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Os muitos lugares da prostituição

No final de novembro de 2015, o Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ sediou o curso “Uma revolução particular: o movimento brasileiro de prostitutas”, que abordou as raízes, história, contextos e interlocutores do movimento nascido e organizado nos anos 1970. O curso de extensão foi organizado pelo projeto de extensão do Observatório da Prostituição (LeMetro/IFCS/UFRJ) e reuniu trabalhadoras do sexo e pesquisadores do tema ao longo de cinco dias para debater a importância do movimento de prostitutas na construção da democracia brasileira e nas discussões sobre direitos sexuais e laborais. Conforme afirma em entrevista ao SPW, Laura Murray, pesquisadora e uma das organizadoras do curso, a ideia foi envolver a universidade no debate sobre prostituição não apenas em sua dimensão profissional, mas também na sua dimensão política e social.

Laura Murray fala  sobre o curso.

O curso chamou-se Uma revolução particular: o movimento brasileiro de prostitutas. Foi uma iniciativa pensada pelo Observatório da Prostituição (LeMetro/IFCS/UFRJ) junto com a Gabriela Leite há alguns anos. A ideia era fazer um curso dentro da Universidade no qual o movimento de prostitutas pudesse contar a sua história para os estudantes e grande público, sem os traços estigmatizantes que geralmente cercam o tema.

Um dos objetivos do curso foi mostrar algo que prostitutas ativistas frequentemente afirmam: elas também são professoras, que podem ensinar muito mais a partir do que vivenciam nas ruas, esquinas e no ativismo do que aquilo que muitas vezes é ensinado nas salas de aulas. A ideia do curso foi essa, apresentá-las como professoras em um contexto de ensino, mostrando como elas possuem um lugar de destaque na história política e social do país, das lutas pelo reconhecimento profissional e da prevenção à epidemia do HIV/Aids.

O  movimento de prostitutas no Brasil

Sua história importante na democracia no Brasil e como mudaram o discurso sobre a prostituição no país. O movimento surgiu nos anos 1970 e elas participaram na construção da democracia no país. Nem a prostituição nem o Brasil foram o mesmo depois que o movimento começou. Elas têm modificado, avançado eu diria, o significado de conceitos como cidadania, democracia, ativismo, sexualidade, gênero, rua e claro, puta, ao longo dos anos de seu ativismo.

lurdes_23084740050_o Qual o significado da história pessoal das prostitutas na história do  movimento?

Sem as demandas e lutas delas, que nascem de suas trajetórias profissionais e pessoais, de seus dramas e desafios, o movimento não existiria. Nesse sentido, gostaria de destacar as figuras de Lourdes Barreto e Gabriela Leite, fundadoras do movimento. O curso foi em homenagem à Gabriela, e toda sua trajetória e filosofia política que é um norteador das ações do Observatório, e eu acho, presente na forma que as pesquisas e ativismo sobre prostituição são concebidas e realizadas hoje no Brasil. É impossível falar sobre a prostituição sem falar na Gabriela.

Lourdes é plenamente atuante, tendo tatuado “Eu sou puta” em seu braço semanas antes do curso. Ela tem uma força contagiante, e é simplesmente brilhante na forma de fazer política. Ela fez um discurso lindo, muito emocionante durante a abertura sobre a história do movimento, comparando com o início, quando era difícil até mesmo falar sobre a prostituição – contextualizando a conquista que é hoje poder falar e realizar o curso dentro da universidade pública e também destacando o papel da Igreja Católica – que foi muito importante no início do movimento para Gabriela e Lourdes. Ela contou a história maravilhosa de quando ela e Gabriela se encontraram num evento organizado pela Pastoral em meados dos anos 1980 e perceberem que o povo organizador do evento estava com um discurso contra a prostituição, tentando tirá-las da profissão, e aí elas rebatarem, o evento “pegou fogo” e Lourdes e Gabriela decidirem fundar seu próprio movimento. As riquezas dos detalhes que ela conta sobre o primeiro encontro, as dificuldades que tinham no início até para achar hotel para hospedar prostitutas…. enfim, toda a memória que ela tem fez a plateia sentir a história que ela e Gabriela vivenciarem.

