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Ainda Angelina Jolie

Ainda Angelina Jolie

Kenneth Camargo
Membro do Conselho Curador da Abia e do Grupo Consultivo do SPW

Ocasionalmente uma celebridade é atingida por uma doença e se torna, nem sempre voluntariamente, porta-voz das pessoas acometidas pelo mesmo problema. Usualmente as reações são de simpatia, e muitas vezes a publicidade recebida é bem-vinda como uma forma de trazer a atenção do público para problemas específicos. Quando a atriz Angelina Jolie veio a público informar sobre sua decisão de submeter-se a mastectomia bilateral em função de seu histórico familiar e do resultado de exame de um dado marcador genético, as comportas da sensatez romperam-se de vez. Jolie foi chamada de “cretina” por um colunista brasileiro, acusada de estar a serviço da empresa que produz o teste para detecção dos alelos anômalos do BRCA1 (e que detém patente sobre os mesmos, o que está sendo contestado na Suprema Corte americana), de ser uma tola que se submeteu a manipulação de um charlatão que a mutilou sem nenhuma razão para isso. Junto com a atriz todo o establishment médico-científico foi colocado no pelourinho e apedrejado em praça pública.

Descartando-se as reações mais violentas e difamatórias (às quais retornarei mais tarde), há um quê de razoabilidade nas narrativas que ressaltam o marketing de produtos e serviços baseado na propagação insidiosa do medo de adoecer que podemos talvez chamar de “riscofobia’. É fato que muitas vezes epidemiologistas divulgam de forma exagerada riscos diminutos, contando com a cumplicidade de uma imprensa despreparada para explicá-los à população geral. Como lembra de forma jocosa Ben Goldacre, médico e jornalista britânico, autor de uma coluna e blog com mesmo nome (Bad Science), ao afirmar que o Daily Mail, jornal inglês, está empenhado num projeto de catalogar todas as coisas que existem na terra em dois grupos: as que causam câncer e as que protegem do mesmo (algumas são classificados dos dois modos).

É também fato que tal “epidemiologia dos riscos” se presta ao controle foucaultiano da vida, regulando cada passo dos seres humanos em função de riscos incorridos ou evitados, numa medicalização cada vez mais extensiva da vida. Mais ainda, como sublinhou Susan Sontag, no clássico a doença como metáfora, essa mesma lógica culpabiliza as pessoas pelas doenças que eventualmente desenvolvem, por não terem se “cuidado” suficientemente. É fato ainda que o chamado complexo médico-industrial tem se utilizado desses temores como estratégia de marketing, e que certas empresas da indústria farmacêutica, em particular, têm um retrospecto nebuloso de manipulação e distorção de estudos para vender cada vez mais remédios.

Por outro lado também é fato que a investigação biomédica desenvolveu tecnologias eficazes na cura, ou ao menos controle de diversas doenças – ofereço como exemplo o caso dos anti- retrovirais (ARVs) que alteraram radicalmente o curso do enfrentamento da aids, tornada doença crônica (em que pesam efeitos colaterais e outros problemas). Também é fato que, apesar dos exageros, a pesquisa epidemiológica desenvolveu um corpo de conhecimentos que permitiu em países industrializados a reversão da tendência histórica da mortalidade por doença coronariana, com base no controle de riscos claramente identificados, como o tabagismo. Também é fato que, mesmo com todos os problemas apontados por inúmeros críticos (incluindo quem escreve essas linhas), intervenções médicas ainda aliviam sofrimentos. Finalmente também é fato que as críticas mais contundentes das ciências foram produzidas por cientistas, e ao invés de negar o conhecimento científico essas críticas historicamente o fortaleceram, exatamente por que refletem e ativam a capacidade auto -reflexiva dos e das cientistas.

Sendo assim, de fato, a forma simplificada como o caso Angelina Jolie foi apresentado ao grande público pode gerar consequências nefastas: seria um absurdo, por exemplo, pensar que toda e qualquer pessoa deveria fazer o teste para determinação da presença dos alelos anônimos do BRCA1. Contudo é uma sandice tentar descartar de forma igualmente simplista o difícil processo de decisão de Angelina. Recorro a um excelente post do blog “Science-based Medicine” escrito por David Gorski, cirurgião oncológico, cuja leitura recomendo a quem se interessar pelo assunto. Ao final de um longo e detalhado arrazoado Gorski conclui: “Afinal, deixando de lado todas estas questões políticas e de classe, porém, a decisão sobre a cirurgia preventiva é intensamente pessoal. Angelina Jolie tomou sua decisão com base em evidências, e eu não posso discutir sua decisão. Se ela fosse minha paciente, eu teria aconselhado a fazer o que ela fez, menos os remédios homeopáticos ‘integrados’ aos seus cuidados. O que eu acho particularmente irônico é que tema corrente nas críticas que ‘charlatões’ estão endereçando a Jolie é que ela tomou a decisão errada, que ela foi ‘enganada’ pela ‘indústria do câncer’. O desprezo pela capacidade de Angelina de decidir — embora negado com uma ressalva de como eles ‘entendem’ quão difícil a decisão – é palpável. Eu pensava que a saúde ‘alternativa’ era totalmente a favor de empoderar a paciente a tomar suas próprias decisões. Aparentemente, tal ‘empoderamento’ é apenas admirável para pessoas como Mike Adams, Sayer Ji, e Robert Schulze, se a paciente empoderada tomar uma decisão com a qual eles concordam.” Note-se que não estou usando Gorski como base para um argumentum ad autoritatem, mas porque seu texto é extraordinariamente bem elaborado, documentado e didático.

Para encerrar, retomo aqui as manifestações quase histéricas a que aludi anteriormente. Por que cargas d’água uma decisão sobre um tratamento médico deveria alguém a chamar outro ser humano de “cretina” em público? Não consigo deixar de ver um tom moralizante e misógino nesses ataques; é como se as mamas de Angelina Jolie, símbolo sexual, não pertencessem a ela mesma, como se a decisão de retirar o tecido mamário e substituí-lo por próteses fosse um crime de lesa-pátria, como se, por ser mulher e famosa, a atriz não tivesse a capacidade, ou quem sabe o direito, de tomar decisões informadas sobre sua própria vida…

Segundo as informações que Angelina divulgou, sua história de vida e a mutação específica encontrada em seu genoma significavam no seu caso uma probabilidade de 85% de desenvolver câncer de mama. Peço a quem, porventura, ler esse texto até aqui, que reflita, serenamente, sobre a enormidade desse veredito — o qual não pode ser descartado ligeiramente, como se fosse uma afirmação inventada a partir do nada — e tente se imaginar na mesma situação. Tenho uma amiga, médica, que há mais de dez anos fez a mesma opção, e respeito sua coragem. É possível que exista quem, mesmo com esse nível de probabilidade, resolvesse optar por conduta distinta da que Jolie adotou. Mas mesmo essas não têm o direito de taxar de irracional, mal-informada ou mesmo de “cretina” quem pensa diferente.



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