Internet e sexualidade a partir do IGF 2010
Por Marina Maria*
Entre 14 e 17 de setembro de 2010, aconteceu em Vilnius, na Lituânia, o Fórum de Governança da Internet (IGF, do inglês Internet Governance Forum), realizado desde 2006 pela Secretaria Geral das Nações Unidas, a fim de incluir oficialmente a questão da governança da internet nas agendas diplomáticas, conforme recomendação da Cúpula Mundial sobre a Sociedade da Informação (CMSI). Tive a oportunidade de participar do IGF 2010, representando o secretariado brasileiro do Observatório de Sexualidade e Política (SPW), a convite da Associação para o Progresso das Comunicações (APC), por integrarmos a equipe brasileira do EroTICs: sexualidade e internet – um projeto de pesquisa exploratório, coordenado pelo Programa de Apoio a Redes de Mulheres da APC. Juntamente com representantes de projetos e da equipe da APC, nossa atuação foi no sentido de tentar pautar temáticas associadas à internet e sexualidade nos workshops e sessões principais, chamando atenção para dimensões dos direitos humanos e das expressões de sexualidade e gênero no contexto da internet. Além disso, também cobrimos algumas atividades do fórum, por meio da postagem de conteúdos no site da publicação GenderIT, da APC, e também no Twitter.
Nesta quinta edição, o IGF teve mais de 2 mil pessoas inscritas, com representantes de 107 nacionalidades, de diferentes setores, sendo 25% provenientes do governo, 23% do setor privado, 23% de setores técnicos e acadêmicos, 21% da sociedade civil, 5% de instituições intergovernamentais, e 4% da mídia. Com relação ao recorte de gênero, do total de participantes, 36% eram mulheres e 64% homens, com uma faixa etária média de 41 anos, revelando que a participação das mulheres ainda é consideravelmente menor do que a de homens – embora informações dos membros do grupo de trabalho apontem um aumento considerável se comparada às edições anteriores –, assim como que a presença de jovens neste espaço ainda é muito pequena, mesmo que representem grande parte dos/as usuários/as da internet no mundo.
A programação foi composta por sessões principais e workshops, de forma que os workshops se distribuíram de acordo com os seguintes grandes temas: Crianças e pessoas jovens; Recursos críticos na internet; Desenvolvimento; Acesso e diversidade; Segurança, abertura e privacidade; Questões emergentes / Cloud computing; e Construção de capacidade. Depois dos workshops de cada área temática, era realizada uma sessão principal em que os coordenadores das sessões menores apresentavam os principais pontos debatidos, a fim de identificar e compartilhar tendências dos debates e questões mais relevantes.
Ainda que o grupo de trabalho do IGF evidencie um crescimento na participação de mulheres e que a participação de mulheres tenha sido um critério para a seleção dos workshops, o mesmo não se pode dizer do número de debates voltados para discutir o uso da internet para tratar de questões de sexualidade, direitos das mulheres, equidade de gênero, diversidade sexual e direitos sexuais e reprodutivos. Se considerarmos o total das atividades da programação oficial, apenas três sessões trataram diretamente de questões associadas a tais temáticas, sendo que duas foram workshops (Direitos Sexuais, abertura e sistemas regulatórios e Protegendo direitos das mulheres: conteúdo na Internet a partir de uma perspectiva de gênero) e a terceira uma reunião da Coalizão Dinâmica de Gênero – aliás, todas essas atividades contaram com a participação e mobilização da APC. Os dois workshops em questão faziam parte, respectivamente, dos grandes temas Segurança, abertura e privacidade e Acesso e diversidade e a tentativa foi explorar, com estes debates, outras abordagens ao se tratar de sexualidades e direitos humanos na internet, evidenciando sim as possibilidades de riscos, danos, explorações, abusos e violação de direitos, mas também as múltiplas formas e percepções de uso de tal espaço na promoção, sobretudo, dos direitos das mulheres e dos direitos sexuais, a partir de experiências captadas em países que fizeram parte da pesquisa EroTICs, por exemplo.
No entanto, ao passo que se identifica este número limitado de debate sobre sexualidades e gênero, é possível observar na programação do IGF que a temática Crianças e pessoas jovens foi definida como uma grande área, o que deu lugar a oito workshops sobre temas como proteção e seguranças das crianças na internet, juventude, desenvolvimento de medidas e mecanismos de combate a crimes e violação de seus direitos. Essa significante presença de sessões com esta abordagem evidencia o que é um grande desafio para o IGF: como conciliar em sua agenda pautas de ordens diversas e de uma maneira não conflitante, sem tender a hierarquizar, diante de tantos conflitos de interesse, direitos?
Não se trata aqui de contestar ou minimizar a necessidade de que as questões associadas à proteção das crianças na internet sejam tratadas com prioridade pelo IGF – sobretudo em razão da evidência disponível acerca de casos de imagens de abuso e exploração sexual de crianças e adolescentes. No entanto, casos de violação dos direitos de mulheres e tantos outros grupos sociais e etários na internet também são evidentes, assim como o uso bem sucedido deste espaço para que pessoas promovam direitos humanos, se mobilizem e compartilhem informações diversas. O que nos chama a atenção é que essa disparidade de sessões no IGF pode refletir uma tendência no debate sobre internet, que diz respeito a fortalecer a implementação de medidas de controle, vigilantismo e excessiva proteção, o que pode gerar efeitos danosos ao direito à liberdade de expressão e à privacidade, sobretudo quando se trata de temas associados à sexualidade e afins na internet, como se falar de sexo ou de qualquer questão relacionada aos direitos sexuais fosse um problema ou abrisse precedente para um controle.
