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Aborto de anencéfalos: um marco para a sociedade

O STF rompe tabu ao legalizar a interrupção de gravidez de fetos sem cérebro, e cria condições para que haja um ambiente digno para as mulheres que precisam usufruir desse direito

Natália Martino

DESINFORMAÇÃO
P. foi estuprada e não sabia que a lei permitia o aborto nesse caso

Foram dois longos dias de julgamento, mas os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) tiraram o País de décadas de atraso ao decidir, por 8 votos a 2, que as grávidas de bebês anencéfalos (sem cérebro) têm o direito de realizar aborto. Salvo raras exceções, esses fetos morrem ainda no útero ou poucos minutos após o nascimento. Por essa razão, mais de dez mil mulheres já recorreram à Justiça para conseguir interromper esse tipo de gravidez. Agora, o STF determinou que as mulheres não mais precisarão pedir autorização judicial para ter direito ao aborto nesses casos, assim como acontece quando ela é vítima de um estupro ou corre risco de vida. A decisão é um marco para a sociedade brasileira, pois rompe um dos maiores tabus de um país majoritariamente católico e evangélico.

“Demos um passo no sentido de superar a confusão entre fé e assistência médica. Não queremos desrespeitar as crenças de ninguém, por isso o Estado não vai obrigar as grávidas de anencéfalos a abortar”, diz o geneticista e obstetra Thomaz Gollop. “Mas vai permitir que as que assim desejarem o façam porque é um direito individual delas.” A decisão do STF irá acabar com o sofrimento das mulheres que levam adiante uma gravidez sem futuro. “Eu me sentia como se estivesse carregando um defunto. Todo dia era um velório para mim”, conta Cátia Corrêa, que ficou grávida de um anencéfalo em 1993 e foi uma das primeiras a conseguir interromper a gestação por conta de uma ordem judicial.

Esta deliberação importante precisa ter força para mudar a realidade de muitas mulheres que, mesmo amparadas pela lei, se deparam com o preconceito e o despreparo dos profissionais de saúde quando vão abortar. Mudanças de mentalidade e costumes não ocorrem do dia para a noite. A lei do divórcio é de 1977 e levou anos para que pessoas divorciadas fossem vistas com naturalidade pela sociedade. A posição clara do STF cria o ambiente necessário para um atendimento digno à mulher nos hospitais e pode até inibir a proliferação de clínicas clandestinas e as mortes maternas em decorrência do aborto – 98 faleceram em 2009, o último dado disponível.

Plenário do STF: dois dias de votação e placar favorável à interrupção da gestação de anencéfalos

Os relatos de quem viveu na prática a experiência de um aborto legal são a prova de que é preciso avançar. Quando conseguiu a autorização judicial, Cátia imaginava que era só ir até um hospital e dar fim ao martírio, mas não foi o que aconteceu. A enfermeira se recusou a introduzir em seu útero o medicamento necessário para a interrupção da gravidez. “Ela queria que eu, com aquela barriga enorme, colocasse o remédio”, conta. Histórias semelhantes são contadas por mulheres que interrompem gestações que traziam risco à sua saúde ou foram originadas por violência sexual. Nesses casos, o aborto é permitido desde o Código Penal de 1940 sem necessidade de qualquer tipo de autorização judicial. Mas só 50 anos depois, em 1990, surgiu o primeiro hospital do País qualificado para o serviço pelo Ministério da Saúde, o Hospital Jabaquara, em São Paulo, que hoje compõe uma rede com outras 63 unidades de saúde em todo o País. “Não há impedimento para que outros hospitais realizem o aborto nos casos previstos em lei, mas oferecemos treinamento específico para algumas unidades”, explica Helvécio Magalhães, secretário de Atenção à Saúde do Ministério da Saúde.

O governo federal faz sua parte, mas setores da sociedade às vezes tentam criar empecilhos. É o caso da Câmara Municipal de Anápolis (GO), que aprovou em 22 de fevereiro uma norma que proíbe os abortos legais nos hospitais municipais. Mesmo nas unidades de saúde há problemas. “Em geral, nem todos os profissionais do hospital apoiam o aborto e o bom atendimento vai depender de quem estiver na unidade”, diz Rosângela Talib, uma das coordenadoras do grupo Católicas pelo Direito de Decidir. É esse tipo de mentalidade que a decisão do STF pode ajudar a mudar.

C., 27 anos, é testemunha dessa dificuldade. Sua filha de 12 anos foi violentada durante seis meses e a mãe só descobriu quando a gravidez veio à tona. No Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros (Cisam), um dos hospitais qualificados pelo Ministério da Saúde em Pernambuco, a menina recebeu, às 13 horas da terça-feira 10, a medicação para dilatação do útero horas antes da cirurgia, marcada para 20 horas. Ela deveria permanecer em jejum e receberia anestesias para evitar as dores causadas pelos remédios. Mas o anestesista se recusou a participar do procedimento. Veio o próximo turno e outra recusa. Enquanto isso, a menina permanecia sem comida e com dores lancinantes. Só no terceiro turno, às 9 horas da manhã seguinte, o procedimento foi realizado.

DECISÃO
Cátia Corrêa enfrentou preconceito ao abortar um bebê anencéfalo

Para não participar, os anestesistas alegaram “impedimento de consciência”. A justificativa está de acordo com o Código de Ética Médica, que, em seu artigo 7º, diz que os profissionais não são obrigados a prestar um serviço que não desejam, mas coloca duas ressalvas: ausência de outro médico ou risco de danos irreversíveis ao paciente. “A alegação de impedimento de consciência é muito comum e ultrapassa os limites do razoável”, diz o ginecologista Olímpio Moraes Filho, da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo).

O desconhecimento é outra face do problema. Por isso, a visibilidade do julgamento do STF também é importante. Pesquisa realizada pelo Ibope em 2007 sob encomenda do grupo Católicas pelo Direito de Decidir revelou que 48% dos brasileiros ignoram as situações em que o aborto pode ser feito legalmente. “O desconhecimento pode levar mulheres a buscarem métodos clandestinos e inseguros para o aborto, afinal é uma ilusão pensar que a proibição diminui o número de abortamentos”, diz o médico Thomaz Gollop. A trajetória de P., 24 anos, ilustra bem isso. A estudante foi violentada quando saía da faculdade em setembro do ano passado. Por medo e vergonha, não contou a história a ninguém que pudesse orientá-la sobre as precauções necessárias depois de um ataque desse tipo. Acabou, assim, engravidando.

Sem saber que, nesse caso, tinha o direito de fazer o aborto na rede pública de saúde, tomou chás e remédios abortivos. Nada adiantou. “Não queria dentro de mim algo que me lembrasse o que eu tentava desesperadamente esquecer”, diz, chorando. Começou a procurar clínicas clandestinas e só parou quando a palidez e a excessiva perda de peso fizeram o ex-namorado pressioná-la para que contasse o que havia acontecido. Ele a levou à delegacia e, de lá, ela foi encaminhada ao hospital Pérola Byington, uma das referências nacionais nesse serviço. “Quem chega ao hospital deve ser tratada e não julgada. Cada um tem sua fé e seus direitos individuais, que precisam ser garantidos pelos agentes do Estado”, resume Clair Castilhos, secretária executiva da Rede Feminista de Saúde. É essa consciência que deve prevalecer.



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