Publicado originalmente pelo CLAM em: http://www.clam.org.br/destaque/conteudo.asp?cod=12396
Embora a epidemia da zika afete muitos países da África e outros da América do Sul e Central, foi no Brasil que se estabeleceu a primeira correlação entre a infecção e a microcefalia. Em novembro de 2015, a Fundação Oswaldo Cruz notificou a presença do genoma do vírus zika em amostras de líquido amniótico de duas gestantes da cidade de Campina Grande, estado da Paraíba, em cujos fetos houve confirmação de microcefalia por meio de exame ultrassonográfico, após a suspeita ser levantada pela médica Adriana Mello, especialista em saúde fetal de uma maternidade daquele município. A partir daquele momento, porém, o governo brasileiro adotou postura diferente de países como Colômbia e El Salvador, preferindo não recomendar às mulheres que evitassem engravidar, em um contexto onde ainda não se havia comprovado o nexo entre a infecção por zika e os casos de microcefalia.
A comprovação da associação entre o vírus e a microcefalia (entre outras alterações no desenvolvimento fetal) foi feita por pesquisadores da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e do Instituto D’Or de Pesquisa e Ensino (Idor) em abril de 2016, com a publicação de um estudo intitulado Zika virus impairs growth in human neurospheres and brain organoids na revista Science. No artigo, os pesquisadores brasileiros descrevem como, a partir de células-tronco reprogramadas, criaram estruturas conhecidas como minicérebros (que simulam as células do cérebro humano durante o desenvolvimento), para depois infectá-las com o Zika vírus a fim de observar as consequências para a formação do cérebro fetal: nos modelos investigados – de 11 dias de vida, que simulam o córtex cerebral de um feto com um mês de gestação –, houve uma redução de 40% no crescimento.
Assim, ao denunciar uma situação emergencial de saúde pública mundial, especificamente no caso brasileiro a epidemia do vírus zika trouxe à tona questões fundamentais de saúde pública historicamente negligenciadas, como a eliminação do vetor (Aedes aegypti), a cobertura de saneamento ambiental e as debilidades de assistência à saúde reprodutiva e materna no Sistema Único de Saúde (SUS). Além disso, as incertezas das mulheres se devem ou não levar a termo uma gravidez diante das vulnerabilidades que enfrentam frente à epidemia — muitas são abandonadas pelos maridos e parceiros, lidam sozinhas com os problemas do acesso à saúde, da precarização da vida pela pobreza e dos cuidados diários com os filhos — criaram as condições para reacender o debate sobre aborto no Brasil. Mais do que isso: o surto do zika abriu uma oportunidade para expandir uma série de direitos das mulheres, como prefere afirmar a antropóloga e professora da Universidade de Brasília (UnB) Débora Diniz, que faz parte de um grupo que anunciou uma possível judicialização junto ao Supremo Tribunal Federal (STF) como resposta à negligência do Estado brasileiro.
Frente a um Poder Legislativo dominado por forças conservadoras, o Supremo tem sido a instância mais acionada para promover mudanças legais tidas como urgentes para a atualização do panorama dos direitos no Brasil. Em 2012, por exemplo, o STF decidiu por aquela que ainda é a mais substancial mudança na legislação brasileira relativa ao aborto em 75 anos — a autorização da interrupção da gravidez de fetos anencéfalos –, ao julgar procedente a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 54, ajuizada na Corte pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS) com apoio técnico da Anis – Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero –, organização feminista coordenada por Débora Diniz.
No entanto, além das possíveis dificuldades judiciais e burocráticas que a ADPF 54 enfrentou (o pedido de avaliação dos abortos para fetos anencéfalos foi feito pela Anis em 2004 e aceito pelos ministros do STF, por 8 votos a 2, em 2012), a Ação que a antropóloga pretende conduzir agora no Supremo deve esbarrar em barreiras morais e religiosas levantadas por grupos organizados no Congresso Nacional, igrejas e parte da população. Na anencefalia, os bebês não nascem vivos e assim escapou-se de um debate moral. A microcefalia típica, por sua vez, é um mal incurável e irreversível, mas o bebê sobrevive na maioria dos casos.
Porém, a argumentação da ação atual deve destacar a vulnerabilidade específica de mulheres pobres – já que a epidemia ainda se concentra nas áreas mais carentes do país, especialmente na região Nordeste. No caso atual, o pedido de interrupção da gestação não se justifica por qualquer diagnóstico sobre o feto — diferente do que foi a anencefalia, que impossibilita a vida extra-uterina — mas sim no intenso e injusto sofrimento mental provocado pela epidemia. Entre os argumentos deve constar ainda o fato de que o dano causado às mulheres e aos seus filhos se deve à negligência persistente do Estado brasileiro em não ter eliminado o mosquito, vetor de um mal cujas consequências futuras ainda não são definidas pela medicina (ninguém sabe ainda como o zika atua no tecido cerebral. Sabe-se da relação do vírus com o tamanho do cérebro).
Na entrevista a seguir concedida ao CLAM, Débora Diniz fala das especificidades da epidemia e do peso dos argumentos da ação legal com foco na infecção que se pretende conduzir ao STF. “É a gravidade e a urgência de uma epidemia sem precedentes que impõe a reflexão sobre direitos reprodutivos”, afirma a antropóloga.
