Michelle Agnoletti*
Em julho de 2015 assistimos no plano global um debate virulento sobre prostituição. Ele foi suscitado pela campanha (aqui em inglês) lançada por organizações que propõem abolição da prostituição para erradicação do tráfico de pessoas contra uma nova política, anunciada pela Anistia Internacional, de apoio aos direitos das pessoas envolvidas com trabalho sexual (em inglês). Em resposta, as organizações e redes de profissionais do sexo de várias regiões do mundo e seu aliados e parceiros também levantaram suas vozes para defender a política anunciada pela Anistia, lembrar uma vez mais que os direitos das pessoas envolvidas em trabalho sexual são direitos humanos e argumentando em favor da descriminalização da prostituição.
Significativamente, nesse mesmo mês, ocorreram no Brasil dois episódios de caráter criminal/policial – que tiveram pouca visibilidade na imprensa nacional e nenhum impacto na imprensa internacional – mas que ilustram de maneira contundente os efeitos da criminalização e não-regulamentação de atividades relacionadas ao sexo comercial e da constante sobreposição ideológica e simplista entre prostituição e tráfico. Os dois casos são exemplares no sentido de demonstrar que estão corretas as vozes que hoje apelam à Anistia Internacional para que dê continuidade à política anunciada de apoio aos direitos humanos de pessoas envolvidas com o mercado do sexo.
Na madrugada do dia 15 de julho de 2015, Patrícia Regina Nunes, Antônia Francisca Bezerra Vicente, Maria da Conceição Pedrosa, Maria Daiane Batista, Cássia Rayane Santiago Silva foram assassinadas de forma brutal em uma chacina ocorrida no prostíbulo em que trabalhavam em Itajá, pequeno município localizado a 200 Km da capital do Estado do Rio Grande do Norte. Horas mais tarde, e a milhares de quilômetros dali, em Boa Vista, a Polícia Federal deflagrou mais uma de suas espetaculares operações, voltada para desarticulação de um esquema de tráfico internacional de pessoas para exploração sexual em casas de shows da capital roraimense. Das mulheres “resgatadas”, só se sabe a profissão e as nacionalidades – são prostitutas venezuelanas e guianenses. Seus nomes permanecem ocultos pelo sigilo do inquérito e da ação penal. Além da triste coincidência de terem ocorrido no mesmo dia, esses dois episódios têm outro elo de conexão: ambos iluminam as razões pelas quais é hoje urgente regulamentar a prostituição no país.
Em Itajá, o crime foi executado por quatro homens encapuzados, dos quais dois estão presos. O motivo teria sido desentendimento entre uma das mulheres assassinadas, que era gerente do bordel, e o mentor do crime (um dos que foram presos), sobre divisão e repasse do lucro dos programas e da venda de produtos por ele fornecidos às prostitutas, como bebidas, cigarro e drogas. A regulamentação da prostituição traria mais clareza aos acordos financeiros firmados, coibição do uso da violência por parte de clientes ou administradores do negócio, fiscalização de atividades ilícitas, como ingresso e permanência de crianças e adolescentes no ambiente e/ou na atividade, mais segurança e transparência nas relações estabelecidas entre prostitutas e proprietários do estabelecimento / empregadores, controle das condições de exercício do trabalho, como duração da jornada, higiene do local, disponibilidade de preservativos, de medicamentos. Tais medidas poderiam, possivelmente, ter evitado essa e outras tragédias.
Em Boa Vista, uma denúncia anônima e dois meses de investigação foram suficientes para que vinte pessoas fossem conduzidas coercitivamente para prestarem depoimento na Superintendência Regional da Polícia Federal em Roraima. Entre elas 16 eram as supostas vítimas, mulheres que haviam vindo da Guiana e da Venezuela para exercerem a prostituição no Brasil. A delegada responsável pela condução do inquérito policial destacou, durante a coletiva de imprensa, que essas mulheres vieram ao Brasil por conta própria, e que se tinha comprovado haver exploração sexual nos cinco estabelecimentos averiguados. Porém, ela também afirmou que não se constatou coação e cárcere privado, mas apenas a precariedade e a insalubridade dos locais. Suas declarações contrastam com a nota publicada pela Comunicação Social da Polícia Federal, que, sobre o nome atribuído à operação – “La Sombra” – justifica que “remete a forma obscura com que o crime de tráfico de pessoas é praticado. As tratativas são realizadas às escuras com falsas promessas de uma vida de luxo e ostentação, quando na realidade as mulheres aliciadas se tornam vítimas de violência, maus tratos e abusos de toda ordem e na maioria da vezes elas não tem a quem recorrer e sofrem caladas na escuridão de um quarto onde são exploradas.” 1
Nesse caso, muito claramente, havia o exercício da prostituição, – muitas vezes propositalmente confundida com exploração sexual – mas, não existindo qualquer restrição à liberdade de locomoção dessas mulheres, supõe-se que não havia violência, fraude, engano, coação, nem qualquer outro vício que pudesse anular consentimento. Podemos imaginar que se houvesse, elas não necessitariam serem levadas de forma forçada para prestarem depoimento, mas espontaneamente procurariam por ajuda. Ninguém foi preso, mas, dentre as prostitutas, três estavam de forma irregular no país e as outras, com visto de turista, os quais foram anulados, tendo sido elas notificadas a deixarem o país, o que, se não for feito de forma voluntária, enseja a deportação.
