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5 milhões de mulheres e os direitos dos nascituros

5 milhões de mulheres e os direitos dos nascituros

Por Jandira Queiroz¹

A revista brasileira Época publicou, na edição de 22 de maio de 2010, matéria sobre a primeira pesquisa nacional sobre interrupção de gravidez, chamada Pesquisa Nacional do Aborto (PNA), feita em janeiro de 2010 pelo Ibope e elaborada pelo Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero, a Anis. A pesquisa indica que 5 milhões de brasileiras entre 18 e 39 anos já cometeram pelo menos um aborto, o que corresponde a 15% da população feminina no auge da idade reprodutiva.

O estudo, que traz dados assumidamente subdimensionados porque se limitou a consultar domicílios urbanos e mulheres alfabetizadas, desconstrói mitos e condicionamentos sobre as mulheres que abortam, revelando que estas podem ser de todas as classes sociais, de todas as faixas etárias, com variado grau de escolaridade, casadas ou solteiras, mães de pelo menos um filho ou filha e que podem ser religiosas, praticantes ou não. Segundo a antropóloga Débora Diniz, co-autora da Pesquisa Nacional de Abortos, a mulher que aborta “não é uma outra, é uma de nós. É a nossa colega, a nossa vizinha, a nossa irmã”.

Enquanto a edição da revista era finalizada, a Comissão de Seguridade Social e Família da Câmara dos Deputados aprovou (19 /5/2010) o substitutivo da deputada Solange Almeida (PMDB-RJ) ao Projeto de Lei 478/07, dos deputados Luiz Bassuma (PV-BA) e Miguel Martini (PHS-MG), que cria o Estatuto do Nascituro. O texto define que a vida começa na concepção.

Nascituro é o ser humano concebido, mas ainda não nascido. Este conceito inclui os “seres humanos” concebidos in vitro, mesmo antes da transferência para o útero da mulher. O Estatuto, caso seja aprovado, inviabiliza não só o aborto conforme autorizado pelo Código Penal hoje, mas também as pesquisas com células-tronco e outras iniciativas.

Alguns setores da sociedade podem reconhecer a humanidade do nascituro, por pertencer a um código genético humano; mas a sociedade moderna já dispõe de suficiente aporte científico para entender que a definição de pessoa humana acontece a partir de determinada concepção moral e de determinada crença. Não cabe a nenhuma legislatura de qualquer Estado laico a imposição desta ou daquela concepção que não possa ser compartilhada pelos diversos sujeitos morais e de direitos, pois fere os princípios, direitos e garantias fundamentais que garantem a liberdade de crença e pensamento e a igualdade dos sujeitos.

No campo das ciências médicas e biológicas, o único consenso existente sobre a condição do feto é que ele é um estágio do desenvolvimento celular. Considerar o feto ou um estágio desse processo evolutivo da vida humana como pessoa é admitir uma única concepção válida, logo dogmática. Portanto, uma proposição como é o Estatuto do Nascituro viola não só a liberdade de crença, mas também a liberdade de pensamento.

O antropólogo peruano Jaris Mujica², em seu livro Microscópio: de la bioética a la biopolítica, faz a seguinte consideração:

A pessoa não é produto da reprodução sexual. A vida-da-pessoa não é a mesma que a vida-biológica-do-vivente-humano. Além disso, para muitos sistemas culturais fica clara essa distinção, em que não todos os viventes humanos são considerados pessoas. Durante muito tempo e em vários lugares do mundo, ser-pessoa era um status que se deveria ganhar, pois era adquirido demonstrando certas conquistas ou passando por complexos rituais de passagem. Pessoa, então, não é uma categoria unitária, não é uma categoria biológica, não é uma categoria que provenha da natureza em si ou da profundidade da consciência em última instância. Trata-se de uma categoria cultural que em alguns casos se construiu através dos dispositivos dos sistemas teológicos, jurídicos ou políticos. A Pessoa, como conhecemos hoje, é uma construção recente cuja origem pode ser rastreada na história recente do ocidente. (p. 25)

E ainda:

Um ser vivo, um organismo, é entendido como um conjunto de átomos e moléculas que formam uma estrutura que se relaciona com o ambiente e que tem a capacidade de desempenhar funções básicas como nutrição e reprodução. Estas estruturas organizadas (em unidades celulares), mantêm equilíbrio interno (homeostasis), reagem a estímulos externos, atravessam processos metabólicos de desenvolvimento e podem se reproduzir. Porém, decidir em que momento pode-se falar de vida é um tema que não ainda não está esgotado. E nos seres humanos, se bem a pesquisa sobre a sequência reprodutiva já chegou a certos consensos sobre os dados do processo, isso não implica que se tenha chegado e um acordo sobre o momento em que se inicia a vida humana. (p. 62)

Se há o desejo na sociedade de refinar a legislação a ponto de prever proteções a seres ainda não nascidos, é justo que seus e suas representantes nas casas legislativas discutam a matéria, promovam o debate público e as pesquisas sobre o assunto e logo proponham medidas. Mas, por ora, a única questão passível de ser colocada em debate é em que momento o Estado deve começar a proteger o processo de desenvolvimento da vida humana, qual o grau de restrição à autonomia e liberdade dos sujeitos de direitos que se mostra razoável com a dignidade da pessoa humana, e até que ponto os direitos de uma vida humana em potencial devem se sobrepor àqueles outorgados a uma vida humana já vivente.

