por Sonia Corrêa
Quando, em 1998, a proposta de legalização do aborto em Portugal foi derrotada em um primeiro referendo, a aclamada pintora Paula Rego produziu uma série de dez quadros em pastel que, sem rodeios, retratam mulheres vivendo situações de abortos. Em entrevistas com a imprensa portuguesa, quando a série foi exibida, Paula Rego disse que ele foi inspirada por suas próprias experiências de aborto e pelos casos que testemunhou das mulheres mulheres pobres que viviam nas aldeias ao redor da área da Ericeira, onde ela cresceu. Comentando a série, Rego disse: “O naturalismo está muito fora de moda, mas eu não me importo. Estas pinturas silenciosas, com suas graves respostas irão resistir”.
Estamos apresentando os ‘Pastéis do Aborto’ em agosto de 2016, por que o Brasil – ou mais especificamente a Região Metropolitana do Rio de Janeiro – tornou-se novamente palco da carnificina de mulheres que decorre do aborto ilegal e inseguro. Em 24 de agosto, a imprensa relatou que Caroline de Souza Carneiro, 28 anos, morreu de um aborto clandestino, malfeito e inseguro. O cadáver dela deixado na rua repetiu o padrão cruel da abjeção, que também caracterizou as mortes de Jandira e Elisângela em 2014.
Paula Cristina Figueiredo Cabral e Sonia Cristina Rodrigues Ildefonso no artigo O sexual e o político no trabalho de Paula Rego observam que estas são as primeiras pinturas de Rego que não têm título. Ao contrário, elas foram nomeadas “sem título”, um recurso bastante utilizado pelos pintores abstratos, mas que causa grande desconforto no caso de imagens do aborto retratadas na série. Segundo Cabral e Ildefonso:
Isso torna mais perturbador e desafiador para o observador evocar o que não pode ser identificado, designar ‘algo’ que a sociedade prefere não reconhecer e encarar. A lei de sigilo em torno do tema tabu do aborto, uma prática que as sociedades hipócritas continuam a condenar ao mundo clandestino, como uma vergonha e como delito – é o que estas imagens revelam e denunciam, e foi seguramente a primeira vez que a questão foi abordada [nesses termos] na pintura.
As autoras também observam que as mulheres retratadas nos pastéis estão sofrendo mas não são passivas ou vítimas. Em vários dos quadros, elas olham diretamente para quem vê os quadros, desafiando e transferindo para o público a responsabilidade e culpa pelo que estão vivendo. O realismo brutal, a força dolorosa e perturbadora dos “pastéis sobre aborto” não são, contudo, específicos desse tema. É assim que Paula Rego pinta, desde sempre: telas enormes, cores fortes, criaturas e relações conturbadas. Na introdução de seu livro Maps of Memory of Paula Rego: Sexual and national politics, Maria Manuel Lisboa interpreta as inquietações do vocabulário e das narrativas da pintora nos seguintes termos:
Eu diria que a sua honestidade, imprudência e recusa, todos tendem para o mesmo objetivo: a saber, a dessacralização de uma série de expectativas e suposições recebidas, seja psicologia moral ou nacional, articulando acerca das definições de infantilidade, inocência e pureza que ela vandaliza e expõe como ilusória. Ela expõe a culpa endêmica para a aparência de respeitabilidade… Ao fazê-lo, no entanto, ela deliberadamente indica padrões problemáticos e definições aparentemente simples de bem e mal, fraqueza e força, vitimização e opressão.
O trabalho de Rego é amplamente reconhecido em Portugal e no Reino Unido que é sua “outra casa”. Desde adolescente, ela transitou entre os dois países. Mas Rego não é tão conhecida para além dessas fronteiras. Mesmo no Brasil, apesar da proximidade cultural com Portugal, foi somente depois de uma retrospectiva de seu trabalho na Pinacoteca de São Paulo, em 2011, que ela tornou-se mais acessível e discutida. Desde então a imagens dos ‘pastéis do aborto’ são vistos em apresentações acadêmicas e postagens nas redes sociais que tratam das brutais restrições ao aborto no país.
É preciso dizer, contudo, que a produção acadêmica no campo da crítica feminista — sobre os temas, personagens, paisagens humanas e narrativas de Paula Rego — é ainda razoavelmente escassa, mesmo em Portugal. Até onde pude pesquisar, inexistente no Brasil. A literatura em inglês tampouco é volumosa. O livro de Maria Manuel Lisboa, acima citado, é nesse sentido uma jóia rara. Outro texto que que deve ser mencionado é o artigo de Agnette Strøm, Untitled: The Abortion Pastels: Paula Rego’s Serie’s on Abortion, publicado pela Reproductive Health Matters, em 2004. Essa escassez é enigmática quando se considera que o trabalho pictórico de Paula Rego mergulha nas tragédias, crueldades e profundas ambivalências do mundo doméstico, sem reduzí-lo a vida privada. No mais das vezes, seus quadros evocam diretamente os traços e espectros do Estado Novo português.
Conheci Paula Rego acidentalmente quando, em 2008, numa viagem a Lisboa, sozinha na casa de um amigo, passei horas fascinada, explorando um livro completo sobre sua obra. Fiquei fascinada com as mulheres de corpos masculinos, em roupas tipicamente femininas, com a brutalidade e complexidade e violência das relações de gênero e classe na sua narrrativa pictórica, com as imagens duras da crueldade, da piedade hipócrita e do tropos do conservadorismo político e religioso como elementos da ‘nacionalidade’. É nossa expectativa que, na meduda em que mais pesquisadoras e pesquisadores em gênero e sexualidade conheçam Paula Rego as produção acadêmica sobre o vigor de suas obras seja ampliada.