INTRODUÇÃO: Os direitos sexuais e reprodutivos na Revisão Periódica Universal do Brasil*
Em maio deste ano, o Brasil foi submetido à segunda rodada da Revisão Periódica Universal (RPU) no Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (CDH-ONU), tendo a primeira rodada acontecido em 2008. Nas duas oportunidades, a revisão se apoiou em dados apresentados pelo informe oficial, produzido pelo governo brasileiro, por um relatório elaborado pelo Alto Comissariado de Direitos Humanos da ONU e por múltiplos relatórios sombra apresentados pela sociedade civil.
As recomendações feitas pelos estados-membros da ONU que participaram da revisão do Brasil em 2012 foram construídas a partir desse vários relatórios, mas também a partir das informações que o corpo diplomático de cada país levanta sobre o estado em revisão. Na reunião de apresentação do relatório brasileiro, em maio de 2012, os países-membro do CDH-ONU fizeram perguntas que foram respondidas pela comitiva do governo presente em Genebra e, em seguida, apresentaram novas recomendações, ficando estipulado que até 20 de setembro de 2012 o Brasil deveria informar ao CDH-ONU quais recomendações seriam aceitas, quais seriam parcialmente aceitas e quais seriam rejeitadas.
A RPU é um processo dialogal, colaborativo. Esse formato foi estabelecido após a criação do CHD-ONU, em 2005, para reduzir as tensões que caracterizaram, desde sempre, os debates intergovernamentais de direitos humanos ou — como se dizia até 2005 — para dirimir a “politização” que muitas vezes paralisou os trabalhos da Comissão de Direitos Humanos, órgão que antecedeu o CDH. Nesse novo formato, todos os estados-membro são revisados a cada quatro anos. Os estados que estão sendo revisados podem ou não aceitar as recomendações, mas, ao recusar sugestões, devem explicar por que o estão fazendo. Ou seja, a RPU busca dirimir climas acusatórios que podem comprometer os debates sobre direitos humanos nas arenas globais, e pressupõe que as recomendações aceitas serão assumidas como compromisso e implementadas pelo estado que está sendo avaliado.
Outro aspecto crucial a ser considerado quando se avaliam os resultados da última RPU a que o Brasil foi submetido diz respeito às condições do cenário geopolítico global, ou seja, a persistente crise econômica nos Estados Unidos e na Europa e a emergência paralela dos chamados novos poderes globais — Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul — que formam, digamos assim, um novo eixo de riqueza, denominado BRICS. Os fatores geoeconômicos e políticos que explicam essa emergência são múltiplos e complexos. Aqui importa sublinhar que, na medida em que o Brasil se reposiciona na cena global, ganhando mais poder, se altera inevitavelmente a maneira como os demais países, tanto do Norte quanto do chamado Sul econômico, se relacionam com o mesmo. Essas novas percepções e formas de relacionamento se refletiram, inevitavelmente, na RPU 2012.
Na revisão de 2008, o Brasil foi objeto de várias recomendações. Uma delas dizia respeito, por exemplo, à aprovação da Lei de Acesso à Informação Pública que, de fato, ocorreu, após longo debate na sociedade e no Congresso, em 2011 . Contudo, nem todas as recomendações então feitas foram tão bem sucedidas. Assim sendo, em maio de 2012, o Brasil foi cobrado por não ter apresentado os relatórios anuais, conforme havia se comprometido no primeiro ciclo da RPU, e também por não haver implementado algumas recomendações “fortes”, por exemplo, a criação de um institucional de direitos com independência de investigação e monitoramento, alinhada com os chamados Princípios de Paris. Nesse caso, embora exista um projeto de lei em tramitação para criação de um conselho nacional de direitos humanos, o texto em debate não está harmonizado com essas premissas internacionais.
Na revisão de 2012, esse tema seria retomado, sendo que, novamente, estados-membros recomendaram a criação de uma instituição nacional independente de direitos humanos no país. Além disso, novas recomendações foram feitas em relação a uma vasta gama de questões de direitos humanos, muitos países elogiaram o estado brasileiro pelo bom desempenho, por exemplo, em relação à redução da pobreza, mas, ao mesmo tempo, muitos estados também apontaram para a persistência de violações graves de direitos humanos, como no caso do sistema prisional e da tortura, e também no campo da violência de gênero e dos direitos sexuais e reprodutivos.
