Discurso oficial sobre “turismo sexual” revela conservadorismo e risco às condições de trabalho das prostitutas brasileiras
Na semana anterior ao carnaval, a marca de produtos esportivos Adidas lançou uma linha de camisetas para a Copa do Mundo, que acontece no Brasil, em junho e julho deste ano. Duas camisetas tinham texto e imagem de teor considerado sexista. Um dos modelos trazia uma mulher de biquíni com os dizeres “looking to score”, que significa “em busca de gols”, mas que também pode ter o sentido de “em busca de garotas”; outro modelo traz a frase “I love Brazil”, na qual a palavra “love” é representada por uma nádega.
O anúncio das camisetas provocou a reação da presidente Dilma Rousseff que afirmou em sua conta no Twitter: “o país está feliz em receber turistas que chegarão para a Copa, mas também está pronto para combater o turismo sexual”. Da mesma forma, o presidente da Embratur, Flávio Dino, afirmou que o Brasil não aceitará “que a Copa seja usada para práticas ilegais, como o chamado turismo sexual”. Na semana do 8 de março, a ministra da Secretaria de Políticas para as Mulheres, Eleonora Menicucci, reiterou a posição da presidente dizendo que os turistas são bem vindos mas que “não vamos tolerar o turismo sexual”. Mesmo antes da recente declaração da ministra, a ADIDAS já havia retirado as camisetas do mercado.
Essas reações e declarações oficiais foram, contudo, objeto de crítica por parte de ativistas e pesquisadores/as envolvidos/as com a defesa dos direitos de profissionais do sexo. Manifestaram-se a ONG Davida, criada por Gabriela Leite, e a cineasta e colaboradora da ABIA e também da Davida Laurra Murray. A fala do presidente da Embratur foi especialmente criticada porque na lei brasileira “turismo sexual” não é crime. Mas, essas vozes críticas consideram que o conjunto desses discursos contribui para a alimentar a persistente confusão entre prostituição, tráfico de pessoas e turismo sexual. Além disso, lembram que nesse momento tramita no Congresso Nacional um projeto de lei que busca regulamentar o trabalho sexual, estabelecendo critérios claros para identificar o que é ou não exploração sexual. Leia as manifestações de repúdio.
Davida – Prostituição, Direitos Civis, Saúde
As prostitutas propõem novas formas de pensar gênero e poder
Estamos atentos à ignorância jurídica, a confusões perversas e ao conservadorismo que tentam manter o padrão social excludente e discriminador no Brasil. O presidente da Embratur, Flávio Dino, afirmou em nota oficial que o turismo sexual é uma prática criminosa intolerável no Brasil e que, como tal, deve ser enfrentada. A sua posição não chega a ser estranha se comparada a uma linha de pensamento conservador que grassa no país e insiste em misturar, não sem intencionalidade perversamente engendrada, exploração sexual de crianças e adolescentes e prostituição.
Flávio Dino, como agente público, seja pelo indisfarçado tom moralista que imprime em sua nota, seja pela ignorância jurídica que demonstra ao apontar um tipo penal inexistente no ordenamento jurídico pátrio, comporta-se como um tolo que, numa bravata, tenta produzir uma resposta supostamente capaz de agradar a grupos que não conseguem perceber o papel fundamental desempenhado pelas prostitutas em nossa sociedade. Estas mulheres propõem, com o seu exercício profissional, alargar os limites de compreensão do que sejam os direitos sexuais, sexualidade, prazer e desejo e, rompendo com a matriz moral que nos aprisiona a todo(a)s, indicam outras formas de se pensar as relações hierarquizadas de gênero e poder.
Assim sendo, por que não o turismo sexual, sendo que nessa indústria todas/os ganham, menos as prostitutas? Assumir isso colocaria em risco o processo de desconstrução da imagem erotizada do Brasil no exterior que, ao que parece, opera a partir da higienização dos corpos cuja meta é afastar o sexo do discurso, como se isso garantisse uma positivação de nossa identidade colonizada. Esta discussão, hoje enviesada por argumentos morais, deveria incluir as prostitutas que,como sujeitos adultos livres e autônomos, ao se colocarem na esfera pública como iguais em direitos, alteram o campo de força social, impondo uma transformação nos padrões de exercício de poder vigente, o que representa um potencial avanço democrático.
Pelo que assistimos, o caminho mais fácil é escamotear intenções inconfessáveis para permitir que nada, efetivamente, se transforme, numa reprodução, essa sim intolerável, de um padrão social excludente e discriminador, marca de um país desigual e violento. Todavia, sabedores que resistências sempre são possíveis, e necessárias, continuamos atentos! Gabriela Leite, Presente!
Roberto Chateaubriand Domingues
Presidente
Davida – Prostituição, Direitos Civis, Saúde
davida@davida.org.br
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Laura Murray – cineasta e diretora do documentário “Um beijo para Gabriela” e colaboradora da Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (ABIA) e da ONG Davida
Em estudo que a ABIA e a Davida realizaram em 2012, nos reunimos com gestores e técnicos em vários ministérios do governo federal para conversar sobre políticas e ações transversais ao tema da prostituição. Em diversos gabinetes, ouvimos desse gestores que o “turismo sexual é ilegal”. Especificamente no Ministério do Turismo, nos foi dito que estavam sendo programadas política para coibir o turismo sexual, como por exemplo através de normas para proibir hóspedes de hotéis de levarem pessoas não registradas para suas habitações, uma medida que, de fato, infringe a privacidade das pessoas. Também identificamos muitasincongruências e confusões na fala desse gestores sobre “exploração sexual” e “tráfico”, as quais alimentam justificativas para que sejam adotadas políticas de repressão e criminalização. Vale lembrar que até muito pouco tempo atrás as políticas desenhadas para esse grupo da população eram políticas de promoção de direitos.
Nesse sentido, o comentário do Presidente da Embratur é, de fato, apenas mais um exemplo da confusão e do conservadorismo que prevalece nos discursos oficiais sobre questões do mercado sexual, com efeitos deletérios sobre as condições de trabalho das prostitutas brasileiras e gerando um clima repressivo em relação à sexualidade no sentido mais amplo.