A última audiência pública da SUG 15/2014, sugestão legislativa que analisa a proposta de legalização do aborto até a 12a semana de gestação, acontece nesta quinta-feira (28). Em meio ao turbilhão da tramitação do processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff, o Senado Federal poderá ver repetida a cena grotesca protagonizada pelos deputados no dia 17 de abril. O debate certamente será marcado pelo mesmo fundamentalismo religioso e argumentações esvaziadas daquele domingo, na Câmara dos Deputados. Mas também mostrará como especialistas favoráveis à interrupção da gravidez constroem seus argumentos em bases muito mais sólidas. É o caso de Eloísa Machado de Almeida, professora da FGV Direito SP e coordenadora do Supremo em Pauta. Doutora em Direitos Humanos, Eloísa dividirá seus conhecimentos com as demais debatedoras e com as participantes do evento.
Quais são os aspectos da Constituição que fazem com que seja possível arguir a inconstitucionalidade dos artigos que criminalizam o aborto?
São diversos os argumentos constitucionais que fundamentariam a inconstitucionalidade da criminalização do aborto. O primeiro deles é o respeito à dignidade humana, fundamento axiológico da Constituição. Preservar a dignidade humana significa promover a autonomia para a realização de todas as potencialidades que nos fazem humanos. Nessa perspectiva, a mulher deve ter controle sobre o processo reprodutivo, sendo capaz de realizar as escolhas, de forma autônoma, que considere mais adequadas ao seu pleno desenvolvimento. Como decorrência dessa afirmação, diversos outros dispositivos constitucionais dão amparo à descriminalização do aborto, como a privacidade, a autodeterminação, a vida. Isso, por sua vez, faz com que o aborto seja compreendido enquanto uma medida necessária de saúde, direito constitucional de todos. Se você tem direito à autodeterminação e ao aborto, por consequência, há uma correlata obrigação do poder público em estabelecer uma política de saúde que dê concretude a este direito. Portanto, criminalizar significa, de uma só vez, violar a dignidade, a autonomia, a privacidade e, também, a saúde das mulheres.
Como você avalia a possibilidade do encaminhamento de uma ação junto a STF no sentido de legalização do aborto ou um novo permissivo legal?
Tendo em vista o papel contramajoritário do Supremo Tribunal Federal, seria possível sua atuação na proteção dos direitos das mulheres, especificamente no que se refere ao direito ao aborto, tal como ocorreu em outros países, nos quais essa pauta não encontrou amparo nas instâncias representativas e foram acolhidas pelos tribunais. Trata-se de uma pauta liberal até antiga, mas que ainda não foi abordada, como deveria, pelo Judiciário brasileiro.
Como a premissa de igualdade na Constituição é uma dimensão importante quando se avalia a criminalização da prática do aborto? Como contemplar as mulheres mais pobres nesse contexto?
A fruição dos direitos humanos e fundamentais é marcada por seletividades, sobretudo em um país tão desigual como o brasileiro. Essa desigualdade afeta também as mulheres na hora de usufruírem de um direito. Aqui importa não somente a questão de renda, mas sobretudo as questões de gênero. A Constituição, ao indicar o pluralismo e a diversidade como fundamentos da República, acolhe as demandas por reconhecimento. Nesse ponto, as desigualdades e discriminações impostas às mulheres por uma sociedade marcadamente machista podem e devem ser combatidas pela e a partir da Constituição. A criminalização do aborto não tem amparo constitucional e afasta, sobretudo, as mulheres mais pobres e negras do pleno exercício de seus direitos.
Trincheira do Aborto Legal, especial para o Observatório de Sexualidade e Política (SPW)