Embora poucas, as mesas sobre temas de sexualidade e gênero na Internet tiveram um debate interessante e de qualidade, com reflexões neste sentido. A sessão Direitos Sexuais, abertura e sistemas regulatórios (veja a transcrição em inglês), aconteceu no primeiro dia de IGF, com a moderação de Jac sm Kee, coordenadora do projeto de pesquisa EroTICs, e com a participação de Tamara Qiblawi, da equipe EroTICs do Líbano, Clarissa Smith, da Universidade de Sunderland (Reino Unido), e Joy Liddicoat, da Comissão de Direitos Humanos da Nova Zelândia. Nesta ocasião, também foi possível ver as primeiras reações das pessoas quanto às análises e observações decorrentes do projeto de pesquisa EroTICs, já que Tamara falou dos achados do Líbano e sobre como a internet teve papel estratégico no fortalecimento do movimento queer por lá. Ela também apresentou alguns exemplos de sites e outros fóruns online em que pessoas LGBT se articulam e se relacionam, o que contribuiu para a consolidação de uma rede queer naquele país. Clarissa Smith falou a respeito da rede sobre obscenidade, uma rede do Reino Unido que tem a intenção de examinar o que está acontecendo atualmente, no século 21, com relação à sexualidade, sexo, mídia e tecnologia. Entre as questões mais interessantes que Clarissa levantou, destaco a constatação dela de termos uma explosão de comunidades sexuais online e novas formas de trabalho sexual e proliferação de pornografia pela Internet, o que, ao mesmo tempo, tem sido usado como argumento para proteger crianças, famílias. Ela ressaltou que a pornografia se tornou um fácil bode expiatório para todos os tipos de problemas que merecem medidas de regulação e proteção. Diante disso, ela falou do processo de sexualização de tudo e falou da importância de pensar não apenas que as pessoas produzem e acessam pornografia na internet, mas sim por que o fazem e recorrem às novas tecnologias para tanto. Já Joy Liddicoat, da Nova Zelândia, apresentou informações sobre sexualidade e sistemas regulatórios, dando exemplos de formas de engajamento que ela tem observado no país dela, como comissária de direitos humanos.
A segunda sessão com este enfoque foi a Protegendo direitos das mulheres: conteúdo na Internet a partir de uma perspectiva de gênero (veja transcrição em inglês), realizada no último dia do IGF, numa iniciativa da APC junto com o Conselho da Europa. Desta vez, estiveram presentes Maya Indira Ganeshi, representante da equipe EroTICs na Índia, e Katharine Sarikakis, do Instituto de Estudos de Comunicações da Universidade de Leeds, no Reino Unido. Maya lembrou que a pesquisa EroTICs foi bem curta e apresentou alguns achados em termos das formas que as mulheres entre 18 e 25 anos de classe média e baixa têm usado a internet em Mumbai – segundo ela, o grupo de usuários de Internet que mais cresce na Índia – e que tipos de danos e riscos tais mulheres enfrentam neste espaço online. Ao mesmo tempo em que a mulher indiana é tão monitorada quanto a aspectos como modo de vestir, se é casada ou não, é possível também achar formas de negociar, resistir e lidar com esse vigilantismo presente, inclusive na internet. Ela lembrou que na Índia há uma legislação voltada para regulação das novas tecnologias da informação e há casos no país de sites bloqueados pelo governo em função do seu conteúdo, como o blog Savita Bhabhi, um blog de cartoon em que uma mulher fala de pornografia e conta detalhes de suas aventuras sexuais. Diante de diferentes mecanismos de controle e situações em que mulheres indianas tiveram seus direitos violados na web, a pesquisa evidenciou que as entrevistadas têm consciência que precisam aprender como proteger sua reputação e imagem neste contexto de pânico moral e censura de conteúdos e buscam informações neste sentido.
Ainda houve, como disse antes, uma reunião da Coalizão Dinâmica de Gênero no último dia (veja transcrição em inglês), que buscou pensar em estratégias e no papel dessa rede no IGF para pautar questões associadas aos direitos das mulheres e ao acesso de mulheres a internet. Embora não tenha acompanhado esta atividade, diria que promover esse debate num espaço predominantemente masculino, do Norte Global, e que parece entender acesso e diversidade envolvendo apenas alguns grupos mais vulnerabilizados, ainda é um desafio ao IGF, mas que tem sido problematizado e pensado a partir de uma articulação das próprias mulheres.
Da minha parte, digo que participar do IGF foi uma experiência interessante, ao mesmo tempo em que muito inquietante, a começar pela grandiosidade de um evento associado à ONU, que implica em todo um rigor e controle em termos de segurança que eu não tinha visto antes. Sem contar a multiplicidade de setores, interesses, realidades, países e abordagens acerca da internet evidentes. Em diferentes momentos, ficava me perguntando onde, de fato, todas as reflexões e questões ali compartilhadas chegariam concretamente e como poderiam impactar no uso propriamente dito da internet, sobretudo por mulheres e na promoção dos direitos humanos. Não tenho dúvidas que as reflexões e abertura de diálogo envolvendo atores tão diversos seja um grande passo na tentativa de pensar em melhores práticas do uso deste instrumento mais que essencial na sociedade atual e com impactos de ordens diversas. Fico na expectativa que, de fato, este processo leve a algum lugar e que venham o IGF 2011, em Nairobi, Quênia.
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* Marina Maria é jornalista e assistente de comunicação e projetos do Observatório de Sexualidade e Política (SPW).