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Aborto na agenda médica e da pesquisa em saúde pública

Angela Freitas

No Dia de Luta pela Descriminalização do Aborto – 28 de Setembro – o Programa de Pós Graduação em Saúde da Criança e da Mulher do IFF (Instituto Nacional de Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente Fernandes Figueira), da Fiocruz, realizou a Jornada de Debates sobre Aborto e Direitos Reprodutivos.

Lá estavam profissionais da área médica, pesquisadores/as e gestores/as, estudantes do Fernandes Figueira, organizações da sociedade civil e militantes do movimento de mulheres em uma atmosfera de grata recepção da iniciativa, que já na abertura convocou as instituições a “saírem do armário” para enfrentar o ultraconservadorismo que domina o debate público sobre aborto no Brasil. Um debate que precisa ser constantemente reposicionado no âmbito da saúde reprodutiva, direitos reprodutivos e da saúde das mulheres de modo que não seja capturado pelo dogmatismo religioso, como tem acontecido no Brasil de hoje.

Estão disponíveis no país pesquisas sólidas sobre o tema — realizadas ao longo das últimas três décadas — cujos achados têm sido pouco (ou mal) aproveitados nos debates públicos sobre o aborto no Brasil. Considerando-se, sobretudo, a guinada antidemocrática em curso no legislativo federal, é urgente circular essas informações e dados para melhorar a qualidade das conversações sobre o assunto na sociedade.

Na Abertura do evento, Elizabeth Fleury, coordenadora do Comitê Pró-Equidade de Gênero e de Raça da Fiocruz, disse que “a crise brasileira leva o país para lugares que não pretendemos”, no que foi seguida por Katia Silveira da Silva, coordenadora do Programa de Pós-graduação em Saúde da Criança e da Mulher do IFF/ Fiocruz, que ampliou esse sentimento ao dizer que: “[Esse] é um momento de irmos para a rua: só essa língua será entendida”. Ir para as ruas e ocupar o centro do debate requer diálogos e coalizões, a exemplo do estão fazendo os núcleos de sexualidade e gênero de várias universidades públicas brasileiras para expressar sua posição contra o Estatuto da Família.

Na primeira mesa temática, com o deputado federal Jean Wyllys (PSOL), Sonia Corrêa (SPW) e Claudia Bonan (IFF), foi examinado o panorama do Congresso Nacional no que diz respeito ao aborto, apresentado um balanço global das leis nesse tema e colocados sobre a mesa desafios para a construção de argumentos eficazes que ampliem o apoio à legalização do aborto no Brasil. Na avaliação que fez do Congresso, o deputado Jean Wyllys sublinhou que a recente aprovação do Estatuto da Família, por uma Comissão Especial, não surpreendeu, pois esta era uma comissão de cartas marcadas, composta por maioria ultraconservadora. Por outro lado, ele também observou que o campo progressista vem se omitindo em relação a esses temas, sendo pouquíssimas as representações que ainda vocalizam, no Congresso, pelos direitos sexuais e reprodutivos.

Sonia Corrêa lembrou que entre os países membros do BRICS somos o único em que o aborto não é legal, embora devamos considerar o caso da Rússia, onde estão em curso medidas que restringem e dificultam o acesso a serviços de aborto. No Brasil, a visão moral e conservadora sobre o aborto que existe desde muito tempo, ganhou força nos anos 2000, em particular após o recuo do Executivo em relação à apresentação ao Congresso do anteprojeto de lei elaborado pela Comissão Tripartite, em 2005. Essa posição conservadora tem na pessoa de Eduardo Cunha um de seus ícones, ele que hoje ocupa a Presidente da Câmara. Cunha é autor de quatro projetos de lei que visam restringir de maneira absoluta as possibilidades de interrupção da gravidez. Corrêa sublinhou ainda que em 2015 a análise dos retrocessos em relação ao aborto no Congresso não pode ser feita de maneira isolada. Eles devem ser compreendidos na sua relação com outras propostas legislativas e regimentais regressivas, como é o caso da redução da maioridade penal, da PEC 2015 (que altera as normas de homologação de terras indígenas) e de propostas de mudança no Regimento que visam acelerar a tramitação de emendas constitucionais.

Por outro lado, ela considera que as mortes de duas mulheres por aborto no Rio de Janeiro, em 2014, provocaram a retomada de iniciativas relevantes por parte de forças favoráveis à legalização, como é o caso do diálogo sobre o tema que teve lugar em março entre feministas e ministros do STF e, mais especialmente, da Sugestão de Proposição Legislativa (SUG) assinada por 20 mil pessoas — ora tramitando no Senado — e do projeto de lei do deputado Jean Wyllys, que está na Câmara Federal. Embora a tramitação dessas duas proposições legislativas esteja sendo monopolizada por parlamentares opositores, enquanto iniciativa elas aqueceram o debate, e este deve ser sustentado e ampliado para conter mais retrocessos e, sobretudo, ampliar a discussão na sociedade. Relembrando a visita da feminista Teresa Blandón ao Brasil, Corrêa considera que não podemos perder de vista o que aconteceu na Nicarágua onde — num contexto de debates sobre corrupção e negociações espúrias entre políticos poderoso — o aborto foi criminalizado de maneira absoluta.

