Publicado originalmente pelas Católicas pelo Direito de Decidir. Disponível em: catolicas.org.br/novidades/editoriais/genero-direitos-mulheres/
Algumas seguidoras entraram em contato conosco dizendo que não entenderam o debate em torno do MP 696/2015. Decidimos então escrever sobre o assunto que é de extrema importância para a vida das mulheres brasileiras. Tenham paciência porque a história é longa.
Na quarta-feira, dia 9 de março de 2016, logo após o Dia Internacional da Mulher, houve mais um ataque aos nossos direitos vindo do Senado Federal, braço legislativo de nosso Congresso. O Senado aprovou a Medida Provisória (MP) 696 de 2015 – cujo texto havia sido aprovado na Câmara dos Deputados na noite do dia 17 de fevereiro de 2016 – oficializando a reforma administrativa que basicamente enxuga ministérios e cargos, para atender à demanda de redução de gastos com a máquina pública por causa da crise econômica. Entre as alterações aprovadas, vamos à que nos interessa diretamente. As Secretarias de Políticas para as Mulheres, de Promoção da Igualdade Racial, de Juventude e Direitos Humanos, criadas há cerca de uma década, com status de Ministério, foram desmanteladas e viraram uma só pasta: o Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial, da Juventude e dos Direitos Humanos.
O texto aprovado da MP exclui a questão de gênero das atribuições do novo Ministério, incluindo a Convenção Americana de Direitos Humanos, conhecida como Pacto de São José, como a referência de instrumento internacional a ser seguido no País. Este pacto assinado, em 1969, pelos países que integram a Organização dos Estados Americanos (OEA) determina a criação de políticas em diversos âmbitos. No que diz respeito à vida humana, decreta no item 1 do seu 4º artigo: “Toda pessoa tem o direito de que se respeite sua vida. Esse direito deve ser protegido pela lei e, em geral, desde o momento da concepção. Ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente”.
Agora, analisem conosco o perigo que se avizinha. A histórica perspetiva de gênero tem sido debatida em âmbito mundial por feministas, ativistas dos direitos humanos, pesquisadoras/es, acadêmicos, profissionais da saúde, educação, direito etc, e tem sido essencial para a criação de estudos e políticas que garantam: o fim da desigualdade entre homens e mulheres como, por exemplo, a equiparação salarial; o fim da violência física, sexual, psicológica e simbólica contra as mulheres; o acesso à saúde e educação das mulheres e seus filhos; o acesso ao aborto legal e seguro; o combate ao racismo, homofobia, transfobia, lesbofobia e bifobia; a adoção da educação sexual, informação e métodos preventivos contra DSTs e gravidez indesejada; o reconhecimento das necessidades específicas das população negra e LGBT no que diz respeito ao acesso à saúde, educação e trabalho etc. Enfim, uma infinidade de direitos que historicamente foram ignorados ou negados àqueles que não são homens, brancos e heterossexuais.
Ok, Católicas, mas e o Pacto de São José? A questão é que o argumento de que a vida deve ser protegida desde a concepção é controverso, uma vez que não há acordo nem do ponto de vista da ciência, nem da religião, sobre o momento em que passamos a ser pessoas com direitos individuais. Sobre esta questão, sugerimos a leitura de nossa publicação, disponível para download gratuito no site de Católicas. A defesa da vida desde a concepção, é totalmente questionável, tem sido um dos argumentos utilizados pelos políticos fundamentalistas para criar e aprovar medidas políticas e legislativas que violam os direitos das mulheres como, por exemplo, o absurdo Estatuto do Nascituro, projeto de ideologia religiosa que viola o direito das mulheres do acesso à interrupção legal da gravidez, nos casos de estupro, risco à vida da mulher e anencefalia.
A aprovação deste MP com este texto é mais um sintoma do quão desrespeitoso é nosso Congresso em relação aos direitos das mulheres. O Senado de hoje, por exemplo, composto por 81 senadoras/es, tem uma representação feminina de apenas 14%, o que corresponde a 12 mulheres. Não é só por isso, mas fica fácil entender porque as leis brasileiras são tão misóginas e porque os políticos fundamentalistas que compõem a bancada religiosa no Congresso insistem em excluir a problemática de gênero de âmbitos essenciais para a vida pública como as escolas, por exemplo. O que eles querem é manter seus privilégios forjados pelo machismo. O que nós queremos é igualdade de direitos e que a questão de gênero seja respeitada, assim como a laicidade do Estado. Em um país que lidera os rankings vergonhosos de violência contra as mulheres, LGBTs e negros, a aprovação deste texto sem a questão de gênero é um absurdo intolerável! E, na verdade, um desrespeito à vida da maior parte da população brasileira. Um desrespeito à nossa Constituição.
Então, na prática, quais seriam as consequências nefastas desta irresponsável medida?
- Não reconhecer a questão de gênero, debatida e reconhecida em âmbito mundial pela comunidade científica, diversas categorias profissionais e movimentos sociais, é ignorar todos os problemas vividos em decorrência do machismo, racismo e homofobia que ceifa vidas, cerceia as liberdades individuais e viola direitos humanos.
- Afirmar que o Pacto de São José é o único instrumento referencial para a construção e execução das políticas deste Ministério é concordar com o argumento fundamentalista que sistematicamente tem afrontado os direitos sexuais e direitos reprodutivos das mulheres no Brasil, abrindo brechas para que o aborto legal seja questionado.
- Além disso, esta aglutinação ministerial é absolutamente questionável no que diz respeito aos recursos disponíveis. Se o orçamento para a condução efetiva de políticas públicas para as mulheres, população negra, LGBT, jovens etc. já era pouco dada enormidade dos desafios e problemas que tais grupos enfrentam, agora pode piorar porque os recursos serão insuficientes para uma pasta deste tamanho.
O caos político em que vivemos ofusca completamente este debate essencial para nossas vidas, tanto que ele não recebeu destaque em qualquer veículo de comunicação da chamada grande mídia. E, pelo andar da carruagem, continuará sendo ignorado, a não ser que nós feministas, todas as mulheres e ativistas que se importam com um futuro digno, igualitário e pleno de direitos venham à público denunciar este ataque político misógino e irresponsável. O Congresso está atuando na surdina e nós precisamos colocar a boca no trombone! Por isso, ocupem as redes sociais, compartilhem esta informação, chamem a atenção de suas amigas. Abaixo a relação de manifestos de outras companheiras feministas empenhadas nesta luta:
Articulação de Mulheres Negras Brasileiras: http://www.amnb.org.br/noticias.asp?id=130#ancora
União de Mulheres do Município de SP: http://agenciapatriciagalvao.org.br/direitos-sexuais-e-reprodutivos/nota-de-repudio-da-uniao-de-mulheres-e-das-promotoras-legais-populares-aos-retrocessos-trazidos-na-plv-252015-mp-6962015/
União Brasileira de Mulheres: http://www.ubmulheres.org.br/component/content/article/3-ubm/1061-nota-da-ubm-contra-o-retrocesso-vetadilma.html
Nota oficial do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher:
http://www.spm.gov.br/noticias/nota-do-cndm-nenhum-retrocesso-na-busca-da-igualdade-de-genero