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Mulher Aborteira

Débora Diniz – antropóloga, professora da UnB e pesquisadora do Anis – Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero

 

Uma em cada cinco mulheres realizou, pelo menos, um aborto aos 40 anos. Esse foi o principal resultado da PNA – Pesquisa Nacional de Aborto, um estudo com amostra populacional domiciliar, cuja coleta das respostas foi por técnica de urna. Não sabemos quantas mulheres abortam a cada ano no país, mas sabemos em uma fotografia do hoje que, entre 18 e 39 anos, 7 milhões e 400 mil mulheres já abortaram.

Quem são elas?

As mulheres comuns – com filhos, jovens (entre 22 e 29 anos), com religião e companheiro. Falarei adiante das adolescentes e das prostitutas – os dois espectros de mulheres que alimentam a fantasia daqueles contrários à legalização do aborto, pois a imagem da mulher que aborta para os que defendem a vida do embrião não é a da mulher comum, mas a da outra: a adolescente ou a puta. Falamos da mulher vulgar que aborta – puta ou adolescente, ou as duas numa só, puta adolescente – mas pouco as conhecemos pelos estudos. A mulher de nossas pesquisas de prancheta, à beira do leito ou por gravadores, é a mulher comum.

Falar do aborto no Brasil é falar de necessidades de saúde da mulher comum. Isso deveria deixar o assunto ainda simples – não são práticas sexuais de um grupo de risco, como gosta a terminologia epidemiológica, mas da sexualidade das mulheres que grita o aborto. Para enfrentar a moral hegemônica contrária ao aborto, ora falamos que o aborto é uma questão de saúde pública, ora arriscamos descrevê-lo como uma questão de direitos humanos das mulheres. A verdade é que as consequências da criminalização do aborto, a clandestinidade da prática, faz do aborto uma calamidade de saúde pública no Brasil: 50% das mulheres que abortam o finalizam em hospitais públicos, algumas morrem, muitas sangram. Mas para ignorar que seja uma necessidade de saúde da mulher comum, portanto, típica à vida reprodutiva das mulheres, é preciso espetacularizar o debate político por espectros da mulher comum: é uma mulher inconsequente, irresponsável, de sexualidade frívola, cujas duas representantes são a puta e a adolescente. Do outro lado da frivolidade das mulheres, está o embrião, já representado pela imagem de um recém-nascido. Os termos finais são uma mulher inconsequente cometendo um infanticídio.

A mulher comum, a puta e a adolescente abortam de maneira semelhante: usam comprimidos, isolados ou combinados a chás, ervas ou garrafadas. Aprendem com outras mulheres onde comprar os comprimidos, que deve ser usado sempre à noite, em casa, em silêncio e sozinha, em qual momento se expulsa a bola de sangue e, portanto, deve-se buscar o serviço de saúde. Aprende a regra do silêncio, a desconfiar de quem deveria protegê-la, os seres de jaleco branco na porta dos hospitais. Os comprimidos recebem o nome genérico de citotec, são usados em combinação com aspirina, novalgina, sonrisal.

As doses variam, e não sabemos porque variam tanto: ou sub-doses intencionais para finalizar o aborto em hospital, ou sub-doses por acesso aos comprimidos. As mulheres compram sem saber a procedência ou composição do medicamento – o vendedor, em geral, homem, lhe assegura ser o citotec; junto aos comprimidos avulsos, bilhetes indicam como utilizá-lo: um aplicador de creme vaginal, pernas para cima, anti-inflamatórios profiláticos. O vendedor é um tipo da comunidade, um balconista de farmácia, sujeito especializado em medicamentos de gênero – como emagrecer, como engordar, como resolver problemas sexuais. No cardápio, está o aborto, mas sem qualquer particularidade de especialidade para o vendedor, só um comércio lucrativo, os preços variam de 10 a 50 reais o comprimido. Com variações regionais e de classe, esse é o itinerário das mulheres. Algumas agregam água inglesa nos dias subsequentes, outras indicam uma ultrassonografia antes e depois do aborto, outras uma dieta de comida pouca remosa.

As casas de aborteiras com sondas e bacias imundas saíram de cena. Ainda existem, mas não é delas que a mulher comum depende para o aborto proibido. As clínicas clandestinas ainda existem, 50% das mulheres não usaram remédio para abortar, especialmente as mais velhas. Como pesquisadoras não sabemos quase nada do universo oculto das clínicas, quem nos conta o que ali se passa são as jornalistas, a polícia, ou o escândalo de mulheres mortas e queimadas. Quanto mais jovem a mulher, citotec é o método mais comum e único. Teresina é a capital mais pobre do país, ali acompanhamos durante seis meses as adolescentes que chegaram por aborto clandestino. Foram 131 adolescentes que esperaram a curetagem uterina, entrevistamos 30 delas – 28 fez uso de citotec sozinho, duas combinado com chás e ervas. Elas tinham entre 10 e 19 anos, uma em cada quatro já estava na segunda gravidez, quase a metade delas só tinha ensino fundamental. Como a mulher comum, só mais jovem que o perfil nacional, a adolescente de Teresina que abortou era negra, pouco escolarizada, e 80% delas abortaram antes da 12ª semana de gestação.

