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De Orlando a Santaluz: nota sobre a violência LGBTfóbica no Brasil

por Sonia Corrêa e Fábio Grotz

O massacre ocorrido na boate LGBT Pulse, em Orlando, na Flórida, no dia 12 de junho, teve uma ampla repercussão, deflagrando um vasto conjunto de análises aguçadas (em inglês) sobre as complexas articulações entre as políticas e geopolíticas da LGBTfobia, por um lado, e a islamofobia por outro. A tragédia em que 49 pessoas morreram, em sua maioria latin@s, teve também como um de seus efeitos reavivar a questão violência contra pessoas LGBT no Brasil que, de um tempo para cá, tinha perdido visibilidade.  Tal invisibilidade,  sem dúvida,  decorre da avalanche de más notícias produzida pela restauração conservadora em curso. Mas,  também deve ser situada contra o pano de fundo da escandalosa magnitude da violência letal no país.

Sem dúvida, os assassinatos de pessoas LGBT (ou de mulheres) têm motivações e traços peculiares, sendo geralmente caracterizados por serem mortes ‘anunciadas’ e pelos
requintes de crueldade perpetrados pelos assassinos. Mas, elas não podem ser plenamente compreendidas sem referência a forças, fatores e efeitos subjacentes aos quase 60.000 homicídios registrados em 2014. A violência estrutural ao mesmo tempo explica e encobre a violência letal contra as pessoas LGBT.

orlando_É, portanto, significativo que o turbilhão de emoções globalizadas deflagrado pela chacina de Orlando tenha produzido o efeito de extrair essas mortes da sombra extensa que a violência estrutural projeta sobre a vida cotidiana no Brasil. Em 2015, segundo a pesquisa de mídia do Grupo Gay da Bahia, ocorreram no Brasil 315 mortes de pessoas LGBT. A despeito das diferenças de contexto, como bem analisa o historiador James Green em entrevista a BBC, um traço comum entre as mortes concentradas do massacre de Orlando e as mortes brasileiras, dispersas no tempo e no espaço, é o efeito difuso mas sempre nefasto do crescimento do dogmatismo religioso nos dois países (e no mundo). Por outro lado, há diferenças a pontuar. Como diz Scott Long em artigo recente: “Orlando foi facilmente compreendido, foi apreendido e incorporado como um evento que nos pertence” (“Orlando was easily understandable, and can be not just comprehended but owned”). Foi essa compreensão e sentimento de pertencimento que nos trouxe de volta os espectros daquelas e daqueles que morrem no Brasil por efeito da homo-transfobia. Mas ainda não trouxe os nomes e trajetórias de vida. É preciso perguntar quem são essas pessoas, como viveram e por que morreram para que essas sejam mortes enlutáveis como o foram as vidas perdidas em Orlando.

Contra esse pano de fundo, um fato excepcional aconteceu no pequeno município de Santaluz na Bahia. Dois dias antes do massacre de Orlando, os corpos de Edivaldo Silva de Oliveira e Jeovan Bandeira foram encontrados carbonizados. Edivaldo e Jeovan eram gays e professores da rede pública de educação. Suas mortes bárbaras e as sevícias a que foram submetidos levaram a população da cidade às ruas para expressar seu luto e indignação. Segundo o jornalista Uoston Pereira que vive em Santaluz: “A cidade tinha um grande carinho por eles.”

Screen Shot 2016-07-05 at 18.40.26Essa  comoção é tanto mais significativa quando se sabe que a presença e influência do moralismo sexual dogmático nas suas vertentes religiosas é mais marcada e acentuada nos centros urbanos menores do interior do país. Essa excepcionalidade, embora registrada pela BBC Brasil e outros veículos da grande mídia, no contexto de velocidade informacional que nos domina, já é um fato do passado. Mas seria preciso voltar a Santaluz para apreender e compreender melhor o que aconteceu nessa pequena cidade da Bahia. Talvez assim possamos encontrar, caminhos para que um dia a sociedade como um todo reconheça e se enlute pelas vidas perdidas que não cabem nos imperativos estreitos da heteronormatividade.

Santaluz, como bem diz seu nome,  é um sinal de luz a ser perseguido no atual cenário da restauração conservadora quando  o estigma e a violência homo e transfóbica tendem a se intensificar, como bem revela o crime bárbaro ocorrido no Rio de Janeiro no começo de julho. Diego Machado, negro, paraense, gay e estudante cotista, foi encontrado morto no campus da UFRJ na Ilha do Fundão, com sinais de espancamento e talvez violação sexual. Amigos e familiares de Diego informaram aos policiais que investigam o caso e à imprensa que ele vinha sendo objeto de intimidação e ameaças encabeçado por grupos conservadores e radicais na Universidade. (Saiba mais aqui e aqui).

A repercussão do assassinato ganhou visibilidade expressiva e a resposta do estado foi, até aqui, rápida. Mas nada garante que seja eficaz e muito menos sustentada pois o record das política nacionais de prevenção e punição da violência letal decorrente da homo-transfobia deixa muito a desejar. Muito embora os governos petistas tenham projetado o Brasil como um campeão do compromisso com os direitos LGBT e a presidente Dilma tenha se referido a essas políticas como um sucesso de sua gestão várias vezes após o impeachment, um olhar mais atento aos números  revela um cenário muito menos brilhante, como pode ser verificado no artigo de Dilma omite política LGBT errática, no site Aos Fatos.

Entre 2011 e 2016, os repasses direcionados a políticas específicas contra a homofobia foram instáveis e descontinuados. Por exemplo, no primeiro ano da gestão Roussef (2011), havia uma rubrica orçamentária destinada ao “apoio a serviços de prevenção e combate à homofobia” que previa um investimento inicial de R$ 17,2 milhões, mas apenas R$ 370 mil foram efetivamente gastos. Em 2012, a dotação inicial foi zero. Desde então, nada mais foi empenhado. E, claro, não há nada a esperar do governo interino e ilegítimo que reduziu a Secretaria de Direitos Humanos a um departamento do Ministério da Justiça e está a pinto de nomear um general para presidir a FUNAI.

Ou seja, adentramos tempos em que é salutar, talvez, sem perder de vista o que se passa nos píncaros do planalto, sobretudo voltar os olhos para as planícies de modo a  compreender melhor e alimentar lógicas e movimentos de resistência, indignação e pertencimento  como o inédito gesto de protesto e luto que aconteceu em Santaluz.



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