Ora, a ação policial foi mobilizada sendo de combate ao tráfico de pessoas e as políticas nacionais nesse âmbito são guiadas pelo Protocolo de Palermo, normativa internacional que orienta a disciplina da matéria. O Protocolo condena a deportação de pessoa traficadas, quando elas colaboram com a polícia, caso em que devem ser tratadas como vítimas; caso contrário, podem ser consideradas cúmplices ou acometidas de distúrbios psicológicos derivados dos maus-tratos supostamente sofridos. Ou seja, a ação policial de Roraima uma vez mais desconsiderou a autonomia das mulheres profissionais do sexo fazendo delas meras alegorias num tipo procedimento que muitas vezes premia os servidores envolvidos, inclusive com remoção para localidades onde o trabalho é menos penoso do que nas fronteiras.
Em ambos, os principais sujeitos, as próprias mulheres mortas ou presas, foram silenciadas. Uma das organizações de defesa dos direitos das mulheres mais importantes do Brasil emitiu uma nota sobre os crimes de Itajá, interpretando-os como ápice da violência a que essas mulheres estão submetidas, pois na visão dessa organização “a prostituição é parte constitutiva desse sistema capitalista patriarcal e se configura como uma das principais formas de opressão das mulheres pela manutenção da supremacia masculina, na qual o corpo e a vida das mulheres são tratados como mercadorias”.2 Ao sobrepor a violência de gênero, o feminicídio e a prostituição, a nota, tipicamente, desconsidera que a opção das mulheres pelo sexo comercial como profissão pode ser voluntária e consciente.
Vale lembrar que, no Brasil, a prostituição não é crime. Nosso Código Penal, de 1940, apenas tipifica as condutas vinculadas à exploração da prostituição ou de qualquer forma patrocinar seu exercício. O patente anacronismo da redação original de diversos dispositivos ligados ao comércio sexual não foi superado por recentes revisões da lei.
Uma tentativa frustrada de definição de exploração sexual, presente no art. 234-B inserido pela Lei nº 12.015/2009, foi objeto de veto, já que definia como tal todos os crimes contra a dignidade sexual – o que envolve desde estupro (art. 213) até outros nos quais a exploração é elemento da própria caracterização do delito, como o favorecimento da prostituição ou outra forma de exploração sexual (art. 228), por exemplo.
Ora, onde tudo é exploração, a violência se banaliza. Por outro lado, sem uma definição clara, opiniões tendem a assumir um tom que oscila de maneira maniqueísta entre a vilanização e a vitimização das mulheres prostitutas, sempre mobilizadas por uma espécie de compulsão ou histeria coletiva em torno de assuntos que envolvam sexualidades que diferem da norma. Caso regulamentada, a prostituição estará sujeita às exigências da lei penal, não mais ao sabor das circunstâncias, mas sim dentro dos parâmetros da legalidade.
A prostituição é um trabalho, que deve ser exercido de maneira livre, com condições dignas, e que merece prevenção contra os riscos nele envolvidos, como violência, maus-tratos, marginalização, gravidez indesejada, doenças, abuso de drogas, etc. Essa atividade laboral, como outra qualquer, precisa de regulamentação para resguardar pessoas cujo engajamento se traduz como legítimo exercício de liberdade profissional e sexual. Urge estabelecer uma distinção conceitual clara entre prostituição e tráfico, este caracterizado por elementos como coação, fraude, engano, abuso de autoridade, não necessariamente presentes no comércio de serviços sexuais por parte de pessoas adultas e capazes de validamente expressarem consentimento. A pergunta que precisa ser respondida é: como pode a negação dos direitos das pessoas envolvidas como trabalho sexual garantir a proteção de suas vidas?
* Michelle Agnoletti é advogada e socióloga.
1 http://www.dpf.gov.br/agencia/noticias/2015/07/pf-combate-o-trafico-internacional-de-mulheres-em-roraima
2 http://www.marchamundialdasmulheres.org.br/marcha-mundial-das-mulheres-do-rn-emite-nota-sobre-a-execucao-de-cinco-mulheres-no-municipio-de-itaja/