Originalmente publicado pelo Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos
A aprovação por uma Comissão Especial da Câmara dos Deputados de parecer favorável ao Estatuto da Família (PL 6583/13), cujo texto restringe-se à definição de família como o núcleo formado a partir da união entre um homem e uma mulher, provocou protestos pelo país e mobilizações no âmbito acadêmico brasileiro. Diversos centros de pesquisa, programas e núcleos universitários debateram o tema dentro de um movimento nacional intitulado “Por todas as famílias”, que incluiu, além de debates, o envio de mensagens individuais e coletivas a deputados.
Em resposta a professores e pesquisadores participantes deste Movimento, o deputado Diego Garcia (PHS/PR), resumindo as quase 100 páginas de sua relatoria, tentou explicar por que, do seu ponto de vista, o Estatuto não deveria ser considerado inconstitucional ou homofóbico, não feriria a laicidade do Estado, e não prejudicaria – segundo ele alega – outros arranjos familiares que o Estatuto formalmente exclui. No entanto, os argumentos do relator do projeto resvalam quando este responde por que o Estatuto abrange apenas a relação conjugal heterossexual: “Porque o Estatuto traz as relações familiares reconhecidas pela Constituição Federal como a base da sociedade (…) o Estatuto da Família pautou-se no texto constitucional ao reconhecer quais as relações familiares que formam a base da sociedade”.
O argumento utilizado desloca o sentido do artigo 226 da Carta Magna. Para entender esse deslocamento na interpretação do relator, é necessário atentar para a sintaxe do citado artigo, que diz:
“Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.” (Clique aqui para ler a íntegra)
Ao colocar o termo ‘base da sociedade’ entre vírgulas, o texto da CF refere-se claramente à ‘família’ de forma genérica, diz que ‘a família’ (em geral) é base da sociedade, e não privilegia apenas um tipo de arranjo familiar. Assim, todas as famílias aí implícitas podem ser consideradas base da sociedade.
Ao extirpar as vírgulas, a frase fica “A família base da sociedade tem especial proteção do Estado.”, como se, no texto constitucional, apenas um tipo de família fosse contemplado – a “família base” – expressão que Garcia utiliza inúmeras vezes para justificar a aprovação do projeto de lei. Ao retirar as vírgulas, extirpa-se o aposto, que se transforma assim em adjetivo restritivo, transmitindo a ideia equivocada de que a Constituição Federal privilegiaria um tipo único de família, a tal “família base”, que mereceria tratamento legal distinto de outras formas familiares. Aproveitando-se do fato de a união entre sexos diferentes ser citada mais abaixo no mesmo artigo da CF, que admite ”Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento”, os formuladores do Estatuto chegam à conclusão de que essa tal “família base” seria, por definição, heterossexual. Seu privilégio se basearia no suposto desta ser biologicamente reprodutiva. “O Estatuto proposto faz uma sobreposição deliberada entre união heterossexual e família, que são duas coisas diferentes. Na reinterpretação dos defensores deste projeto, a Constituição estaria privilegiando este tipo de união como ‘família base’, quando na verdade no texto constitucional não existe essa restrição”, afirma o antropólogo Sérgio Carrara (CLAM/IMS), um dos participantes da atividade do Movimento “Por todas as famílias” na UERJ no dia 30 de setembro.
Por sua vez, o projeto do Estatuto da Família, em seu artigo 2º, afirma que “define-se entidade familiar como núcleo social formado a partir da união entre um homem e uma mulher, por meio do casamento ou união estável, ou ainda por comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes” (clique aqui para ler a íntegra).
Sérgio Carrara adverte que, para defender o privilégio a ser concedido ao casal heterossexual, o relatório de Garcia centra-se na reprodução biológica, em detrimento de outras dimensões de reprodução social presentes nos arranjos familiares. “Na verdade, se está querendo criar um tratamento diferenciado para um tipo de família baseada no fato de ela ser supostamente reprodutiva do ponto de vista biológico. Nem mesmo a parentalidade realizada através da adoção ou de tecnologias reprodutivas é claramente contemplada no Estatuto. Subsume-se a reprodução social à reprodução biológica, quando sabemos que nem sempre casais heterossexuais têm filhos e que muitas mulheres e homens solteiros e casais de pessoas do mesmo sexo os têm, seja de uniões anteriores, seja através da adoção ou da utilização das técnicas de reprodução assistida”.
