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Rio 2016: Jogos Sexuais?

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As modalidades esportivas mais comentadas nos Jogos Olímpicos Rio 2016: a maratona do sexo, a corrida de obstáculos nas relações de gênero, o tiro ao alvo no racismo e o salto para fora do armário

Fernando Seffner[1]

Os Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro foram muitas coisas ao mesmo tempo. Momentos de quebra de recordes, de emoções e torcidas, de esforços físicos, lágrimas e alegrias. Foram Jogos com um histórico de remoções arbitrárias de moradores para dar lugar a praças de competição, de escândalos financeiros, metas ambientais não cumpridas e corrupção[2]. Foram momento de prepotência imperialista da maior potência do planeta, travestida de brincadeira de adolescentes que pretendiam enganar a polícia. Momentos de beleza e constrangimento político na cerimônia de abertura[3], combinados com elogios e críticas ao que nela se mostrou, com pouca possibilidade de acordo entre as partes, como em geral acontece nestas situações em que um país deseja se mostrar ao mundo. Vaias, torcida exagerada, xingamentos, palmas surpreendentes para certos países. Foram oportunidade de mostrar ao mundo uma inédita delegação olímpica com dez atletas refugiados. Tudo isso e muito mais foram os Jogos Olímpicos.
Mas os Jogos foram também exibição de corpos de homens e mulheres jovens, malhados, musculosos, com percentual quase zero de gordura, abdomens definidos, seios firmes, roupas coloridas e colantes, pele brilhante de óleo. Corpos por vezes se tocando, em luta, trocando carinhos de comemoração, em afagos de consolo por derrotas. E todos estes corpos intensamente filmados e fotografados, ofertando “closes” de quase intimidade. Impossível conter a libido, refrear os desejos eróticos, ainda mais em uma sociedade, como a brasileira, que faz do brilho da sexualidade uma modalidade de atração turística e um dos traços definidores da identidade nacional. Mas é visível que os atletas também se deixam contaminar por esse espírito de exibição de corpos, e promovem cenas públicas de quase nudismo, buscando de modo ansioso serem filmados[4].como-volley-londres-2012-10

E ainda por cima todos estes atletas homens e mulheres de corpos potentes e desejados convivem em um lugar quase mítico chamado vila olímpica, despertando a imaginação de um monte olimpo dos deuses em puro gozo[5]. Dormem próximos uns dos outros, tomam banho em chuveiros coletivos, fazem as refeições lado a lado, caminham em grupos por entre árvores, relaxam ao sol nas piscinas públicas em alegre sociabilidade. Impossível não querer especular sobre suas vidas sexuais, amores e flertes. Variam um pouco os números, mas cerca de 450 mil preservativos masculinos e 100 mil preservativos femininos foram disponibilizados para uso pelos e pelas atletas[6], havendo comentários de que sete vezes por dia os estoques eram repostos nos locais de distribuição. Pode-se falar de uma média de 42 preservativos por atleta ao longo de 16 dias de competições, o que nos indica mais de dois preservativos por dia por atleta, mas vale dizer que muitos não permaneceram durante todo o período na vila olímpica, então a média de uso diário pode ser bem mais elevada. A imprensa mundial foi unânime em assinalar que os aplicativos que permitem buscar parceiros para sexo experimentaram picos de intensidade no território da vila olímpica[7]. Esta foi a maratona do sexo, talvez com farta distribuição de medalhas de ouro, mas sem exibição no pódio.

