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Projeto de lei brasileiro legaliza e regulamenta prostituição

Projeto de lei brasileiro legaliza e regulamenta prostituição

A trajetória política da prostituição no Brasil tem sido sinuosa. Em anos recentes, a hegemonia dos discursos sobre exploração sexual e tráfico para fins sexuais tem levado o debate uma vez mais para o campo dos pânicos morais.  Contudo, um projeto de lei do deputado federal Jean Wyllys (PSOL-RJ) pretende retomar a discussão em termos pluralistas e democráticos, em uma perspectiva dos direitos humanos que priorize a não discriminação, a não violência, o trabalho digno e os direitos sexuais. Que propostas faz o projeto de lei, batizado de Lei Gabriela Leite (prostituta e militante que fundou a da ONG Davida) para a regulamentação o trabalho sexual?

EventoDurante o debate “Prostituição e Políticas Públicas”, organizado pelo Conselho Estadual dos Direitos da Mulher (RJ) no dia 13/09, foram discutidos o cenário atual e os efeitos que o projeto de lei pode gerar no campo da prostituição. Participaram o deputado federal Jean Wyllys (PSOL-RJ), a co-coordenadora do Observatório de Política Sexual, Sonia Corrêa, e a Superintendente de Enfrentamento à Violência contra a Mulher do Rio de Janeiro, Adriana Mota.
Gabriela Leite enviou um vídeo no qual conta a trajetória recente da situação legal e social da prostituição. De acordo com ela, é necessário pensar a prostituição como profissão, evitando cair no lugar-comum da prostituta como vítima.  Num dos vídeos, Gabriela Leite brinca com o moralismo que envolve a atividade: “melhor ser sem-vergonha do que vítima”.

O projeto de lei 4.211/2012 define o profissional do sexo como toda pessoa maior de dezoito anos e capaz, voluntariamente, de prestar serviços sexuais mediante remuneração.  Regulamenta as casas de prostituição, desde que não se exerça exploração e fixa um teto de apropriação do rendimento de prestação de serviço. Estabelece ainda uma aposentaria especial para as prostitutas.

A iniciativa, destacou Jean Wyllys, se insere no escopo de sua pauta de atuação parlamentar voltada para os direitos humanos. “Entendo direitos humanos como os direitos sociais, políticos, culturais, ambientais. Isto é, direitos indivisíveis, entre os quais estão a dignidade e a liberdade das prostitutas no seu ofício”, afirmou o deputado.

O projeto de lei, afirmou Sonia Corrêa, é uma excelente oportunidade para se retomar o debate nos termos dos anos 1970, quando as demandas por cidadania estavam mais atreladas a uma perspectiva pluralista. “No cenário atual, infelizmente, vêm ganhando espaço as propostas abolicionista e os discursos que confundem tráfico e prostituição”.

De acordo com Sonia Corrêa, o debate sobre prostituição coincide com a formação nacional. De fato,o Estado brasileiro nunca manteve um posicionamento legal claro a respeito do trabalho sexual, embora o domínio da sexualidade tenha sido constantemente uma preocupação normativa do poder público. Aparatos de regulação biopolítica tinham nas práticas sexuais um alvo privilegiado. Nesse sentido, a figura da prostituta esteve no centro das atenções de iniciativas legais, policiais e biomédicas como um desvio a ser disciplinado e combatido.

Desde o século XIX vigorou uma abordagem ambígua: o Código Penal de 1830 não criminalizava a prostituição, embora essa representasse um abrandamento de pena em caso de estupro. Isto é, a violência sexual cometida contra uma prostituta seria menos grave do que uma cometida contra outra mulher. Em 1890, o Código Penal passa a penalizar o proxenetismo (atividade exercida por alguém que administra as relações entre prostituta e cliente). A atividade autônoma e individual, no entanto, permanecia fora das preocupações penais. A “neutralidade” do estado frente à questão, enfatizou Sonia Corrêa, pode ser interpretada como tipicamente brasileira, no sentido de uma benevolência normativa que contrastava com a realidade dos abusos cotidianos perpetrados pelos agentes do Estado.

Pelo Código Penal atual, prostituir-se não é crime, mas manter casa de prostituição, sim.  “O Brasil, de fato, nunca assumiu uma opção taxativa. Nem optou pela abolição plena ou pela regulação espacial, limitando geograficamente o exercício da profissão”, afirmou Sonia Corrêa. “Tal dubiedade abriu espaço para que, na medida em que o país se desenvolvia ao longo do século XX, se consolidasse a ideia de que prostituição não é crime. As políticas formais do Estado nesse campo projetaram desde muito cedo uma imagem de neutralidade. Em tese apenas, porque no cotidiano sabemos das arbitrariedades e abusos que são cometidos contra as prostitutas”, completou.

Nos últimos anos, apesar da dinâmica pluralista que marcou as décadas de 1970 e 1980, a temática da prostituição sofreu um deslocamento de significado, por efeitos de vários fatores: a interpretação distorcida de normas internacionais, como o protocolo de Palermo, a influência do dogmatismo religioso e algumas posições feministas, de acordo com Sonia Corrêa. A noção de tráfico e exploração sexual ganhou espaço no senso comum, englobando conceitualmente a atividade de prostituição. Hoje tramita no Congresso projeto de autoria do deputado João Campo (PSDB-GO) que tem como objetivo criminalizar tanto quem oferece quanto quem contrata serviços sexuais. A justificativa do parlamentar é que “o projeto trata de impedir que a prostituição continue fomentando o tráfico de pessoas e a exploração sexual. Nós não podemos permitir que uma atividade reprovada pela sociedade, às escuras através do crime organizado, esteja fomentando a exploração de meninas, meninos e mulheres.