Carrara lembra que as famílias nucleares (pais e filhos) quase nunca são socialmente isoladas: avós, tios e mesmo parentes sem filhos, por exemplo, têm papel crucial na socialização familiar e nos laços de parentesco das novas gerações.
“A família tradicional já é um arranjo que representa menos de 50% da população brasileira, enquanto os novos arranjos familiares já formam a maioria dos domicílios, como mostram os dados do último Censo Demográfico”, observou o demógrafo José Eustáquio Diniz Alves (ENCE/IBGE) durante o debate na UERJ. Segundo este mesmo Censo, o percentual de famílias chefiadas por mulheres no país passou de 22,2% para 37,3%, entre 2000 e 2010. Foram elas as responsáveis pelo aumento na População Economicamente Ativa (PEA) no Brasil, que passou de 17 milhões em 1950 para 93,5 milhões em 2010. O Censo 2010 também identificou a existência de pelo menos 60 mil casais homossexuais no país.
Assim, sob a máscara da promoção de um tipo de família, o que se está privilegiando é um tipo de união, a heterossexual, fazendo com que o Estatuto se apresente como uma resposta direta à histórica decisão do STF que, ao julgar a ADPF 132/RJ e a ADI 4.277, admitiu que a união estável entre pessoas do mesmo sexo teria os mesmos efeitos legais da união estável heterossexual. E em outubro do mesmo ano, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) admitiu a possibilidade de conversão dessas uniões em casamento (por meio de habilitação perante o Registro Civil). E em seguida o casamento homoafetivo foi regulamento pela Resolução 175 do Conselho Nacional de Justiça, que determinou a todos os registros civis que habilitassem os casais de mesmo sexo para o casamento civil. A Resolução em questão veda “às autoridades competentes a recusa de habilitação, celebração de casamento civil ou de conversão de união estável em casamento entre pessoas de mesmo sexo”.
O discurso ora elaborado pelos parlamentares favoráveis ao PL 6583/13 ignora que o tema já está amadurecido em termos jurídicos com as decisões do Supremo Tribunal Federal a respeito do conceito de família no Brasil. Se não há um artigo no Código Civil brasileiro que admita a família homoafetiva, também não há artigo que a exclua da proteção legal. Efetivamente, a Constituição não limita as formas de constituição de família, logo, o artigo 226 apenas exemplifica as formas de família protegidas pela Carta Magna.
À época da decisão no Supremo, seus ministros sustentaram que a união homoafetiva estável é hoje uma realidade no Brasil. Mas, como não existe previsão constitucional para essa nova modalidade de entidade familiar, caberia aplicar a ela o que os ministros chamaram de “técnica de integração analógica”, ou seja, enquadrar essas uniões na legislação mais próxima, até que ela seja definitivamente regulada por lei aprovada pelo Congresso Nacional. E o dispositivo constitucional mais próximo, no caso, é o artigo 226 da CF.
Reprodução x afeto
O conceito de família evoluiu historicamente. A família dita “tradicional” servia e serve, acima de tudo, para assegurar a transmissão de um patrimônio material e imaterial (bens, títulos, direitos, prerrogativas). Era comum e extensamente aceito que os casamentos (que aconteciam apenas entre membros da classes mais abastadas) fossem arranjados entre os pais dos noivos, sendo irrelevante a existência de afeto entre os futuros cônjuges, usualmente unidos em idade precoce. A célula familiar era submetida à autoridade patriarcal.
