que a ultima caixa fosse para uma tia que não conhecia: “Quem é a Tia Dawn?”
“A filha da tia Evelyn”. A Tia Evelyn era a irmã da minha bisavó; havia uma velha fotografia de família na sala de jantar de casa na qual estava Evelyn ainda bebé.
“Não sabia que a Tia Evelyn tivesse filhos.”
“Casou-se com um homem branco, assim que eles nunca conheceram o resto da família”.
Durante os vinte minutos seguintes ouvi a típica histórica sul-africana de uma família dividida pelas classificações do apartheid. A minha tia Evelyn conseguiu passar por branca durante toda a sua vida adulta; vivia numa área branca e ocultou os seus antecedentes familiares aos seus vizinhos brancos e aos seus filhos. Entretanto, os seus familiares eram classificados como sendo de “cor”. Ao presenciar o tratamento recebido pela sua irmã negra sob o apartheid, incluindo um traumatizante despejo, imagino que entre as emoções que experimentou Evelyn existia sempre o medo a ser descoberta.
Pelos vistos, a minha bisavó de pele clara também foi aconselhada a casar-se com um homem branco, mas ela apaixonou-se por una homem escuro. As suas duas filhas tinham a pele como a sua mãe, mas a minha avó escura e o seu pai não visitavam os seus parentes brancos para não “envergonhar” a minha tia Evelyn e o seu vizinho perante os seus vizinhos brancos. Fiquei a saber que Dawn nem sequer sabia da existência de alguns dos outros beneficiários das nossas caixas de bolachas até que cumpriu cinquenta anos.
Eu estava atónita; quando chegámos ao nosso destino entreguei as bolachas à minha nova velha tia branca em silencio, o que não é próprio da minha personalidade. No caminho de volta a casa, comecei a pensar na outra realidade da família de Evelyn. “Mas as crianças não faziam preguntas? Se sabiam que tinham uma tia e vários primos, não faziam preguntas sobre o teu pai, tu e o resto da família? Não sabiam onde vocês viviam?”
“Vamos ver, muito provavelmente pensavam que a sua mãe não pertencia a uma família muito unida”. Mas sim: pertencia à nossa família. A minha avó resumiu-o assim: “O apartheid foi uma loucura.”
Classificação
Conto esta história porque ilustra que a classificação tem sentido e não tem sentido ao mesmo tempo. Que a prova do lápis seja uma ferramenta legitima do governo é ilustrativo de que o sistema de classificação é algo estranho e irreal. Para muitos sul-africanos, as nossa historias e experiências demonstram quão arbitrarias são as fronteiras raciais e, ao mesmo tempo, quão incisivo é o corte e quão profundamente é o mesmo sentido.
No inicio de setembro estarei no Brasil para acompanhar o 13º Forum Internacional da Associação para os Direitos da Mulher e o Desenvolvimento (AWID). Um dos temas gerais deste fórum é a “Integridade Corporal e Liberdades” e estou cheia de vontade de participar, juntamente com 2000 ativistas feministas e académicas de todo o mundo, em sério debates sobre as nossas identidades e sobre as realidades vividas e experimentadas através dos nossos corpos. O corpo continua a ser um centro chave de conflito das lutas feministas, já que são muitas as intersecções das classificações do corpo humano que impactam na nossa liberdade e na nossa existência.
A classificação é um instrumento de opressão; e a opressão, obviamente, tem como origem no poder e não em factos. Os sistemas de classificação do apartheid, suportados por uma biologia e uma moral corruptas, recordam-nos que a raça é algo que se constrói – uma mentira social. O sistema que usamos para classificar o sexo não é diferente: o sexo é um espetro e, contudo, insistimos numa classificação binária. Nos casos nos que de forma contrariada se aceita o termo “intersexual”, ou uma terceira categoria similar, como uma alternativa à classificação homens-mulheres, as pessoas intersexuais continuam a sofrer a negação do seu direito à autonomia e à determinação corporal.
De facto, adicionar “intersexual” como terceira opção classificatória – em vez de reconhecer um amplio e complicado espetro que socava qualquer noção de categoria sexual – reforça o sistema que trata de controla e oprimir. Não pude deixar de sentir que este era o caso quando observei a intolerância e o abuso a que foi sujeita Caster Semenya ao ganhar a medalha de ouro olímpica nos 800 metros.
