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A subalterna é uma mulher: #partiu feminismo século XXI

Por Carla Rodrigues

A obra do filósofo Jacques Derrida interessou à teoria feminista por muitas razões, uma delas foi a ligação que ele fez entre dois termos: falocentrismo, centramento no masculino, e logocentrismo, o centramento no logos, na razão, no sentido, forjando assim o neologismo falo-logocentrismo para indicar que todo discurso de poder é um discurso falogocêntrico do homem, branco, europeu, heterossexual, carnívoro, e senhor de sua própria razão, que tem o poder de dizer o que é o mundo. Ficam de fora mulheres, negros, crianças, animais, orientais, e todos aqueles que são subalternizados na categoria de “outro”. Essa é uma das explicações para que as mulheres, sendo metade da humanidade, ou os negros, sendo mais da metade da população brasileira, sejam tratadas como “minorias”.

Em maio de 1968, na abertura de um colóquio na França, Derrida começou dizendo que “todo e qualquer colóquio filosófico tem necessariamente uma significação política”. A mim parece que no Brasil de 2015, todo e qualquer encontro em torno do tema do feminismo carrega uma significação política que vai além das pautas específicas das reivindicações das mulheres, como direito ao aborto ou salários iguais. A mim parece necessário, e eu diria mesmo urgente, que todo e qualquer seminário como esse, cuja pauta gira em torno do feminismo, tenha necessariamente uma significação e um desdobramento político.

O que me trouxe até aqui foi um diálogo feminista com a filósofa Marcia Tiburi. Nossa conversa começou em torno do verbo partir, que carrega uma impressionante polissemia na língua portuguesa. A partir dele, posso falar em início, ou naquele que partiu, porque foi embora ou porque dividiu algo, e também naquilo que se desfaz em múltiplos pedaços, se quebra ou se desfaz em inúmeras partes. Aquilo que está partido está também fragmentado. No entanto, o dicionário ensina que o termo partido equivale ainda a: “organização social espontânea que se fundamenta numa concepção política ou em interesses políticos e sociais comuns e que se propõe alcançar o poder, associação de pessoas em torno dos mesmos ideais, interesses, objetivos”.

Escolhemos candidatos de determinados partidos – palavra que está longe de poder designar união, estabilidade, comunidade, por tudo que nela contém de quebra, divisão, ruptura, estilhaçamento – como se os partidos nos garantissem unidade em um programa de governo ou em um projeto de país. Votar com essa expectativa é continuar votando a partir de uma formulação anacrônica de democracia.

Há no Brasil de hoje uma democracia de fato, mas de baixo teor democrático, que mantém a ideia de que povo é aquele que vota no representante de um partido cuja capacidade de governar em nome dos que o elegeram deve se manter inquestionável, em nome da sobrevivência da democracia. A democracia representativa, no entanto, depende de uma forma de representação que está em crise, cuja história gira em torno da impossibilidade de representação de um objeto ao sujeito, do mundo a um eu, de um uma realidade a um conceito; crise que tem nos obrigado a pensar novas formas de fazer política e de pensar o mundo. Não apenas pela necessidade de crítica à forma partido, como a um de seus objetivos inerentes ao seu formato unificado: tomar o poder e, uma vez ali, reproduzir os mesmos mecanismos de exclusão que se pretendia combater.

O filósofo Jacques Rancière faz uma crítica importante quando diz que toda democracia representativa é hoje uma forma disfarçada de oligarquia, que se mantém no poder em nome da defesa dos seus próprios interesses. Nesse sentido, a filosofia de Derrida e a sua formulação de democracia porvir me ajuda a pensar sobre a forma partido, recusada por ele em prol de tomadas de posições políticas sobre inúmeros temas contemporâneos. Quem diz posições, diz contingência, evoca palavras como acidental, fortuito, aleatório, imprevisível, indeterminado. São formas que não cabem em partidos políticos cujas premissas devem estar previamente estabelecidas em plataformas fechadas. A forma partida nos mostra partidos incapazes de nos representar, é porque talvez a política feita a partir dos partidos primeiro exija uma totalização a partir da qual a política passa a ser feita por lideranças partidárias, instâncias de representação de um conjunto que foi forjado a fim de criar a liderança. E, como disse um manifestante na Praça Tahrir, no Egito: “Não estamos procurando um líder que nos governe, mas uma consciência”.

Propostas de democracia direta, movimentos políticos, formação de conselhos populares, reconhecimento de um parlamento pautado principalmente pelos seus próprios interesses são só alguns dos sinais – não exclusivos da política brasileira – de que partir, quebrar, fragmentar, fraturar caminham ao lado de designações como dar início, começar, lançar-se, pôr-se a caminho de um certo destino ainda desconhecido.

Venho pensando na crise da representação ao longo de toda a minha trajetória filosófica, movida por uma mesma questão: como transformar a democracia formal em democracia de fato? Resumo o debate a este ponto para retomar um argumento feminista clássico. Nunca houve um regime que pudesse se auto-denominar democracia antes que as mulheres tivessem direito ao voto. É uma reivindicação lógica: se as mulheres são metade da humanidade, nenhum regime representativo consegue fazer justiça a essa denominação se as mulheres não tiverem participado da escolha. Se retomar o argumento de Rancière, posso dizer que as oligarquias são sempre masculinas.