As histórias contadas por Lourdes e também pelas outras lideranças prostitutas presentes como Betania Santos, Cida Viera, Indianara Siqueira, Nilce Machado, e Amara Moira expressaram a história das pessoas de todos os cantos do Brasil que, por serem prostitutas, muitas vezes aparecem no mundo dentro de uma perspectiva muito específica (e historicamente perseguida) da sexualidade, da moralidade e das relações de informalidade e negligência que vigoram no trato de interesses públicos no país. Falar do movimento brasileiro de prostitutas é, portanto, falar da produção política e poética de conhecimento sobre a sexualidade e a moralidade brasileiras e, por esse viés, sobre muitas práticas políticas vigentes na esfera pública e que definem distinções entre os âmbitos do público e do privado.

desfile finalVocê salientou que o curso foi protagonizado pelas próprias prostitutas, mas também participaram pesquisadores e ativistas. Fale um pouco mais sobre isso? 

Não, na verdade, é um movimento variado e o curso procurou também destacar isso. Tivemos pesquisadores expondo a história da prostituição no Rio de Janeiro, como Juçara Leite, Aparecida Moraes e Beatriz Kushnir; temos uma parceria importantíssima com o arquivo público do Estado – o APERJ – e o diretor do Museu Histórico Nacional, Paulo Knauss, que estava no APERJ quando a Davida doou o arquivo estava presente, assim como o professor e pastor Zwinglio Dias, que teve um papel fundamental no início do movimento, mobilizando um recurso junto com o Conselho Mundial de Igrejas para o primeiro encontro nacional das prostitutas em 1987. Do Estado, estavam presentes parceiros importantes como representantes do gabinete do deputado Jean Wyllys e Adriana Motta, da Subsecretaria de Políticas para as Mulheres do Rio de Janeiro. A própria professora Soraya Simões, coordenadora do Observatório e do curso e Presidenta da Davida. Os bolsistas do Observatório da Prostituição – alunos incríveis que foram fundamentais na realização do curso, e ainda arrasaram na passarela Daspu. Enfim, pontes com diversos atores que apoiam e compõem o movimento que Flavio Lenz e Friederike Strack chamam de “aliados afetivos”. Tivemos até uma mesa com esse título para conversar sobre esse grupo de pessoas que não são prostitutas, mas que fazem parte importante do movimento. Não foi um curso de experts sobre o tema, mas um curso de pessoas de diferentes campos que compõem o movimento, que debatem suas razões, seus interlocutores, demandas e desafios.maria

Quais os desafios atuais?

Acho que, diante de um cenário em que forças conservadoras estão fortalecidas, trazer as vivências e memórias do movimento é uma iniciativa fundamental para retomar a luta da classe das trabalhadoras do sexo. É preciso dizer que temos pouco espaço para discutir o tema, o que é um desafio que precisamos enfrentar. Acho que temos que discutir o universo da prostituição e a contribuição do movimento das prostitutas, pois são partes constituintes da história de muitos lugares, cidades e do próprio país.

Por isso, as ações culturais têm sido um espaço de visibilidade, do qual são exemplos os desfiles da Daspu, as comemorações do Puta Dei (2 de junho) que começaram em Belém e já se espalharam pelo Brasil inteiro, o concurso Miss Prostituta organizado pelo APROSMIG em Belo Horizonte. A ausência de um debate amplo e aberto foi sentida no curso. Era visível o tesão das pessoas em saber, aprender e interagir com o universo da prostituição e a história do movimento, que lhes parecia desconhecido.

desfilando. jpgUm desfile da DASPU marcou o final do curso

O desfile foi sensacional! Um momento marcante e lindo, com muito entusiasmo de todas. Ver aquela luz vermelha iluminando o IFCS no largo São Francisco foi algo que nunca vou esquecer. A performance contou com prostitutas, alunos, michês, travestis, ativistas, e até alunos e alunas e professores saindo das aulas interagiram com o desfile! Foi muito legal para ilustrar a diversidade das subjetividades envolvidas na prostituição e o movimento. A escadaria virou um puteiro, com Lourdes Barreto no papel da cafetina, remetendo à relação da prostituição com o cenário urbano, que chama a atenção para o lugar dos espaços públicos na construção de visibilidades e ativismo. Mas para mim, a melhor parte foi algo inesperado e inédito. No final do desfile, o funk Daspu não entrou por um problema de som, e as lideranças prostitutas pegaram o microfone e derem um show! Falaram do movimento, dos direitos, da cidadania – foi mais uma baita aula das melhoras professoras.



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