Já no século de XVIII, a ideia de família começou a ser associada à lógica do afeto, na qual os cônjuges deviam unir-se não só por interesses familiares, mas também pelo amor. Já no século XX, a partir da década de 1960, impôs-se o modelo contemporâneo de família, que une dois indivíduos em busca de relações íntimas. A escolha do parceiro amoroso passa a ser constitutiva da sua “realização pessoal”, tropo privilegiado do individualismo moderno. Ao mesmo tempo, a sexualidade se desloca parcialmente da reprodução e, portanto, do parentesco e da família. Se o advento da pílula trouxe a possibilidade de se ter prazer sem filhos, a fecundação in vitro trouxe a possibilidade de se ter filhos sem ter relações sexuais, como afirma o jurista Mauro Nicolau Junior (http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=10044).
“Essa ideia do afeto e do amor romântico como fundamento do casamento vai ser apropriada e readaptada por parte do movimento LGBT. Este discurso que afirma: se por ora isso é um Direito, nós também o queremos”, conforme assinalou o advogado Bernardo Campinho, da Comissão de Bioética da OAB, na atividade realizada na UERJ no dia 30 de setembro.
A decisão de 2011 do Supremo Tribunal brasileiro fez com que um olhar específico fosse lançado sobre esta instituição chamada “família”, que vem se moldando e se constituindo fundamentada em parâmetros de amor, cuidado, solidariedade, afetividade, empatia e afinidade, ultrapassando normas legais que apenas a admitiam se fundamentada em laços de consangüinidade, casamento ou “união estável” entre pessoas de sexos diferentes.
Os defensores do Estatuto da Família, no entanto, sustentam que não é o afeto que deve fundamentar a “família base da sociedade”. “Faz-se necessário diferenciar família das relações de mero afeto, convívio e mútua assistência; sejam essas últimas relações entre pessoas de mesmo sexo ou de sexos diferentes, havendo ou não prática sexual entre essas pessoas. É importante asseverar que apenas da família, união de um homem com uma mulher, há a presunção do exercício desse relevante papel social [a reprodução biológica] que a faz ser base da sociedade”, afirmou o deputado Ronaldo Fonseca (Pros-DF) em recente entrevista. (clique aqui para ler a notícia sobre o assunto).
O deputado Diego Garcia disse em seu parecer que as relações de “mero afeto” não devem ser tratadas pelo Direito de Família. “Defendemos o que está na Constituição, e ela não menciona o arranjo familiar baseado no amor e no afeto”. Para Garcia e outros parlamentares, não basta apenas o afeto, isso é o que eles chamam de ‘parceria vital’. Pode haver até uma lei para isso, mas, para esses atores, é apenas essa “família base” a que repõe as gerações.
Tudo se passa como se, conforme assinala Sérgio Carrara, “as funções de adensamento das relações sociais, geralmente desempenhadas pela família, fossem menos importantes do que suas funções reprodutivas. Mais grave do que isso, como se fosse possível separar tais funções, ou seja, como se as sociedades se reproduzissem pelo mero fato de pessoas nascerem e não, como sabemos, pelo fato de seus novos membros receberem suporte afetivo e material providos inicialmente por um conjunto de relações a que denominamos ‘família’”.
Direitos ou privilégios?
Os demais dispositivos do Estatuto da Família cuidam de políticas públicas para a “família base” e de diretrizes para a sua concretização. O Projeto de Lei institui a família como espécie de sujeito político, por exemplo, ao propor a criação de Conselhos de Família, os quais seriam compostos por membros da “família base”. Este dispositivo político-administrativo passaria a hierarquizar quem poderá ter acesso à adoção (na ordem: casais legalmente casados, uniões estáveis e, por ultimo, pessoas sozinhas), entre outras questões. Além disso, estabelece o 21 de outubro como Dia Nacional da Família.
Segundo o relator do projeto na mensagem enviada aos integrantes do Movimento “Por todas as famílias”, outros arranjos familiares não serão desamparados, porém, não vão ser objeto de políticas especiais. Mas por que então dar vantagem a um tipo de família que já é majoritária?
“Se esta família base já está protegida na Constituição, para que o Estatuto? Se o STF reconheceu, baseado na constituição, que a família formada por um homem e uma mulher é apenas um entre tantos modos de configurar uma família, porque só essa forma de família merece estatuto?”, questiona Benedito Medrado, professor do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPe) e integrante do Movimento “Por todas as famílias”.