Tal modelo remete à legislação da Suécia, que desde o final dos anos 1990 criminaliza os clientes, a partir de uma lógica que vê as mulheres sempre como vítimas e os homens, como predadores, passando ao largo por exemplo da prostituição masculina. No entanto, há outros modelos de legislação como o da Alemanha, que regulamentou a atividade em 2001, promovendo acesso a uma cobertura social e a contratos trabalhistas. As casas de prostituição também foram legalizadas e regulamentadas.Uma lei  semelhante foi aprovada na Nova Zelândia em 2003.  Na América Latina, no Uruguai a profissão é regulamentada e na Argentina discute-se nesse momento a legalização.

A proposta do deputado Jean Wyllys abre espaço político para a questão da prostituição no Congresso brasileiro e na sociedade, num registro radicalmente diferente do tom moralista que de novo prevalece no debate sobre o tema. A temática não é de fácil discussão, reconheceu Jean Wyllys. “Antes de tudo, é preciso definir claramente o que é prostituição. Entendo como atividade exercida por pessoa adulta e capaz, não importando a condição ou a história que a levou para a ocupação. É importante que se acabe com o status de indefinição da atividade, promovendo um amparo legal claro e específico. Enfrentar a insegurança jurídica é uma maneira de proteger as prostitutas”, esclarece, buscando desvincular a ideia de vitimização da prostituição. De acordo com o deputado, outros pontos importantes do projeto são a definição de marcos que diferenciem prostituição de exploração e a descriminalização das casas de prostituição.

“A ambiguidade legal em que vivemos prejudica e vulnerabiliza as prostitutas. Elas são vítimas da falta de clareza. Atualmente, casas de prostituição são consideradas ilegais. Ora, quem não conhece uma casa desse tipo? É uma realidade visível. A legalização das casas vai dar às prostitutas instrumento para se proteger dos abusos cometidos lá dentro. O projeto de lei regulamenta as relações trabalhistas ali dentro, estabelecendo diretrizes de lucro e apropriação de rendimento. Apropriação de mais de 50% do lucro de um serviço sexual configura exploração. O mesmo valendo para serviço prestado mediante ameaça ou violência.”, afirmou Jean Wyllys.

A regulamentação destas casas, destacou o deputado, será importante para combater a corrupção. “Apesar de ilegais, tais casas funcionam sob a permissão e controle de agentes do Estado. Sabemos que são policiais muitas vezes as pessoas que permitem o funcionamento.  Por isso, a criminalização dessas casas é um estímulo à corrupção”, argumentou Jean Wyllys.

Outro efeito positivo do projeto é a ponte formal que se cria com o Estado, obrigando o poder público a levar seus serviços. Tais casas, ao estarem abertas à fiscalização do Estado, serão uma porta de entrada para políticas de saúde da mulher.

O projeto tem recebido críticas de setores conservadores que acusam a iniciativa de ser um estímulo à prostituição das jovens. “É um argumento tosco. As jovens serão prostitutas se quiserem. Quando se regulamentou o trabalho doméstico, houve aumento do número de trabalhadores do setor? É uma lógica absurda. O projeto define o trabalho sexual como aquele prestado por maiores de 18 anos. Por isso, é uma forma de proteger as crianças e as adolescentes. O Estado passará a ter mais poder para fiscalizar casos de menores que estão na prostituição”, observou Jean Wyllys.

Mesmo alguns campos feministas têm criticado o projeto porque afirmam que a prostituição é um subprotudo do capitalismo.  Respondendo a essas críticas Jean Wyllys disse: “A prostituição é anterior ao capitalismo. Há relatos na Bíblia e em textos da antiguidade. No mais, todos nós somos explorados, nossos corpos estão a serviço do capital em diversos âmbitos da vida, nas mais variadas profissões”.

Sonia Corrêa complementa: “No capitalismo tardio, na sua etapa neoliberal, o trabalho autônomo é celebrado como se fosse uma marca de independência do indivíduo, além disso a exploração laboral está por todas as partes, seja no campo, seja na cidades. O que explica esse foco privilegiado na prostituição para criticar a exploração?”, questionou. “Penso que estamos frente a uma ideologia de ocultamento. A enorme visibilidade da exploração sexual retratada em termos morais esconde a escala e profundidade da exploração econômica”, completou Sonia Corrêa.

Às vésperas de mega eventos como a Copa do Mundo e as Olimpíadas, o projeto de lei indica uma preocupação com a movimentação do mercado sexual no país. “A marginalização legal e social das prostitutas as coloca em situação de fragilidade diante do fluxo de pessoas que estarão no país e que, certamente, irão procurar por serviços sexuais. É preciso dar amparo para elas”, afirmou Jean Wyllys, para quem um dos espaços que deveriam fomentar a discussão em termos mais pluralistas é a mídia. “Infelizmente, a grande mídia não visa ao discernimento. Privilegia o senso comum, até porque diante da contingência de tempo e espaço a solução mais óbvia é simplificar temas complexos”, concluiu Jean Wyllys, que conseguiu, em negociação com a presidência da Câmara dos Deputados, a criação de uma comissão especial para debater o projeto, retirando a matéria de setores parlamentares religiosos.

De acordo com Sonia Corrêa, o projeto tem como mérito resgatar o diálogo em termos mais democráticos. “Quando olhamos para outros países, vemos que há experiências mais democráticas. Infelizmente, o Brasil deu passos para trás nos últimos anos, optando por ideias salvacionistas justificadas por pânicos morais. A proposta do Jean Wyllys retoma a perspectiva da prostituição no marco dos direitos trabalhistas e dos direitos sexuais. Portanto, é um caminho a ser perseguido nesses tempos difíceis”, finalizou Sonia Corrêa.

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