camisinhas vilaOs Jogos Olímpicos têm longa história como evento exclusivo masculino[8]. Mas já há algum tempo as mulheres marcam presença, tendo chegado a cerca de 45% dos participantes no Rio de Janeiro[9], e disparam na conquista de recordes, fazendo por vezes com que nos indaguemos se ainda têm validade certa divisão em “masculino” e “feminino” em determinadas modalidades. As mulheres vêm tomando conta em esportes de luta, por outro lado os homens resistem a marcar presença no nado sincronizado. Tudo vai bem para os homens quando há “naipes” masculino e feminino, e os recordes olímpicos mais elevados são dos homens, mas as mulheres avançam, e os números têm se aproximado perigosamente, a embaralhar a histórica divisão de gênero que situa as mulheres em patamares inferiores. Vale dizer que isso também acontece na tradicional divisão Jogos Olímpicos e Jogos Paralímpicos[10], com recordes onde não se esperava, e para os quais se buscam as mais elaboradas explicações. As mulheres se preparam para as disputas, demonstram profissionalismo, batem recordes, marcam presença cada vez maior em todas as modalidades, mas terminam sendo apenas elogiadas por sua beleza[11]. Grande número de comentaristas esportivos é homem, e daí deriva um inevitável desfile de comentários machistas, sexistas e misóginos.

bunda 2Fica visível que os Jogos Olímpicos são “coisa de homens”, e as mulheres são ou toleradas, ou então vistas como
elementos a enfeitar a paisagem, o que se reflete na facilidade com que os comentaristas, supostamente querendo elogiar a conquista de uma mulher, fazem afirmações do tipo “a atleta vencedora merece mesmo é medalha de ouro em beleza” ou então gritos entusiasmados de “é ouro, é ouro em beleza, já ganhou”! Há mulheres atletas feministas e não feministas, o debate se estabelece, algumas reconhecem apenas seu mérito individual, outras se inserem numa tradição de conquista de espaços pela mulher como movimento social que também implica a conquista de espaços olímpicos. Mas é visível que comentaristas homens preferem enfatizar esforços individuais das mulheres, e não dar créditos ao movimento feminista. Se algumas mulheres chegaram ao pódio, isso se deve a seus méritos individuais, há um visível temor em situar suas conquistas no âmbito do feminismo. No caso de esportes em equipe, com evidente destaque ao futebol feminino brasileiro, a imprensa nacional deu manchetes enquanto a seleção vencia, mas quando derrotada foi logo submetida a uma enxurrada de críticas, praticamente todas feitas por comentaristas homens, e as partidas finais desta modalidade já não foram transmitidas pelos canais abertos, retornando as novelas em seu lugar. É de se notar também que muitas seleções de futebol feminino têm treinadoras mulheres, a equipe brasileira não.

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Modelo brasileira Lea T.

A presença de mulheres trans brasileiras na cerimônia de abertura foi um momento complicado pois revelou o despreparo total dos comentaristas. Ou bem não mostraram imagens sem comentários, ou bem disseram alguma coisa trivial, ou pior trataram a questão como assunto exótico. Por outro lado, muitas vezes, vimos e ouvimos comentaristas elogiarem atletas, juízas ou auxiliares em modalidades desportivas por atributos que, tradicionalmente, são vistos como “naturais” em corpos femininos: o cuidado com o detalhe, a atenção periférica, a posição atenta, a presteza em solucionar emergências. Não seria excessivo dizer que os Jogos foram uma corrida de obstáculos nas relações de gênero.