É importante dizer que a participação da sociedade civil brasileira na RPU se ampliou muito entre a primeira rodada, em 2008, e a segunda, agora em 2012. Nessa última rodada, cerca de 50 relatórios-sombra — elaborados, na sua maioria, por organizações da sociedade civil brasileira, seja separadamente, seja em conjunto — foram apresentados ao CDH-ONU. Essa maior presença e vitalidade foram muito importantes no processo de revisão. Entre outras razões porque os problemas identificados nesses relatórios contrastam com a imagem hoje projetada pelo Brasil: de um país que está superando a pobreza, solucionando problemas sociais e tornando-se um player global. O relatório oficial, de maneira geral, enfatizava as realizações das políticas públicas nacionais que alimentam essa imagem, sem, contudo, oferecer dados quantitativos substantivos. Já os relatórios submetidos por organizações da sociedade civil apontavam para limites, insatisfação e graves violações de direitos humanos. No que diz respeito a direitos sexuais e reprodutivos, por exemplo, esses informes analisaram: a violência homofóbica contra pessoas LGBT, em especial assassinatos impunes; a censura de material educativo sobre diversidade sexual; problemas no acesso a serviços e distribuição de medicamentos para tratamento do HIV/AIDS; criminalização da transmissão do HIV/AIDS; violações dos direitos das mulheres em situações decorrentes da criminalização do aborto; restrições de acesso a drogas que reduzem os riscos do aborto clandestino; e problemas persistentes na atenção pré-natal e obstétrica com efeitos negativos sobre as taxas de morte materna.
Esse contraste entre os relatórios da sociedade civil e o que foi apresentado oficialmente pelo governo do Brasil não escapou à atenção de várias delegações que participavam da revisão. Entretanto, o mesmo contraste nem sempre se refletiu substantivamente nas 170 recomendações feitas ao governo brasileiro. Em linhas gerais, não é excessivo dizer que as recomendações mais fortes feitas em 2012 dizem respeito a questões pendentes, como autonomia das instituições nacionais de direitos humanos, tortura, prisões, sistema de justiça criminal e segurança pública. Mas também foram feitas recomendações que, se fossem acatadas pelo estado brasileiro, teriam efeitos muito deletérios sobre os direitos sexuais e reprodutivos, tais como a recomendação do Vaticano de definir família como união entre homem e mulher, a proposta feita pela Namíbia de ampliação do ensino religioso no sistema de educação pública e a recomendação da Colômbia sobre registro compulsório de gestantes como estratégia de redução de morte materna. Essa estratégia de política pública, inclusive, havia sido objeto de intenso debate no país entre janeiro e maio de 2012 (leia mais). Finalmente, algumas recomendações, caso fossem implementadas, teriam efeitos positivos sobre os direitos sexuais e reprodutivos, como é o caso daquelas feitas por França e Estônia, em relação à descriminalização o aborto e medidas para garantir a privacidade das mulheres em processos criminais, ou a proposta da Finlândia de reforma legislativa para assegurar igualdade no casamento e de medidas efetivas de redução dos crimes homofóbicos.
Para entender por que certas recomendações relativas a violações foram mais frequentes e fortes, é preciso compreender que os temas clássicos dos direitos humanos captam atenção com mais facilidade do que questões emergentes, entre estas os direitos sexuais e reprodutivos, ou mesmo questões relativas aos efeitos de grandes obras, como é o caso de Belo Monte, ou às violações de direitos humanos perpetradas por multinacionais, inclusive brasileiras, temas que foram tratados pelos relatórios sombra da sociedade civil. Além disso, para que essas informações sejam devidamente absorvidas, é preciso mais do que produzir e enviar os relatórios. É fundamental um trabalho permanente de circulação dessas informações junto aos estados-membros, redes internacionais e outras instâncias da ONU. No mais das vezes, a maioria das organizações da sociedade civil, inclusive no Brasil, não dispõe dos recursos de conhecimento e financeiros para realizar essas tarefas a contento, enquanto as missões diplomáticas dos países dispõem de grande capacidade de atuação permanente no CDH-ONU.