Historicamente, mulheres foram subrepresentadas na estrutura democrática, uma espécie de deficiência originária na história da democracia desde a Grécia antiga. Criar um partido feminista, portanto, poderia ser uma estratégia política decisiva para suprir esse diferença. A conquista pelas mulheres do direito ao voto é resultado de inúmeras lutas. De batalha em batalha, desempenhamos importante papel no processo de aprimoramento do sistema representativo. Somos hoje muito poderosas, mas somos minoria na esfera política, o que importa muito se tomarmos aqui uma diferença entre poder como capacidade de realizar e política como capacidade de decidir o que realizar.

Estas questões estão em debate na proposta da partidA, numa referência explícita ao gênero feminino – A – e num deslocamento da letra maiúscula para o final, porque se A indica força, que esta força esteja no gênero feminino que a palavra assim grafada apresenta. A partidA carrega a ideia de iniciar, mover, movimentar, daí a gíria que Marcia Tiburi recupera: #partiu e que por isso faz parte do meu título. partidA me parece indicar duas transformações necessárias na forma de fazer política representativa, capazes de responder a pelo menos duas críticas. A primeira crítica: um dos problemas dos partidos representativos tem a ver com a exigência de uma univocidade interna, de uma coerência que estabilize diferenças, e portanto acabe, contraditoriamente, impondo uma forma única para aquilo que só tem potência política se for disforme, plural, equivocado. A segunda crítica: um partido político corre o risco de manter-se no poder não em função daqueles que o elegeram, mas apenas em função de seus próprios interesses de se manter no poder, o que se pode ver à esquerda ou à direita.

As diversas ondas do feminismo são marcadas por fatos históricos, mas não acho que seja necessário aqui relembrá-los. Gostaria de pensar para além, pensar se somos capazes de imaginar qual seria o fato histórico com o qual as feministas do futuro irão identificar isso que estamos tentando fazer hoje. Para pensar sobre isso, gostaria de retomar um dos debates propostos pela filósofa Judith Butler, que há 25 anos questionou a possibilidade de não mais fazer das mulheres o motor da política feminista. Se a partir dali parecia que ela anunciara o fim do feminismo, de fato suas provocações estavam apontando um paradoxo importante: de nada adiantava primeiro exigir das mulheres uma configuração estabilizada em uma identidade para depois pretender libertá-las. Era preciso, argumentava Butler, interrogar as próprias exigências de identidade. Tratava-se de poder pensar um feminismo que não seja feito em função de representar o “sujeito mulher”, o que exige uma identidade prévia do referente mulher a ser representado e, contraditoriamente, obriga a um fechamento no lugar onde se quer reivindicar abertura.

Somos muito diferentes entre nós para sermos reduzidas à categoria mulher. E ao mesmo tempo estamos, nessa categoria, reduzidas ao lugar de subalternidade. É um problema político estabelecer os termos contra os quais se vai lutar contra a hierarquia de gênero, que é também uma hierarquia de raça e de classe. Por isso, com Butler talvez se possa pensar em fazer política em direção a um referente vazio de conteúdo, capaz de representar não um grupo previamente restrito a certas características identitárias, mas a todas as singularidades (o que, a rigor, redunda numa outra forma de universalidade, não mais totalizante ou unificadora).Butler estava nos provocando a pensar sobre como fazer um feminismo que não tivesse apenas as mulheres como sujeito da emancipação, ao mesmo tempo desconstruindo a categoria mulher e ampliando a política feminista para toda forma de subalternidade e propondo pensar que fazer política é tomar como político os próprios termos em que se estabelece o que é objeto da política.

O que estou tentando pensar, a partir da leitura que faço da Butler, é se a luta contra a subalternidade pode ser o objeto de uma política feminista hoje, uma bandeira que conseguiria reunir mulheres diante da constatação de que a subalternidade é feminina. Num texto clássico dos estudos subalternos, a feminista indiana Gaiatri Spikav pergunta: “pode o subalterno falar?” Sua resposta – não – é um perfomativo, porque dizer não já é dizer algo. É sobre essa subalternidade, alega Spivak, que nenhuma estrutura de representação pode dar conta (muito menos a representação partidária). No contexto da produção colonial, o sujeito subalterno não tem história, não pode falar, e é irremediavelmente heterogêneo. Nesse contexto, o sujeito subalterno feminino é ainda mais profundamente ignorado, invisível, silenciado. No contexto brasileiro, o sujeito subalterno feminino negro, a mulher negra, é ainda mais profundamente ignorada, invisível, silenciada e explorada. É um gesto político fundamental reconhecer que a subalternidade da mulher negra e pobre é diferente da subalternidade da mulher branca, e talvez em torno da subalternidade como denominador comum se possa encontrar aquilo que Butler chama de “fundamentos contingentes” para arregimentar partidas feministas em torno e contra a subalternidade feminina.