Os Jogos Olímpicos não são tradicionalmente apenas “lugar de homens”. São também tradicionalmente lugar de brancos ocidentais. A presença de homens e mulheres negros e negras, de homens e mulheres do oriente, de homens e mulheres “amarelos” produz inevitáveis comentários que mal disfarçam o racismo e o etnocentrismo europeu, norte americano, ocidental. O que fica reforçado por conta de serem os comentaristas das principais redes televisivas mundiais quase todos brancos ocidentais. Para ficar apenas nos exemplos nacionais, os comentários racistas mostraram sua cara, mas foram também duramente combatidos, o que é motivo de alegria ao pensar na construção de uma sociedade não racista, meta difícil em um país que se acha cordial e não racista. As tentativas de explicar que não havia sido ato racista, apenas piada ou brincadeira, não convenceram a todos como em geral acontece[12]. A torcida brasileira se alegrou com a conquista da medalha de bronze na ginástica masculina, mas não esqueceu os comentários racistas do ginasta e circulou críticas pela web, que acabaram nas páginas dos grandes jornais[13]. Comentários racistas contra a goleira da seleção brasileira de futebol rapidamente viraram manchete, e obrigaram o autor a retratações[14]. Robson Conceição, atleta negro brasileiro que conquistou o ouro no boxe, aproveitou para criticar a redução da maioridade penal, claramente vista por ele como sentença de morte da juventude negra, que poderia ter vitimado ele mesmo[15]. O tiro ao alvo no racismo foi algo consolador para enfrentar a tradição histórica brasileira de impunidade destes comentários. Certamente medalha de ouro aos que não aceitam mais o preconceito racista disfarçado como simples piada ou brincadeira.

E os Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro foram também um grande momento de visibilidade para atletas gays, lésbicas e bissexuais. Certamente foram estes os Jogos olímpicos de maior abertura a esta visibilidade até aqui. Os números podem variar um pouco, a depender da fonte que se consulta. Mas no total estão entre 41 e 44 o número divulgado de atletas gays, lésbicas e bissexuais assumidos[16]. São 11 atletas gays assumidos. Ian Matos, mergulhador brasileiro, é um deles, e tivemos a medalha de ouro da judoca Rafaela Silva que se converteu num ícone tanto na negritude brasileira quanto da lesbianidade.

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Atleta sul-africana Casper Semenya

A questão dos marcadores de diferença sexual, que envolve as polêmicas em torno da participação de atletas trans e intersexuais nos Jogos, foi também um tema muito importante em 2016, embora o assunto tenha tido pouca visibilidade na imprensa nacional. Primeiramente, porque em janeiro de 2016 as regras da Confederação Internacional de Atletismo em relação aos níveis de testosterona das atletas mulheres foram suspensas por efeito de uma ação antidiscriminação interposta pela corredora indiana Dutte Chand, depois de ter se recusado a tomar inibidores do hormônio para participar dos Jogos de Glascow[17]. O tema, porém, já não pode mais ser driblado no debate nacional depois da vitória da sul-africana Caster Semenya[18], que em 2009 foi impedida de correr em Berlim, tornando-se personagem de um intenso debate sobre racismo, colonialismo e discriminação de pessoas cuja expressão de gênero difere da norma dominante. [19]

A visibilidade gay e lésbica fez mais manchetes nacionais e internacionais levando inclusive a estratégias da mídia para forçar a saída do armário de tantos outros e outras para além dos que haviam se nomeado, mostrando quão forte é a curiosidade que temos no ocidente sobre a vida sexual alheia. Saímos da condenação da homossexualidade para a condenação da homofobia, e um jornalista inglês foi duramente criticado por ter ultrapassado os limites da ética ao tentar trazer para a cena pública outros atletas gays que não haviam se assumido[20], causando com isso prejuízo moral e risco de vida aos envolvidos e revelando conduta homofóbica. Atletas agradeceram o apoio de suas companheiras e companheiros de vida afetiva e sexual ao conquistar medalhas, ou mesmo ao enfrentar derrotas, e trouxeram um saudável oxigênio neste vislumbre de intimidade homossexual. Esta foi a modalidade salto para fora do armário, a surpreender a sociedade e certamente aquela na qual os Jogos Olímpicos mais distribuíram medalhas de ouro.

Seja pela presença massiva e desempenho admirável das mulheres, seja pela visibilidade e debate que as sexualidades não normativas suscitaram, a cena dos Jogos Olímpicos de 2016 também foi palco de resistência das forças progressistas, contra o avanço moralizante das forças religiosas dogmáticas que tem feito da sexualidade objeto de pânico moral e justificativa para regressões legislativas e de política pública, no Brasil e em outros lugares do planeta.