Uma tarefa urgente é reconstruir argumentos. Claudia Bonan lembrou que os adversários do aborto legal já não lançam mão do discurso moral ou religioso. Apropriaram-se de nossos argumentos da Bioética, da Epidemiologia, da Saúde Pública, da Psicologia e dos próprios argumentos jurídicos. Em contrapartida, as instituições de saúde encontram-se acuadas: “A alternativa [do aborto] precisa ser legalizada e desestigmatizada dentro das práticas de saúde das mulheres, não somente porque a contracepção falha”, afirmou Bonan referindo-se a certa autocensura em que as instituições “fazem um jogo político e ideológico que não é o seu”. Para ela, as instituições é preciso que este campo entre mais forte no debate, contribuindo para a atualização dos argumentos, não somente da ordem da saúde pública, mas também da justiça social, da discriminação (de gênero e étnico-racial), da defesa do Estado laico, do direito fundamental à não tortura, e dos princípios éticos de defesa do direito à vida e dignidade das mulheres e seu direito de “decidir se querem dar à vida ou não”, preservando sua intimidade. Estamos perdendo a batalha na argumentação e “o papel dos profissionais de saúde é importante nessa luta”, concluiu Bonan.

No debate Corrêa acrescentou que “eles [antiabortistas] têm sido capazes de traçar teses esquemáticas que captam corações e mentes, e nós não”. Apontou que um desafio é tomar em mãos o debate sobre o direito à vida, de que se apoderaram grupos religiosos: “não podemos nos esquivar desse debate e, do meu ponto de vista, o caminho possível é tratar o tema do ponto de vista da ponderação de direitos”. Ou seja, reconhecer a vida em potencial do feto e ao mesmo tempo afirmar que a vida das mulheres tem primazia. Para a expositora, é também fundamental argumentar a favor do aborto como uma questão da Democracia, o que envolve liberdade, igualdade, não discriminação, autonomia reprodutiva das mulheres como condição para sua participação na sociedade.

Teses que, é preciso dizer, manipulam dados e análises: “Nossos argumentos estão se perdendo no ‘desfazimento’ da Democracia”, lembrou uma das participantes no debate.

Na segunda mesa temática o ex-Ministro da Saúde, José Gomes Temporão reafirmou que o aborto deve ser pensado como questão de saúde pública. Não a saúde pública dos economistas ortodoxos, que propõem corte de verbas, mas o conceito trabalhado pelo CEBES, pela Abrasco e pela geração de Sergio Arouca na Fiocruz, inspirada por Belinguer e Winicott. Temporão lembrou sua passagem pelo ministério, entre março de 2007 e dezembro de 2010 — ano em que doze mulheres por hora eram hospitalizadas com sequelas por aborto inseguro. Contou que logo no início desse mandato defendeu esta visão, em entrevista ao jornal carioca “O Dia”, o que provocou “repercussão brutal”. O então Presidente Lula sustentou a posição, mas o episódio coincidiu com a visita oficial do Papa ao Brasil, quando o debate cresceu e se radicalizou: “fui ameaçado de excomunhão”, lembrou ele, por ter ridicularizado a atitude de um arcebispo do Recife no caso da uma menina raquítica de 11 anos, em que a Igreja queria barrar o aborto de gêmeos sendo o abusador, o próprio padrasto. Para Temporão, o tema não evoluiu, mas houve uma interseção com outras medidas do campo dos direitos sexuais e reprodutivos, como a assinatura de uma portaria autorizando a cirurgia de mudança de sexo pelo SUS, o apoio público à luta das prostitutas, a instalação de máquinas de dispensação de preservativos nas escolas, a produção de material educativo sobre sexualidade e saúde [cuja distribuição foi proibida pelo ministro Padilha], as campanhas sobre Aids no Carnaval.

Temporão citou aspectos positivos como o aprimoramento das normas técnicas de atendimento dos casos de aborto [aborto legal e atendimento de mulheres com sequelas por aborto provocado], sua ida ao Supremo para defender a ADPF 54 (aprovada em 2012) e parcerias produtivas estabelecidas com a SPM e com a Secretaria de Direitos Humanos: “vetor interessante de fortalecimento das políticas na linha da consciência sanitária”. Mas reconheceu que a estratégia conservadora “não deixa avançar em direitos sexuais e reprodutivos”, apontando omissão no “novo governo” e sublinhando que continua elevada a incidência do aborto inseguro no país constituindo, nos dias atuais, a 5ª causa de morte materna.

Leila Adesse (AADS/ GEA), por sua vez, tratou dos estigmas que pesam sobre aborto e os profissionais que trabalham nos serviços de aborto legal. Segundo ela, esse estigma decorre do desconhecimento ou pouca valorização das normas e protocolos do Ministério da Saúde. Essa análise convergiu com o comentário previamente feito por Temporão de que há poucos serviços fazendo aborto legal: “os profissionais estão confortáveis com esta situação, e as mulheres não chegam aos serviços”.

Já o obstetra do IFF, Marcos Dias, identificou o desconhecimento (ou alegado desconhecimento) a respeito das normas e protocolos que regulam a atenção ao aborto nos serviços de saúde, reconhecendo que “temos um arcabouço construído, mas os tempos são difíceis hoje”. Analisando o fechamento das clínicas clandestinas, em curso em diversas capitais do país, chegou a afirmar que vivemos uma “situação medieval com a qual não é possível nos conformarmos”.

Do lado de fora, na calçada em frente ao Instituto Fernandes Figueira, uma manifestação silenciosa composta por quatro mulheres portando cartazes, fez plantão durante todo o período de duração da Jornada. Os cartazes eram assinados pela Campanha “40DAYSFORLIFE” (sim, em inglês). Na sala de debates, o grupo se despedia entusiasmado com o dia de trabalho, e compromissado com uma agenda de atividades para enfrentar os desafios no legislativo, diante da sociedade e no próprio campo da atenção à saúde.



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