HIV, prostituição e patentes: a visita de Obama e seus paradoxos
No dia 17 de março de 2011, o Observatório de Sexualidade e Política (SPW) recebeu da CHANGE – Center for Health and Gender Equity, ONG feminista com sede em Washington, EUA, a seguinte informação:
Na semana passada, o governo dos EUA deu um passo importante ao condenar, pela primeira na história recente, a violência e a discriminação contra as trabalhadoras do sexo. Na avaliação feita na Revisão Periódica Universal do Conselho de Direitos Humanos da ONU (RPU/CDH/ONU), a que os Estados Unidos foram submetidos em 2010, a comunidade internacional fez mais de 200 recomendações no sentido de que o governo norte-americano tomasse medidas para ampliar a proteção aos direitos humanos. Nessa ocasião, o Uruguai solicitou expressamente que a administração de Obama deveria “realizar campanhas de sensibilização, campanhas para combater os estereótipos e violência contra gays, lésbicas, bissexuais e transexuais, e também para garantir o acesso aos serviços públicos de saúde, em especial no caso de profissionais do sexo que estão sujeitos à grande vulnerabilidade, à violência e a outras violações dos direitos humanos.
Nos EUA, em parceria com uma nova coalizão chamada Direitos Humanos para tod@s: ativistas preocupad@ com os direitos de profissionais do sexo e pessoas envolvidas com o mercado do sexo (HRA), a CHANGE mobilizou, através de abaixo-assinado, mais de 125 organizações que pressionaram o Departamento de Estado para aceitar, plenamente, a recomendação feita pelo Uruguai na RPU de 2010.
Esses esforços tiveram efeitos significativos. Na semana passada, o governos norte-americano transmitiu um relatório ao CDH/ONU no qual afirma que “ninguém deve enfrentar a violência ou discriminação no acesso aos serviços públicos em razão de sua orientação sexual ou de sua condição como pessoa envolvida com prostituição”.
Para o governo dos EUA, este é um passo inovador no sentido de eliminar o estigma e a discriminação contra as pessoas LGBT e profissionais do sexo e garantir que possam ter acesso aos serviços de saúde. No entanto, muito mais precisa ser feito. A chamada Cláusula Anti-prostituição ainda não foi abolida e exige que, para receber recursos dos EUA para trabalho do HIV / Aids, as organizações devem explicitamente se opor à prostituição. Esta regra dificulta enormemente a prestação de serviços de saúde para mulheres, homens e pessoas transexuais envolvidas com a indústria do sexo.
Diante desta informação, o SPW perguntou à Serra Sippel, diretora da CHANGE, quais são as implicações práticas da resposta que a administração Obama deu às críticas levantadas durante a Revisão Periódica Universal da ONU, em relação aos efeitos da política norte-americana para o HIV sobre as pessoas que trabalham na prostituição. Serra avalia que:
Em termos de mudanças de política, o impacto ainda será limitado porque a cláusula anti-prostituição continua gravada na lei. Mas, ainda assim, a resposta dos EUA à RPU significa que hoje os ativistas contam com uma ferramenta para pressionar o governo no sentido de fazer mais do que está fazendo. É importante notar que o PEPFAR já “flexibilizou”, de algum modo, as normas, incluindo o direito de acesso aos serviços para profissionais do sexo em sua estratégia de 5 anos. Porém agora há mais espaço para as e os ativistas pressionarem o executivo para que ele peça ao Congresso a eliminação definitiva da cláusula. Ativistas também podem pressionar par que a administração não faça uso da cláusula anti-prostituição, mesmo quando ela continue inscrita nos documentos de política e da própria lei.
É interessante observar que essa posição mais flexível do governo norte-americano vem a público exatamente na semana que precede a visita de Obama ao Brasil. Como se sabe, em 2005, o governo brasileiro suspendeu o acordo Brasil USAID para financiamento de atividades de prevenção do HIV, exatamente porque os organismos governamentais brasileiros e organizações da sociedade civil – então representadas na Comissão Nacional de AIDS – não aceitaram a imposição da Cláusula Anti-prostituição que a renovação do acordo exigia.
Essa é, sem dúvida, uma coincidência virtuosa. Por outro lado, como pode ser verificado na carta divulgada ontem pelo Grupo de Trabalho sobre Propriedade Intelectual, implica em enormes riscos no terreno da concessão de patentes de medicamentos para tratamento do HIV/AIDS e, portanto, para o princípio adotado desde muito pelo Brasil, no que diz respeito ao acesso universal e gratuito aos ARVs.