Notas

__________

[1] Professor do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGEDU/UFRGS), linha de pesquisa Educação, Sexualidade e Relações de Gênero . Email fernandoseffner@gmail.com

[2] http://www.fundodireitoshumanos.org.br/serie-de-videos-da-justica-global-mostra-violacoes-na-cidade-dos-jogos-olimpicos/

[3] Pouco menos de 20 chefes de Estado vieram para a abertura dos Jogos Olímpicos Rio 2016, enquanto mais de 80 estiveram presentes em Londres quatro anos atrás.

[4] http://www.towleroad.com/2016/08/danell-leyva-strips/ (inglês)

[5] http://visao.sapo.pt/atualidade/rio-2016/2016-08-17-Farra-nos-Jogos-do-Rio–Uso-do-Tinder-dispara-na-Aldeia-Olimpica (português)

[6] http://esportes.estadao.com.br/noticias/jogos-olimpicos,sexo-jogos-e-preservativos-estoque-de-camisinhas-dos-jogos-esta-encalhado,10000068868 (português) e http://www.usatoday.com/story/sports/olympics/rio-2016/2016/08/03/rio-olympics-450000-condoms-athletes-village/88039680/ (inglês)

[7] http://brasil.elpais.com/brasil/2016/08/10/deportes/1470836827_764528.html (português) e https://www.washingtonpost.com/world/olympics/hookup-games-tinder-usage-up-among-athletes-at-rio-olympics/2016/08/09/e13ac2cc-5e8b-11e6-84c1-6d27287896b5_story.html (english)

[8] http://www.bbc.com/portuguese/brasil-36911394 (português) e http://www.bbc.com/news/world-us-canada-37120618 (inglês)

[9] http://www.refinery29.com/2016/07/116389/female-athletes-olympics-2016#slide

[10] https://www.rio2016.com/paralimpiadas (português) e https://www.rio2016.com/en/paralympics (inglês)

[11] https://rioolimpiada.wordpress.com/ (português) e http://www.totalsportek.com/list/hottest-olympics-athletes/ (inglês)

[12] https://www.nexojornal.com.br/expresso/2016/08/15/Por-que-racismo-em-forma-de-piada-n%C3%A3o-%C3%A9-s%C3%B3-uma-brincadeira

[13] http://www.revistaforum.com.br/2016/08/15/vitima-de-racismo-manda-recado-para-arthur-nory-que-seja-medalhista-fora-do-tablado/

[14] https://esportes.yahoo.com/noticias/conselheiro-federal-faz-post-racista-contra-a-goleira-da-sele%C3%A7%C3%A3o-feminina-210227009.html

[15] http://www.brasilpost.com.br/2016/08/17/robson-boxe-violencia_n_11575260.html?ncid=tweetlnkbrhpmg00000002

[16] http://www.wetpaint.com/lgbt-olympians-2016-photos-1512869/

[17] http://thinkprogress.org/…/3804393/olympics-lgbt-athletes/ e https://thinkprogress.org/this-years-olympics-will-have-the-most-openly-lgbt-athletes-ever-5bab73312f5f#.cnjqlz64n

[18] Em português http://www.bbc.com/portuguese/geral-37133784?SThisFB e em inglês http://www.nytimes.com/2009/09/03/opinion/03iht-edgevisser.html?_r=0

[19] http://globoesporte.globo.com/olimpiadas/atletismo/noticia/2016/08/semenya-deixa-preconceito-e-rivais-para-tras-e-conquista-ouro-nos-800m.html

[20] http://observatoriodatelevisao.bol.uol.com.br/famosos/2016/08/jornalista-tira-atletas-do-armario-e-nadador-responde-com-bumbum-de-fora (português) e https://www.thesun.co.uk/sport/rio-olympics-2016/1595034/rio-olympics-2016-straight-olympic-journalist-causes-anger-after-outing-gay-athletes-on-hookup-apps/ (inglês)



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