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Religião e eleições*

Religião e eleições*

Maria das Dores Campos Machado**


A grande importância que o tema do aborto adquiriu no debate público e na agenda política dos candidatos ao cargo mais importante do poder executivo no Brasil, a Presidência da República, antecipa os desafios a serem enfrentados pelos movimentos feministas no próximo governo, mas também põe em cheque uma série de idéias do senso comum sobre o universo evangélico brasileiro e, mais precisamente, sobre a atuação política dos pentecostais.

Um primeiro ponto a ser destacado se refere ao fato de que num pleito onde, pela primeira vez em nossa sociedade, duas mulheres disputaram uma eleição à Presidência da República e receberam 66% dos votos validos no primeiro turno, o avanço das conquistas feministas ficou ofuscado pela importância que passou a ter a posição e o engajamento dos líderes religiosos – católicos, espíritas, evangélicos – nas campanhas das duas candidaturas femininas e na discussão em torno do aborto.

Ainda que a posição em defesa da vida perpassasse os diferentes segmentos cristãos, deve-se registrar que no primeiro turno ocorreu uma divisão tanto entre os católicos quantos entre os evangélicos em torno das duas candidaturas femininas. No campo católico, enquanto alguns líderes, como o bispo da Diocese de Garulhos, D. Luiz Gonzaga Bergonzini, manifestaram-se publicamente contra Dilma e o PT pelas posições do partido em relação ao tema, conclamando os fiéis a votarem em políticos compromissados com a defesa da vida, outros membros da hierarquia católica, como o sacerdote Gabriel Cipriani, foram ao encontro de Dilma com os Cristãos realizado em Brasília no dia 29 para tratar da temática e gravou depoimento de apoio à sua candidatura, afirmando acreditar no compromisso da candidata em manter o diálogo com os grupos religiosos em relação a esta questão.

No campo evangélico, caracterizado pela heterogeneidade e pela intensa competição entre os grupos confessionais, também se verificou uma profunda divisão com alguns líderes apoiando Dilma Rousseff e outros defendendo a candidatura de Marina Silva, uma pentecostal cujo partido tem uma posição bem mais liberal do que a de sua candidata. Assistiu-se, por um lado, à distribuição gratuita para os fieis pentecostais de DVDs do Pastor Silas Malafaia em templos pentecostais do Rio de Janeiro, assim como do vídeo do Pastor batista Paschoal Piragine Jr do Paraná pregando votos contra a candidatura que defendia o tratamento do aborto como uma questão de saúde pública. Por outro lado, constatou-se que cartas de apoio foram veiculadas em blogs e sites pessoais e institucionais, como a do bispo Edir Macedo da Igreja Universal do Reino de Deus e declarações de voto e confiança na candidata petista foram gravadas por parte de líderes das mais distintas denominações: um dos mais proeminentes é o Pastor Manoel Ferreira da Assembléia de Deus demonstrando que o conservadorismo moral existente nos segmentos pentecostais  encontra no pragmatismo de vários líderes um poderoso antídoto para uma posição alinhada em favor da candidatura da “irmã” de fé, que desde o início de sua participação na disputa eleitoral deixou claro sua posição contra a descriminalização do aborto e afinada com os valores tradicionalistas do pentecostalismo.

Deve se destacar ainda que Marina Silva, embora conte com inegável carisma e uma postura física mais próxima da base social do movimento pentecostal, partilhou com Dilma e Serra os votos dos eleitores pentecostais. A votação da representante do Partido Verde, apesar do aumento surpreendente na última semana, não pode ser explicada apenas pelo voto evangélico. Se para além da confissão religiosa, a história de vida de Marina apresenta muitos pontos de contato com a da grande maioria dos pentecostais, o tamanho e a ideologia do Partido Verde serviram de contraponto na disputa dos votos nesse segmento social. Dito isso, argumento que a definição dos votos dos eleitores pentecostais passa por muitas outras variáveis do que a simples confissão de fé do/a candidato/a.

Em suma, se os votos dos católicos, evangélicos e espíritas – grupos confessionais que tendem a ter posições mais inflexíveis com relação ao aborto – se distribuem entre os candidatos, não faz sentido os dois candidatos que disputam a Presidência da República no segundo turno caírem na armadilha de pautar o debate pelos temas morais que só interessam aos tradicionalistas e fortalece os atores religiosos que procuram fazer de uma questão que atinge milhares de mulheres brasileiras uma moeda de troca no jogo eleitoral. As trajetórias políticas de José Serra e Dilma Rousseff têm mais afinidades com a conquista histórica do Estado laico do que com a interferência das instituições religiosas na política institucional. Da mesma forma, os dois candidatos têm clareza dos custos de uma legislação restritiva no campo da interrupção da gravidez para a saúde pública e sobre quem recai o ônus da criminalização do aborto e, por isso mesmo, não podem abandonar o compromisso com as mulheres mais pobres de nossa sociedade que serão as mais prejudicadas com esse uso eleitoreiro do tema do aborto.

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* Artigo publicado no jornal O Globo de 17/10/2010

** Professora da Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro



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