“Art. 4º – É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar ao nascituro, com absoluta prioridade, a expectativa do direito à vida, à saúde, à alimentação, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar, além de colocá-lo a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.”

“Art. 8º – Ao nascituro é assegurado, através do Sistema Único de Saúde – SUS, o atendimento em igualdade de condições com a criança.”

E nasce uma nova polêmica nacional, na esteira da alteração do texto do III Plano Nacional de Direitos Humanos (PNDH3), assinado pelo presidente Lula ainda no início de maio de 2010, indicando um movimento bem orquestrado pelas forças “pró-vida” no Brasil. O PNDH3 apenas reafirma o entendimento do aborto com grave problema de saúde pública e menciona serviços. Isso significa um retrocesso não apenas em relação à linguagem adotada pelo II PNHD, que recomenda revisão da legislação punitiva, como sobretudo em relação ao parágrafo 106k da Plataforma de Ação da Conferência de Pequim, de que o Brasil é signatário sem reservas.

Neste novo capítulo da saga contra o aborto e pela extinção dos direitos sexuais e reprodutivos, apesar de constar no substitutivo de Solange Almeida que o texto aprovado não altera o Artigo 128 do Código Penal (autoriza o aborto praticado por médico em casos de estupro e de risco de vida para a mãe), o artigo 12 do Estatuto do Nascituro professa que “é vedado ao Estado e aos particulares causar qualquer dano ao nascituro em razão de um ato delituoso cometido por algum de seus genitores.” O discurso de justificativa das vozes que defendem a aprovação do PL 478/07 diz que “a criança não pode pagar pelo erro dos pais”. E vão além dos limites aceitáveis do cinismo, quando dizem defender a “alegria das crianças por nascer”.

“Esperamos que esta Casa de Leis se empenhe o quanto antes em aprovar este Estatuto, para alegria das crianças por nascer e para orgulho desta nação, bem como para a alegria do ex-deputado Osmânio Pereira que pediu-nos para que novamente o colocasse em tramitação nesta nova legislatura.”

Último parágrafo da justificativa apresentada no PL 478/07 da Câmara dos Deputados

Algumas perguntas não querem calar. Que erro cometeu uma mulher que foi estuprada? E a mulher que tem uma gravidez com risco de vida, qual foi seu erro? E quanto às crianças nascidas e abandonadas às nossas portas, às nossas ruas, às nossas cadeias-para-crianças-sem-donos? Estas podem e devem morrer nas ruas, enquanto suas mães pagam penas nas cadeias ou morrem nos hospitais por abortos mal feitos, para deleite do senso de justiça religioso? E quem é Osmânio Pereira?

Paralelamente à discussão sobre o momento em que se dá o fenômeno da vida humana no processo de gestação, não se pode fazer vistas grossas ao apontamento da PNA: mais de 5 milhões de mulheres, cidadãs brasileiras vivas hoje, já abortaram. Como diz Marcelo Medeiros, pesquisador da UnB e co-autor da PNA, “é inviável continuar tratando todas elas como criminosas”.

A Pesquisa Nacional do Aborto representa uma valiosa ferramenta para as políticas de saúde pública no Brasil. Até agora, os debates sobre o aborto eram alimentados apenas por convicções pessoais e religiosas, pois não havia estatísticas confiáveis sobre sua prática. A PNA apresenta informações concretas para que legisladores e legisladoras e autoridades estatais possam tratar o assunto tanto na esfera da saúde pública como das políticas de segurança pública.

Os próximos capítulos desta trama prometem ação e adrenalina. Enquanto isso, podemos ficar imaginando como seria a Primeira Marcha Nacional de Nascituros, Embriões e Fetos na Esplanada dos Ministérios, marchando em defesa dos seus direitos e cidadania plena.

Leia mais notícias sobre a Pesquisa Nacional do Aborto e o Estatuto do Nascituro.

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¹ Assistente de Projetos do Observatório de Sexualidade e Política.

² MUJICA, Jaris. Microscópio: de la bioética a la biopolítica. PROMSEX: Lima, 2010. (Tradução livre de trechos do livro em espanhol).



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