A Zika põe em relevo questões sanitárias, ambientais, de controle de vetores, entre outras relacionadas às desigualdades sociais, tanto no plano nacional, quanto internacional. Também por afetar a reprodução e a sexualidade, estão em jogo questões relativas às desigualdades de gênero, que marcam o plano das relações interpessoais. Como conjugar perspectivas de ação, mobilização e luta política que contemplem essa dupla dimensão, sem restringir uma à outra?
Não é possível pensar o enfrentamento integral à epidemia do vírus zika sem colocar as mulheres no centro da preocupação das políticas de saúde. É nelas que se centra o perigo principal da epidemia: a possibilidade de transmissão vertical do vírus aos fetos e a síndrome congênita que causa. A ciência vai e deve continuar se movendo para a busca por vacina para o vírus, ou por uma tentativa de encontrar novas formas de eliminar o mosquito. O que não está acontecendo, e de que as mulheres precisam neste exato momento para proteção de seus direitos, é que se levem a sério suas necessidades em saúde reprodutiva: com garantia de acesso à informação, a contraceptivos e inclusive ao aborto legal e seguro para aquelas que desejarem. Isso é urgente.
Quais as diferenças e especificidades da ação judicial que se pretende levar ao STF e a ADPF 54, através da qual o Supremo autorizou a interrupção da gravidez de fetos anencéfalos em 2012?
Em primeiro lugar, é importante notar que essa não é uma ação apenas sobre aborto como também não é uma ação para autorizar o aborto em caso de microcefalia do feto. É uma ação ampla de garantia de direitos diante da epidemia. Por isso, a ação pede que se garanta amplo e irrestrito acesso à informação às mulheres em idade reprodutiva, sobre a epidemia em curso e os riscos a seus planos reprodutivos. Isso inclui garantia de acesso a políticas e métodos de planejamento familiar, para aquelas que queiram ou não queiram engravidar. Para aquelas já grávidas, que sejam diagnosticadas com a infecção por zika e que estejam em intenso sofrimento diante das incertezas da epidemia, que seja garantido o acesso à interrupção legal da gestação, se for o seu desejo. Para aquelas que não desejarem interromper a gestação, ou que já têm filhos afetados pela epidemia, pedimos garantia de acesso a serviços de saúde próximos a seu domicílio e acesso ao benefício de transferência de renda da assistência social, para garantir condições materiais de cuidado. Ou seja, é uma ação para ampla proteção de mulheres e crianças.
No caso do pedido de interrupção da gestação, é possível ver que ele não se justifica por qualquer diagnóstico sobre o feto, diferente do que foi a anencefalia, que tinha um argumento importante na impossibilidade de vida extra-uterina. Aqui, nós estamos falando sobre mulheres que estejam em intenso e injusto sofrimento mental provocado pela epidemia.
O desafio que enfrentamos aqui é poder sustentar o direito à interrupção da gestação como proteção à saúde da mulher. É sobre isso que se trata, sem qualquer pergunta sobre singularidades neurológicas do feto. O argumento da proteção à saúde da mulher também esteve presente na ADPF 54, com a diferença de que havia um facilitador na conversa: o fato de que o feto não sobreviveria, o que acalma paixões morais em torno do tema. Por isso, é agora um debate mais difícil, mas esperamos que o Supremo Tribunal Federal possa compreender a urgência e importância de proteger direitos diante da epidemia.
Outras doenças infecciosas também podem causar óbito ou malformações fetais, como a sífilis (ainda fora de controle nas Américas, exceto em Cuba), encontrando também dificuldades no tratamento e diagnóstico. Qual o peso dos argumentos da ação legal com foco na infecção por Zika?
A questão agora é justamente que estamos enfrentando uma epidemia sem precedentes, a epidemia causada por um vírus transmitido não só por um vetor que pode voar, como também pela via sexual. Ou seja, um vírus com uma capacidade alta de dispersão, que é transmitido verticalmente, portanto tem efeitos no processo reprodutivo e causa a grave síndrome neurológica em fetos. É a gravidade e a urgência de uma epidemia neste momento incontrolável que impõe a reflexão sobre direitos reprodutivos. Diante desse cenário, a expectativa é que possa gerar a mesma preocupação que um dia levou a rubéola a mudar as leis de aborto em países da Europa.
Haja vista que o alerta para o surto de microcefalia, o lançamento das primeiras hipóteses causais e a mobilização das autoridades sanitárias – inicialmente em Pernambuco – foram pautados pelo olhar acurado de médicas de uma maternidade em Campina Grande. Como pensar, através dos problemas levantados pela epidemia de Zika, as relações entre gênero e ciência?
É muito interessante o protagonismo das médicas tanto na identificação da infecção pelo zika e suas consequências como no cuidado a longo prazo dessas mulheres e crianças. São elas que estão na linha de frente do enfrentamento à epidemia. Mas junto a elas há também as cientistas da vida comum, as mães dos bebês afetados pelo zika. São elas que estão descobrindo, no dia a dia, aquilo que a ciência ainda não pode prever sobre os efeitos que o vírus tem no desenvolvimento das crianças. As doutoras da assistência vão observando, analisando e aprendendo junto: são médicas e mulheres comuns fazendo ciência na epidemia.
Publicada em: 16/06/2016