Intolerância e solidariedade na rede social
Por Kenneth Camargo, membro do Conselho Consultivo do Observatório de Sexualidade e Política, secretário-geral do Conselho de Curadores/as da Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS (ABIA) e professor associado do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IMS/Uerj)
Novas tecnologias se integram rapidamente às nossas vidas; criado há relativamente pouco tempo (em escala histórica; na internet poucos anos são uma eternidade), o Facebook (ou FB), por exemplo, passou a ser parte do cotidiano de muitos/as de nós que, geralmente , passamos (ou desperdiçamos) boa parte do nosso tempo neste labirinto eletrônico.
Trouxemos para essa nova fronteira nossas interações regulares, nossas preocupações, nosso humor, nosso gosto (ou falta de) e nosso ativismo. Através dos mecanismos básicos de interação do FB (“curtir”, comentar e compartilhar), opiniões, notícias, imagens circulam instantaneamente entre tribos diversas, em padrões complexos de intertextualidade.
Privadas dos limitadores usuais da interação face a face e, com frequência, protegidas pelo anonimato de pseudônimos, conversações não raro explodem em confrontações, por vezes deliberadamente incitadas pelos agents provocateurs da nova fronteira, os famosos trolls.
Esse padrão não é novo, tendo acompanhado o desenvolvimento de várias formas de interação via internet, desde as listas de e-mail e as discussões na usenet, que deram origem ao próprio vocabulário que as descreve (o já citado troll, spam, flame war e por aí vai).
Usuário veterano que sou da internet, e dos BBS (bulletin board systems) antes dela, já vi e vivi essas situações mais de uma vez, e já não me surpreendo – ou irrito – tanto quando me vejo tragado por alguma discussão idiota (ou com algum/a idiota – na minha avaliação, claro). Mas, por mais experiência que se tenha, ninguém é imune a surpresas.
Parte importante da minha atividade online é dedicada ao comentário político, num sentido amplo. Há muito no mundo com o que se indignar, e difundir e/ou comentar certas notícias é no mínimo catarse e, espero, uma forma de ativismo. Entre as questões que me preocupam estão a defesa do Estado Laico e dos direitos de vários grupos que se veem limitados em sua cidadania, em especial mulheres e pessoas LGBT; sempre me vêm à mente um dos muitos aforismos legados por Martin Luther King: injustiça em qualquer parte é uma ameaça à justiça em todos os lugares. A recente designação de um deputado teocrata, racista, misógino, homofóbico e sectário para a comissão parlamentar encarregada de zelar exatamente pelos direitos ameaçados por pessoas como ele, num ato enfurecedoramente orwelliano, exacerbou em muitos/as de nós a indignação e, portanto, a postagem de comentários sobre os dois temas que me são tão caros.
As reações são previsíveis; as ideias do tal deputado infelizmente têm eco na nossa sociedade, e não são poucos os que acreditam nas mesmas barbaridades, e se mostram dispostos a defendê-las em diversos fóruns, inclusive o FB. Até aí, nada fora do esperado.
O que me surpreendeu (negativamente) foi a reação de uma pessoa conhecida de muitos anos, recém reencontrada na internet, e a quem sempre tratei com carinho e respeito. De forma abrupta, e mesmo brutal, me questionou sobre o que chamou de “panfletagem diária” (e que talvez seja mesmo), perguntando se eu teria “tendências homossexuais” ou se pretendia me candidatar por algum “partido GLS”, num nítido tom de desaprovação.
Houve um tempo em que a pergunta sobre “tendências homossexuais” provavelmente faria me sentir insultado; felizmente, não mais. Pelo menos nisso posso dizer que cresci; um amigo gay já me designou como “gay honorário”, como elogio, que aceito de bom grado. Noutro contexto, a pergunta poderia até ser legítima. O que me assustou foi que alguém que compartilhou importantes experiências formativas comigo na infância e adolescência pudesse ter uma visão tão estreita. Além de aparentemente se ofender pela minha incessante (e assumida) defesa do Estado Laico e dos direitos de grupos oprimidos, a tal pessoa parece ser incapaz de entender empatia ou compaixão, que é possível abraçar causas, sem ser diretamente envolvido nelas, que mesmo filhos/as do privilégio podem ser solidários/as com quem não é. Fiquei muito chocado, e mesmo triste com essa exibição pública de pequenez.
Mas essa pequena história continua; o choque foi tão grande que precisei exorcizá-lo sob a forma de desabafo num outro post no mesmo FB. E, para minha surpresa, tornou-se meu post com mais “likes” (ou “curtidas”), com vários comentários de encorajamento, sem contar mensagens privadas de apoio.
E, se há alguma moral nessa história, que seja essa: a resposta a um ataque à expressão de solidariedade foi a multiplicação da mesma solidariedade.
Só posso agradecer a meus queridos amigos e amigas, online e offline, a sustentação da teimosa esperança na humanidade…