Desde que ganhou o ouro no Campeonato do Mundo em 2009, o talento desportivo de Semenya foi objeto de especulação, sobre se é demasiado masculina para que se lhe permita competir com outras mulheres. Jennifer Doyle descreve como relataram os especialistas com a “emoção barata de descobrir um estranho intruso sob os seus ombros, o seu penteado, a sua forma de vestir, a sua sexualidade – a sua masculinidade feminina, negra e estranha.
Em 2009, sem o conhecimento (e por tanto sem o seu consentimento), Semenya foi submetida a provas médicas para comprovar a sua “elegibilidade” para competir como mulher. Também sem o seu consentimento, a Associação Internacional de Federações de Atletismo (IAAF) confirmou publicamente que essas provas estavam a ser realizadas. Posteriormente informou-se que Semenya tinha “hiperandroginismo”, quer dizer, níveis de testosterona superiores à “media” feminina.
A respostas da IAAF foi adotar um regulamento sobre o hiperandroginismo, com o objetivo de evitar que as mulheres com altos níveis de testosterona produzidos no seu corpo de forma natural pudessem participar em competições, norma que foi imediatamente suspensa pelo Tribunal de Arbitragem em 2015, depois da denuncia apresentada pela velocista Dutee Chand. Desta forma, Semenya pôde competir nos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro sem alterar as suas hormonas naturais. Mas as suas adversarias, a IAAF e o Comité Olímpico Internacional puseram de novo em duvida a legitimidade de que o fizera.
As preguntas sobre o género de Caster Semenya – especificamente, as que pretendem reclassificar o género ou pôr em dúvida a sua condição de mulher, — por inocentes que pareçam, o que fazem é reforçar as estruturas de opressão. Quando se colocam questões de “equidade” ou “legitimidade”, a feminidade de Semenya termina quase sempre ligada à sua cor de pele.
Negrogínia
Quando os detratores de Semenya se referem a um “problema” com a sua participação em provas femininas, convidam-nos sempre a que olhemos para a sua aparência – recorrendo invariavelmente a prejuízos raciais. Lynsey Sharp, que terminou a prova olímpica de 800 metros no Rio em sexto lugar, disse entre lágrimas, durante uma entrevista posterior à corrida, que “o público pode ver o difícil que é” (a cursiva é minha) competir com Semenya e as outras medalhistas Francine Niyonsaba y Margaret Wambui. Joana Jozwik, que terminou a corrida em quinto lugar, insistiu em que as medalhistas “tem um nível de testosterona muito alto, similar ao nível dum homem, e por isso são como são e correm como correm” (a cursiva é minha).
Jozwik foi ainda mais explicita. “Fico contente por ter sido a primeira europeia, e a segunda branca em cruzar a linha de meta”. Noutras palavras, as medalhistas são pretas e rápidas (ainda que não tenham batido nenhum record) – aí é onde está o “óbvio” problema de Sharp e Jozwik. Cabe dizer que Jarmilla Kratochvílová, a mulher branca que possui o record mundial de 800 metro, não teve que enfrentar-se a especulações similares sobre a sua condição de mulher.
Ao pôr em causa a elegibilidade das medalhistas para ocupar o seu posto como mulheres, Sharp e Jozwik fizeram gala dum mito racista pelo menos tao antigo como o colonialismo e o tráfico transatlântico de escravos: o mito de que as mulheres pretas pertencem a uma categoria física diferente à das mulheres brancas e que os seus corpos se adaptam melhor à dureza do trabalho físico que os das mulheres brancas.
No seu artigo, “Não se trata de genes, estupido”, Ahmed Olayinka Sule examina a recente fascinação com os genes dos velocistas jamaicanos e a pseudociência racista que o acompanha. Tratasse, segundo ele. De “uma versão moderna do estereotipo do negro selvagem”. O racismo cientifico – combinado, no caso de Semenya, como sexismo científico – continua a ser usado para disfarçar e justificar a intolerância nos Jogos Olímpicos, 80 anos depois de que Hitler ficasse vermelho de ira ao presencia a vitória de Jesse Owen nos Jogos Olímpicos de Berlim.
