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Paul Amar explica porque o Egito viveu uma revolução de verdade ao rejeitar o ‘Pacote Mubarak’

Paul Amar explica porque o Egito viveu uma revolução de verdade ao rejeitar o ‘Pacote Mubarak’

Por Felipe Carvalho
Publicado originalmente no site da ABIA

Muitos jornalistas envolvidos na cobertura dos protestos que culminaram na renúncia do presidente egípcio, Hosni Mubarak, relataram a sensação de “ver a história sendo escrita”. Entretanto, poucas análises que circularam em veículos internacionais captaram com profundidade como, por quem e desde quando essa história está sendo escrita. Uma das exceções é a análise do Professor de Relações Internacionais e Globais, Paul Amar, da Universidade Santa Bárbara, na Califórnia. Profundo conhecedor da realidade egípcia, ele aceitou convite da ABIA para compartilhar suas impressões sobre a situação no país numa conversa que aconteceu no dia 14 de fevereiro.

Paul Amar em visita à ABIA

Logo no início do encontro realizado na ABIA, Paul questionou a obsessão da mídia ocidental com a Irmandade Muçulmana. De acordo com ele, a gama de movimentos sociais no Egito é muito ampla e o temor de um regime fundamentalista islâmico é infundado. Além de representar menos de 7% da identidade política da população, a Irmandade congrega 4 tendências distintas, incluindo correntes progressistas de jovens e de mulheres. “Mesmo as alas conservadoras podem ser consideradas mais liberais que movimentos religiosos de muitos países ocidentais”, disse ele.

Para o pesquisador, “não interessa tanto que existam movimentos laicos e movimentos da religião, e sim que existe um espectro de movimentos com dinâmicas éticas, morais, religiosas de gênero e sexualidade de vários tipos”. Paul considera que nesse momento não há uma tendência dominante no país, mas destaca que jovens e mulheres desempenharam um papel central na revolução.

Uma revolução que não começou a ser escrita no dia 25 de janeiro, data das primeiras aglomerações na praça Tahrir e do início da chegada de jornalistas estrangeiros ao país, e sim há pelo menos dez anos. Nesse período, houve uma redução da participação dos EUA e da U.E na economia egípcia, paralela a um aumento de investimentos vindos de países como Brasil, China e Rússia. Também nesse período o surgimento de novos movimentos ligados ao trabalho pôde ser observado. Além disso, durante os últimos dez anos, as práticas de abuso sexual cometidas pelas forças policiais têm sido um tema recorrente de discussão no Egito. Na análise de Paul, esses três aspectos estão conectados e criaram condições para a queda de Mubarak.

Como conseqüência dos investimentos feitos por países como Brasil e China, muitas fábricas foram criadas no Egito. Em boa parte delas, a força de trabalho é majoritariamente feminina. Paul ressalta que esse novo grupo social, composto especialmente de jovens, é muito organizado e mobilizado, e foi fundamental no Movimento de 6 de abril de 2008, quando a economia do país foi totalmente paralisada por manifestantes.
Outro grupo ligado ao trabalho que ganhou força durante o governo Mubarak foi o de microempresários. Isso porque as reformas conduzidas sob tutela do FMI eliminaram muitos cargos públicos, ocupados especialmente por mulheres. A alternativa, impulsionada pela oferta de crédito, foi a abertura de pequenos negócios como cafés-internet, lojas de reparo de eletrônicos, etc.

O que esses grupos desenvolveram simultaneamente, além da autonomia política e econômica, foi o ódio em relação às forças policiais. Como a polícia era usada para fazer cobranças em nome dos bancos, se tornaram comuns práticas de extorsão e tortura nesse setor de microempresas. “Isso eu vi continuamente, a polícia prendendo, pedindo dinheiro, torturando e violando sexualmente quem não tinha como pagar”, relata Paul Amar.

Foi nesse cenário que o abuso sexual realizado por policiais se tornou uma prática sistemática no Egito. Não apenas contra mulheres, mas também contra homossexuais e contra todos os dissidentes que resistiam à ação policial. Para Paul Amar, não se tratava apenas de uma questão de violência de gênero ou contra minorias, mas um modo adotado pelo Estado para gerar medo nos mais variados setores.

Foto: Lefteris Pitarakis / AP
Foto: Lefteris Pitarakis / AP

Quando enfim esse medo virou revolta, a retribuição foi surpreendente. Em resposta aos anos de humilhação e abusos sexuais, muitos manifestantes optaram por beijar os policiais. Para Paul “beijar um policial é como contradizer todas as violações que ele fez. Foi algo muito mais lindo que a guerra de flores dos anos 70.”

Esse resgate da dignidade da nação já era algo defendido pelas forças armadas, também descontentes com a ação violenta da polícia. Durante o governo Mubarak, o exército foi impedido de intervir na ação policial. “Desde alguns anos sentimos que o exercito quer intervir”, observa Paul. Além disso, por ter muito controle sobre terras e empreendimentos como hotéis e shoppings, o exército se sentia afetado pelas políticas de privatização implementadas por Gamal Mubarak (filho de Hosni). “Esse ‘pacote Mubarak’, de Estado policial truculento e hiperprivatizações, foi também rejeitado pelas forças armadas”.

Por ter se afastado do exército e até de grandes empresários egípcios insatisfeitos com a falta de mentalidade nacionalista, o governo Mubarak ficou sem apoio.“Nesse momento, essas novas tendências todas se entendem como aliadas. Por isso foi uma grande revolução, uma revolução de verdade. A eliminação de uma classe econômica inteira que era essa oligarquia de Mubarak, que roubou 70 bilhões da economia, e a eliminação de todo um estado policial, substituído por um estado militar e de movimentos sociais.”

Heróis

“O Egito está prestes a ter uma revolução de facebook?” perguntou uma manchete no site da revista Americana Time, no dia 24 de janeiro, véspera do primeiro dia de protestos. “A gente viu a revolução através das novas mídias, mas as novas mídias não dirigiram a revolução”, disse Paul Amar na visita à ABIA, no dia 14 de fevereiro. Um dos ícones dessa associação – vista como exagerada pelo pesquisador – da internet com os protestos foi o empresário do Google Wael Ghonim. Detido no dia 28 e torturado pelas forças de repressão, ele foi liberado após alguns dias e concedeu uma entrevista emocionada em rede nacional. De acordo com Paul, uma conseqüência imediata foi a aparição da elite egípcia na praça Tahrir, epicentro dos protestos.

Muito mais significativa na opinião do pesquisador foi a microempresária Asmaa Mahfouz, que atraiu muita atenção internacional ao lançar vídeos no youtube, mas que também enfrentou riscos e o cansaço de três dias sem dormir para distribuir 50 mil panfletos nos bairros operários do Cairo. Para ele, trata-se de um exemplo emblemático de que a história dessa revolução foi escrita por movimentos sociais com bases em espaços físicos. “Inclusive o movimento contra a brutalidade policial começou em cafés-Internet, que eram um dos principais alvos de extorsão, e não na Internet.”

Asmaa representa ainda o gênero que mais tem gerado transformações no Egito. Seja a ala feminina da Irmandade que tem conquistado cada vez mais cargos no parlamento e no poder judiciário, sejam as trabalhadoras que se libertaram com beijos da violência policial. Como essas mulheres que mobilizaram o país vão lidar com o machismo protetor do exército, que durante alguns dias retirou-as dos protestos nas ruas, é apenas uma das muitas dinâmicas  a serem observadas nesse novo Egito.

> Leia Influência de Internet no Egito é exagerada, diz analista, matéria de Claudia Antunes na Folha de São Paulo

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