Quero dizer arregimentar para não dizer representar, por que entendo que a crise da representação é a nossa maior e mais importante crise política, e é com ela e a partir dela que podemos trazer algo de novo. Não se trata mais de feministas intelectuais representando ativistas, de mulheres brancas falando em nome de mulheres negras, de mulheres urbanas representando mulheres rurais, de mulheres burguesas falando por mulheres proletárias. Trata-se de, tomando o contundente não, o subalterno não pode falar, de Spivak, mesmo assim ter voz. Não uma voz única em nome da mulher, mas milhares de vozes ensurdecedoras e insurgentes. Vozes que emergem da subalternidade para denunciar a subalternidade.

Para falar da subalternidade feminina, vou tomar um exemplo da revolta dos curdos que aprendi lendo a dissertação de mestrado de Fabian Cantieri, orientada pela professora Carla Francalanci. Os curdos são um grupo étnico em torno de 30 milhões de pessoas que, após a Primeira Guerra Mundial, perderam suas demarcações territoriais e se separaram em quatro países: Turquia, Síria, Irã e Iraque. Em cada um destes Estados, sob diferentes condições, os curdos enfrentaram opressão. Nos anos 70, enquanto os olhos do ocidente se voltavam para as revoltas em Paris, havia no oriente um efervescente movimento marxismo leninista e maoísta radical, e das universidades e prisões surge o Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK). Öcalan era o mais importante representante deste partido e pretendia conquistar a independência curda através da revolução. Para isso, manteve uma guerrilha intensa contra o estado turco ao longo dos anos 80 e 90. Conforme a guerrilha cresceu, o papel da mulher, que sempre havia sido um modelo de determinação, independência e igualdade diante das armas, começou a ser contestado, quando muitos homens da zona rural aderiram ao movimento, recusando-se a reconhecer as guerrilheiras mulheres como iguais. Nos anos 1990, enquanto o partido sofria imensas crises devido aos intensos ataques turcos, um movimento autônomo feminista começava a contestar seu papel subalterno na hierarquia patriarcal do partido – lutar contra a opressão deveria começar internamente. Öcalan foi preso em 1999 e depois disso, com a força exercida pelo movimento autônomo feminino, ele reformulou suas ideias sobre o papel das mulheres. Eu gostaria de citar aqui um trecho da sua mea-culpa, porque me parece adequada a muitas das situações políticas que enfrentamos hoje:

O monopólio do homem vem sendo mantido sobre a vida e o mundo da mulher por toda a história, não é como o monopólio em cadeia do capital sobre a sociedade. Mais importante, é o mais velho e poderoso monopólio. Nós poderemos tirar conclusões mais realistas se avaliarmos a existência da mulher como o mais velho fenômeno colonial. Pode ser mais preciso chamar a mulher de o mais velho povo colonizado que jamais virou uma nação. A família, nesse contexto social, desenvolveu-se como o pequeno Estado do homem. A família como instituição tem sido continuamente aperfeiçoada por toda a história da civilização, somente por causa do reforço que fornece ao poder e ao aparato estatal.

A partir daí, houve uma mudança drástica no movimento, que teve com consequências a Revolução Rojava, primeiro e mais promissor embrião da primavera árabe. O que o exemplo dos curdos pode nos fazer pensar? E como esse exemplo se articula com a crise da representação e a formação de partidos políticos?

Em primeiro lugar, me parece que posso retornar a Butler para pensar com ela sobre as estruturas que criamos para nos libertar – a guerrilha, um partido político, um movimento feminista – e que pode reproduzir internamente os mesmos mecanismos de dominação dos quais gostaríamos de nos emancipar. Em parte, o que aconteceu com as mulheres curdas é o que acontece com todas nós, mulheres, o tempo todo: somos relegadas a um lugar de subalternidade diante dos homens. Neste ponto, eu gostaria de citar uma feminista francesa, a Monique Wittig, cujo radicalismo nos anos 1970 ainda é atual: “Como não existem escravos sem amos, não existem mulheres sem homens. […] É a opressão que cria o sexo, e não o contrário”.

O problema é que nós, mulheres, também podemos incorrer no equívoco político de produzir novas subalternidades em relação a nós. Hierarquias entre intelectuais e ativistas, entre brancas e negras, entre hetero e homossexuais, cis e trans, por exemplo, são facilmente percebidas no interior do movimento de mulheres.

Ao mesmo tempo, pensar a subalternidade como fundamento contingente pode ser tentar colocar em prática novas formas de fazer política, nas quais não se precise ou procure um denominador comum unificador, mas se encontre pontos de contato em tornos dos quais alianças podem frutificar. Pontos de contato que não exijam configurações únicas, mas partidas. Talvez essas possam vir a ser as nossas heranças, talvez não. É nesse talvez que está a nossa possibilidade de provocar alguma mudança, pensando sobre as estruturas falogocêntricas de poder e buscando formas políticas de parti-las.

Fonte: http://carlarodrigues.uol.com.br/index.php/2991



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