Bernardo Campinho chama a atenção para como o Estatuto reintroduz uma ideia tradicional de família, que acaba por vedar o acesso universal a direitos sociais que está no espírito da Constituição Cidadã de 1988. “Na Constituição Federal há vários direitos individuais e sociais que pressupõem a instituição familiar como mediadora do exercício destes direitos em relação ao Estado e à comunidade. Ela estabelece, entre outras coisas, que a pequena propriedade rural trabalhada pela família não pode ser objeto de penhora (art. 5o, XXVI); que o preso tem direito à assistência da família (art. 5o, inciso LXIII); o usucapião de área urbana se utilizada para moradia própria ou da família; a proteção à família como princípio da assistência social (art. 203); a assistência à família na pessoa de cada um de seus membros e proteção contra a violência doméstica intrafamiliar (art; 226, parágrafo 8º). Diante disso, definir o que é considerado família é central para acessar e usufruir direitos, ou exigir a concretização de deveres de proteção do Estado. Se você diz que uma determinada comunidade não é família, você a exclui do âmbito de incidência destes direitos e de certas posições jurídicas”, afirmou o advogado Bernardo Campinho no debate ocorrido na UERJ no último dia 30 de setembro.
O antropólogo Sérgio Carrara (CLAM/IMS) especula sobre o que poderá acontecer diante da lógica de privilégios que o Estatuto pretende instaurar: “Frente à desavença conjugal envolvendo, de um lado, membros de um casal heterossexual e, de outro, membros de um casal de pessoas de mesmo sexo, os primeiros terão atendimento prioritário nos serviços públicos? Se um filho de um casal heterossexual estiver atrás de um filho adotado por um casal de pessoas de mesmo sexo em uma fila de doação de órgãos, ele poderá fazer jus a atendimento prioritário por ser membro de uma ‘família base’, em detrimento do outro, que é membro apenas de um ‘arranjo vital’, expressão que o Deputado Diego Garcia utiliza para se referir a todos os outros arranjos familiares? Haverá privilégios na hora de garantir uma vaga na escola, por exemplo?”, questiona.
O Estatuto da Família não ameaça somente os direitos de pessoas LGBT, mas também das mulheres. O artigo 3º do Estatuto da Família diz que “é dever do Estado, da sociedade e do Poder Público assegurar à família a efetivação do direito à vida desde a concepção”. A inclusão do “direito à vida desde a concepção” constitui uma ameaça ao direito ao aborto nas três circunstâncias em que é legal, ou seja, nos casos de estupro, anencefalia e risco de morte da mulher. A premissa do direito à vida desde a concepção não foi incluída no texto constitucional graças à atuação do Movimento de Mulheres na Constituinte de 1988. De lá para cá, conforme lembrou a pesquisadora Sonia Correa (ABIA/SPW) durante o Encontro na UERJ, a questão do aborto obteve ganhos – como a edição da Norma Técnica sobre o Aborto do Ministério da Saúde, assinada em 1998 (que instrui os hospitais do Sistema Único de Saúde (SUS) a realizar a prática nos casos previstos em lei), a formação em 2005 da Comissão Tripartite para a formulação das diretrizes do aborto legal no Brasil, e a decisão do Supremo Tribunal sobre a interrupção legal da gravidez em caso de anencefalia.
“Mas a questão também tem sido alvo de propostas regressivas no Congresso Nacional, como o Estatuto do Nascituro de 2010 – que outorga ao embrião o status de pessoa – e outras propostas de inscrever na Constituição o direito à vida desde a concepção. E como o texto do Estatuto da Família inclui essa premissa, é importante vincular o aborto à discussão sobre este projeto”, assinalou Sonia Correa.
Apesar de propostas restritivas como o PL 6583/13, a Constituição de 1988 e desdobramentos posteriores passaram a garantir conquistas sociais e consagraram valores impossíveis de serem ignorados. A “família” da ordem jurídica contemporânea é alinhada à garantia de uma série de direitos inálienáveis dos indivíduos e dos coletivos sociais, que não podem proteger uns em detrimento de outros.