Contrasta com isto, afirma Olga Khazan, que os “pés ultra-flexíveis de Michael Phelps…convertem-se em “barbatanas virtuais” ao nadar e, contudo, o seu “corpo de peixe” não ativa alarmes nem motiva acusações de que não deveria ser-lhe permitido competir com outros homens. Da mesma forma, Jennifer Doyle recorda-nos que a nadadora Katie Ledecky, que compete nos 1500 metros estilos, “se encontra no limiar dos tempos dos homens” e ainda “que as suas qualidades técnicas sejam muito mais espetaculares que as de Semenya”, a sua condição de mulher nunca foi posta em causa.
#CasterNãoSeToca
As acusações de classificação de género erróneas só afetaram mulheres desportistas, especialmente quando vem o Sul Global. É surpreendente que mais feministas não tenham levantado a voz contra a injusta vigilância dos corpos das mulheres, ainda que isto se deva provavelmente a que ditos corpos já sejam afetados pelo racismo.
John Branch informa que “nos Jogos Olímpicos de Londres (2012), quatro atletas femininas, todas elas entre os 18 e 21 anos e procedentes de zonas rurais de países em desenvolvimento, foram apontadas por terem altos níveis de testosterona natural”. Posteriormente, as quatro mulheres submeteram-se a cirurgias de “feminização”. Os “altos” níveis de testosterona de Semenya são um foco de atenção, mas os homens com níveis de testosterona mais altos do normal não são objeto de exame.
#CasterNãoSeToca começou a ser tendência nos meios de comunicação sociais sul-africanos ao aproximarem-se os Jogos Olímpicos, como resposta ao renovado interesse em Semenya. Devido aos tratamentos físicos invasivos aos que foram submetidas algumas atletas mulheres, o lado físico – não se toca! – é apropriado. A privacidade e a autonomia física de Semenya já foi vulnerada anteriormente, pelo que o hashtag é também uma firme advertência: já chega! Os exames médicos são invasivo, duplamente quando são realizados sem consentimento, e triplamente quando se filtram aos meios de comunicação e acabam publicados.
Para a cerimónia de clausura dos Jogos Olímpicos de 2016, cada país enviou um abandeirado ao centro do estádio do Maracanã no Rio de Janeiro: foram os “heróis dos jogos”. Semenya foi eleita para levar a bandeira da África do Sul como heroína do seu país e eu senti-me orgulhosíssima de isso.
A Africa do Sul podia ter optado por van Niekerke, que ganhou uma medalha de ouro e bateu o record do mundo dos 400 metros lisos masculinos, mas a presença de Semenya nesta parte da cerimónia demonstrou a unidade e a força da equipa sul-africana. A sua presença na arena olímpica nesse momento desafiou aqueles intolerantes que prefeririam que ela não existisse, já seja porque acreditam erroneamente que a homossexualidade é algo não africano, já seja porque, tal como a IAAF, a sua desinformada compreensão do sexo e do género se vê alterada pela combinação de hormonas perfeitamente natural da atleta. A grande popularidade de Semenya na África do Sul foi sem duvida a cereja no topo do bolo.
Pode ser que o simbolismo não ofereça uma representação verdadeira ou inclusive significativa da realidade, mas era importante que isto acontecesse. Serviu como lembrança de que a África do Sul não só apoiou Semenya, mas que também a elevou à categoria de heroína. Esperamos que Semenya possa viver a vida que nasceu para viver, que possa escolher e amar livremente, e competir livremente a nível mundial junto a outros atletas.
O êxito de Caster Semenya e o apoio que recebeu da África do Sul nos Jogos Olímpicos levam-me a mim também a apoiá-la, preparada para o fórum AWID e disposta a participar nos “futuros feministas partilhados”. No nosso caminho até à recuperação do corpo em todas as suas expressões, negar-se a cumprir com os estreitos e opressivos sistemas de classificação é um passo essencial no caminho até à libertação. O programa da AWID promete ser inclusivo e multidisciplinar e contribuir para a construção do poder coletivo dos direitos e da justiça – ver aqui.
Este artigo foi publicado pela primeira vez na openDemocracy 50.50 como parte da série: AWID Forum Feminista Futuros: construindo o poder coletivo de direitos e justiça. Bahia, Brasil 08-11 setembro.