:: Desdobramentos da RPU 2012
Enquanto o governo brasileiro levou uma comitiva numerosa a Genebra, havia apenas representantes da sociedade civil do país acompanhando os debates: Camila Asano e Mara Arizaga (Conectas Direitos Humanos), Paula Martins (Artigo 19), Magaly Pazello (Instituto NUPEF/Associação para o Progresso das Comunicações), Luis Emmanuel Cunha (Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações Populares – GAJOP) e Alexandre Mapurunga (Coalizão de Organizações de Pessoas com Deficiência). Após a sessão formal de revisão, a partir de reivindicação feita pela Conectas Direitos Humanos, a missão diplomática brasileira convocou uma reunião informal com a ministra da Secretaria dos Direitos Humanos, Maria do Rosário, e toda a comitiva oficial. Nessa oportunidade, a ministra valorizou o processo e as recomendações feitas ao Brasil e indicou passos a serem tomados como desdobramento da RPU 2012, entre os quais:
- Criação de um grupo intersetorial para dar sequência ao processo de acompanhamento e implementação das recomendações decorrentes da RPU no país;
- Desenvolvimento de um sistema de monitoramento dos direitos humanos no país, tendo como base, paralelamente, tanto as recomendações decorrentes da RPU e sua dimensão global, quanto o Programa Nacional de Direitos Humanos 3 (PNDH3) e seu viés local;
- Elaboração sistemática de indicadores de direitos humanos no país, e
- Criação, até 2014, de novas delegacias para mulheres, a fim de suprir o déficit no país (algo que havia sido objeto de críticas neste ciclo da RPU).
As organizações da sociedade civil que estavam presentes listaram outras medidas a serem priorizadas na segunda etapa da RPU, tais como:
- Criação de um mecanismo nacional independente de direitos humanos, ou seja, reiterando recomendação feita desde 2008;
- Disseminação de informação sistemática e transparente acerca da violação de direitos humanos no país; e
- Realização de audiência pública no Congresso para que as recomendações feitas ao estado brasileiro fossem debatidas de maneira transparente, possibilitando à sociedade participar das decisões relacionadas às recomendações que seriam rejeitadas ou aceitas.
Deve-se dizer, porém, que o diálogo estabelecido em Genebra em relação a essas propostas e temas não teve continuidade. Várias ONG brasileiras reagiram às recomendações feitas pelos estados-membros, escrevendo cartas às autoridades brasileiras e às delegações das missões diplomáticas responsáveis pelas propostas. Contudo, a audiência pública marcada para agosto no Brasil, a fim de discutir as recomendações apresentadas ao país, não foi realizada e o governo brasileiro reagiu às mesmas sem consulta direta à sociedade. E esses foram os resultados levados à 21a Sessão do CDH, em setembro, sem que previamente tivesse acontecido um debate intersetorial para analisar as recomendações. Uma segunda audiência marcada para outubro, com o objetivo de debater o processo da RPU, também foi adiada, alegando-se falta de quórum no Congresso, por efeito das eleições municipais no país. Ou seja, um bom desempenho do Brasil em Genebra não significa necessariamente um desdobramento adequado no contexto nacional, onde, de fato, ocorrem as violações de direitos humanos. Dito de outro modo, a RPU não pode ser ser vista como um “evento” isolado. Ela é uma estação importante num processo permanente que exige vinculação constante entre o nacional e o internacional. Ela é, sem dúvida, uma passagem necessária, mas não suficiente para consolidação efetiva de uma cultura de direitos humanos no Brasil, aí incluídos os direitos sexuais e reprodutivos.
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*O SPW agradece o apoio e atenção de Magaly Pazello, do EMERGE-Centro de Pesquisas e Produção em Comunicação e Emergência e do Programa de Apoio a Rede de Mulheres da Associação para o Progresso das Comunicações (PARM-APC) e que esteve presente na sessão de maio de 2012 da Revisão Periódica Universal brasileira, em Genebra, por ter compartilhado suas observações e análises quanto a este processo.