A atual reforma do Código Penal que tramita no Senado Federal abriu a chance de se discutir a questão do aborto sob a perspectiva da descriminalização, da saúde e dos direitos reprodutivos das mulheres. Afinal, há pelo menos seis anos o debate no Congresso Nacional vinha caminhando no rumo oposto, se afastando totalmente da perspectiva de direitos e se aproximando da perspectiva religiosa, conservadora, repressora e criminalizante.
Não é a proposta feminista que está em pauta no Congresso, já que continua engavetado o anteprojeto de lei construído em 2005 por uma Comissão Tripartite criada para estudar e propor um texto de descriminalização e legalização do aborto. O anteprojeto foi elaborado para dar consequência ao compromisso que o Governo Lula assumiu com as mulheres na I Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres (2004) no sentido de revisar a legislação punitiva sobre o aborto no nosso país. Aliás, com esta iniciativa o governo federal estava respondendo aos inúmeros compromissos assumidos em âmbito internacional [1] e nacional [2].
A proposta atualmente em debate foi elaborada por uma comissão de juristas que propôs a descriminalização do aborto em algumas hipóteses: (1) quando houver risco à vida ou à saúde da gestante; (2) se a gravidez resulta de violação da dignidade sexual, ou do emprego não consentido de técnica de reprodução assistida; (3) se comprovada a anencefalia ou quando o feto padecer de graves e incuráveis anomalias que inviabilizem a vida extrauterina, em ambos os casos atestado por dois médicos; e (4) se por vontade da gestante, até a décima segunda semana da gestação, quando o médico ou psicólogo constatar que a mulher não apresenta condições psicológicas de arcar com a maternidade. O quadro abaixo ajuda a visualizar as mudanças propostas:
Código penal atual (Decreto-Lei 2.848/1940) | Projeto do novo Código Penal (PLS 236/2012) |
Exclusão do crime | |
Art. 128 – Não se pune o aborto praticado por médico: | Art. 128. Não há crime de aborto: |
Aborto necessário | |
I – se não há outro meio de salvar a vida da gestante; | I – se houver risco à vida ou à saúde da gestante; |
Aborto no caso de gravidez resultante de estupro | |
II – se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal. | II – se a gravidez resulta de violação da dignidade sexual, ou do emprego não consentido de técnica de reprodução assistida;··Parágrafo único. Nos casos dos incisos II e III e da segunda parte do inciso I deste artigo, o aborto deve ser precedido de consentimento da gestante, ou, quando menor, incapaz ou impossibilitada de consentir, de seu representante legal, do cônjuge ou de seu companheiro; |
III – se comprovada a anencefalia ou quando o feto padecer de graves e incuráveis anomalias que inviabilizem a vida extrauterina, em ambos os casos atestado por dois médicos; ou | |
IV – se por vontade da gestante, até a décima segunda semana da gestação, quando o médico ou psicólogo constatar que a mulher não apresenta condições psicológicas de arcar com a maternidade. | |
Parágrafo único. Nos casos dos incisos II e III e da segunda parte do inciso I deste artigo, o aborto deve ser precedido de consentimento da gestante, ou, quando menor, incapaz ou impossibilitada de consentir, de seu representante legal, do cônjuge ou de seu companheiro. |
A proposta não incorpora a totalidade de avanços necessários para a descriminalização e legalização do aborto conforme reivindicado há décadas pelos movimentos feministas. Mas representa uma oportunidade ímpar de avançar no debate público na perspectiva da garantia dos direitos e da saúde das mulheres.
A criminalização do aborto no Brasil está diretamente relacionada a uma cultura patriarcal e machista que impõe a maternidade às mulheres como um dever e que investe no controle de seus corpos, de sua sexualidade e de sua reprodução. No entanto, os elevados índices de abortos realizados anualmente no país de forma insegura revelam que a criminalização não é nem de longe uma solução para o problema.
Ao contrário, a legislação que criminaliza o aborto no país é responsável pelos altos índices de morte materna no país e tem condenado as mulheres a interromperem gestações indesejadas na clandestinidade, de forma insegura e solitária, colocando suas vidas e suas saúdes em risco. Segundo dados da Pesquisa Nacional de Aborto, aos 40 anos, uma em cada cinco mulheres no Brasil já fez pelo menos um aborto, o que representa 5,3 milhões de mulheres entre 18 e 40 anos – contingente absolutamente significativo de mulheres em idade reprodutiva. Metade dessas mulheres precisou ser internada para finalizar o procedimento de aborto, gerando um alto impacto na assistência em saúde. Tal pesquisa revela ainda que o perfil das mulheres que abortam coincide com o de mulheres em idade reprodutiva: são mulheres comuns, que vivem em união estável, possuem filh@s, se declaram católicas, e não são mulheres irresponsáveis e promíscuas tal como o discurso conservador afirma.
Esses dados e reflexões reforçam que a luta histórica pela descriminalização e legalização do aborto movida pelos movimentos feministas é atual e urgente. Tal luta representa também o direito à maternidade livre e desejada, ao exercício da liberdade sexual e afetiva e à autonomia para decidir sobre suas vidas, que ainda não são uma realidade para a maioria das mulheres do país.
Atualmente, o Senado Federal tem nas mãos o poder de decidir sobre o futuro de milhões de brasileiras que optam por interromper gravidezes indesejadas. Mulheres que são nossas mães, tias, amigas, conhecidas. Mulheres que representam 52% do eleitorado. Mulheres que clamam por mais respeito e dignidade, por políticas de planejamento familiar, educação sexual, atenção integral à saúde, acesso às creches. Mulheres que não devem ser presas, punidas, perseguidas, maltratadas ou humilhadas por terem feito um aborto [3].
Centro Feminista de Estudos e Assessoria – Cfemea
[1] Declaração de Viena (1993), Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento (Cairo, 1994), IV Conferência Mundial sobre as Mulheres (Beijing, 1995) etc.
[2] I, II e III Conferência Nacional de Política para as Mulheres realizadas em 2004, 2007 e 2011, respectivamente.
[3] O lema “Nenhuma mulher deve ser presa, punida, perseguida, maltratada ou humilhada por ter feito um aborto” representa a luta empreendida pela Frente Nacional contra a Criminalização das Mulheres e pela Legalização do Aborto. Clique aqui para mais informações sobre a Frente.