As prostitutas também foram de Teresina. Entrevistamos 310 mulheres, entre 18 e 39 anos, quanto mais jovem, mais comum o uso do citotec (70%), as mais velhas ainda conheceram sonda e chá de boldo com métodos únicos ou combinados. Metade delas realizou um único aborto, 16% delas três ou mais, metade de todas elas ficou internada para finalizar o aborto. Em pior situação que a mulher comum e mesmo que as adolescentes, as prostitutas são mais jovens, menos escolarizadas (80% com ensino fundamental), ganhavam por programa entre 10 e 50 reais. Uma em cada cinco delas tinha a praça como local de trabalho, e a quase totalidade é desconhecida pela seguridade social brasileira.

A mulher comum, a adolescente e a prostituta de Teresina são todas mulheres comuns. Fiz uma falsa classificação somente para provocar o absurdo de nossos regimes de julgamento moral sobre sexualidade, reprodução e escolhas reprodutivas. O aborto fala da mulher comum, marcadores sociais de desigualdade, como a juventude, a região, a classe e a cor, agudizam a precariedade prévia e compartilhada por todas as mulheres que sobrevivem em uma ordem patriarcal que criminaliza o aborto. É a lei penal que mata, interna e sangra as mulheres.

Mulher Vítima

Esse é o cenário da mulher comum: aborto é um evento típico, citotec, o principal método, a internação, um desfecho ordinário. Mas esse é o itinerário da mulher clandestina, aquela que silencia ao chegar frente aos guardiões da lei penal. O aborto foi de um susto, uma perda espontânea, uma surpresa descobrir-se grávida; com raras exceções, as mulheres não confessam o aborto clandestino aos médicos e enfermeiras. Para que uma mulher atravesse as portas de um hospital e anuncie o aborto como uma necessidade de saúde, é preciso que não seja uma clandestina, mas uma vítima. Uma vítima do acaso (risco de morte e anencefalia) ou do patriarcado (estupro). A lei penal só reconhece as necessidades de saúde da mulher vítima, aquela estuprada, grávida de um feto com anencefalia ou quase morrendo.

A moral do aborto se mantém a mesma, é o lugar da mulher que se transforma. A adolescente ou a puta dão lugar à vítima. Mas ao contrário do que anuncia a política pública brasileira, não “basta a palavra da mulher”. Assim como há o espectro da mulher aborteira, há o espectro da vítima nos serviços de aborto legal. Para ser vítima, a mulher precisa ter cicatrizes da violência, ter marcas do trauma, dar sinais da rejeição ao corpo, os serviços de aborto legal ainda resistem a cumprir as normas técnicas do Ministério da Saúde e insistem em procedimentos periciais: boletim de ocorrência, comissão de ética ou cortes judiciais. Ela precisa ser aprovada nos testes de verdade: data da última menstruação, detalhes da cena de violência, o que os serviços classificam como “nexo causal” entre o estupro e a exceção ao aborto. O corpo, esse território ambíguo a ser controlado e protegido pelos serviços de aborto legal, é a geografia da inspeção – ou como sustentamos em artigo recente, de práticas periciais sobre a verdade da vítima.
Não há consolo para as mulheres quando o assunto é aborto. E agora não falo mais das adolescentes e das putas de Teresina, mas das mulheres vítimas de estupro de cinco capitais do país, cujos serviços juntos atendem quase a totalidade dos abortos legais do país. A polícia saiu de cena como poder legitimado para investigar o corpo da mulher

para que tenha acesso ao aborto, mas em seu lugar os profissionais de saúde assumiram o poder da investigação. Não há presunção de veracidade na palavra da mulher – é preciso que ela se confesse diante dos guardiões da lei penal, pois somente diante de uma confissão veraz deixará de ser aborteira para ser uma vítima.

Uma mulher ao chegar aos serviços de aborto legal deve lidar com a presunção da mentira. Essa inversão do lugar não se dá por uma intencionalidade perversa dos profissionais, ao contrário, pois são médicos, enfermeiros, psicólogos e assistentes sociais sensíveis ao sofrimento da mulher. No entanto, mulheres e profissionais sobrevivem sob a doutrina da excepcionalidade do aborto: o aborto é um crime, e somente quando a mulher for vítima do acaso ou da violência masculina poderá ela ser protegida em suas necessidades. O aborto não muda de status moral, a mulher que se transforma aos olhos de quem a julga – da adolescente ou puta para a mulher vítima. Nesse jogo entre afastamento e compaixão, os direitos são ignorados. A mulher comum – aquela uma em cada cinco que abortou – é ignorada, mas em nome de quê? De uma ordem patriarcal que faz uso de um de seus dispositivos mais poderosos para imposição da regra – o direito penal.



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