Na espiral de notícias, manifestos, comentários que varreu o Brasil por efeito do episódio da Uniban, o artigo de Renato Janine Ribeiro publicado no suplemento MAIS da Folha de São Paulo (15/11/2009) tem méritos, mas também limites muito evidentes . Por exemplo, é instigante a observação feita pelo autor de que o ‘sexo’ tem um poder brutal de deflagrar emoções públicas e midiáticas. No dia em que Geisy foi atacada pelos/as alunos/as da Uniban, certamente, aconteceram no país centenas de episódios de violência, desrespeito à liberdade de expressão e inclusive violação da integridade física de outras mulheres, mas também de homens, meninos, meninas e pessoas idosas, em muitos casos perpetradas por particulares ou agentes do Estado. Mas, como bem sabemos, a maioria desses episódios não chegou às páginas dos jornais ou tela de televisão e os que chegaram não causaram maior escândalo.
Essa percepção de Janine Ribeiro evoca o texto clássico de Gayle Rubin (‘Thinking sex: notes for a radical theory of the politics of sexuality’, 1984), em que a autora interpreta o pânico moral instalado nas sociedade norte-americana em relação à pornografia e ao abuso sexual de crianças, como um efeito de deslocamento do sentimento de insegurança e incerteza, experimentando em outras esferas da vida que não a sexual. Segundo Rubin, especialmente em tempos de incerteza e insegurança, o pânico sexual tem enorme apelo pois produz um simulacro de coesão social onde, de fato, ela não existe. Isso por que o “sexo” opera como um pivot articulando público e privado, indivíduo e sociedade, moralidade e política.
Outro insight importante de Janine Ribeiro diz respeito aos desafios e complexidades que vêm à tona quando buscamos vincular sexualidade e direitos humanos. Nas palavras dele: “Para defender uma moça que gosta de mostrar o corpo, recorre-se à linguagem formal da profissão jurídica”. Como pesquisadora e ativista, tenho gasto bastante tempo pensando nisso e concordo plenamente. Trata-se de tarefa intelectual complexa e arriscada, como afirmam Alice Miller e Carol Vance (2004), ao refletir sobre a questão:
“O poder dos direitos humanos deriva de que invocam a noção de dignidade, criando parâmetros para julgar a ação do estado, e crescentemente, de atores não estatais. A sexualidade, por sua vez, na sua diversidade desacata normas. Mas ao mesmo tempo busca os direitos humanos para resistir aos parâmetros negativos (NA das leis e da cultura). Mas, como podemos desenvolver políticas baseadas em direitos que assegurem às pessoas a possibilidade de experimentar sexualidades ‘escolhidas’ sem coerção, e que também permitam conversações públicas mais diversificadas quanto ao pode ou não ser desejado e ser feito, sem que isso reforce inadvertidamente prescrições normativas da sexualidade e do prazer? Como assegurar que os direitos protejam e respeitem as sexualidades divergentes?” (‘Sexuality, Human Rights and Health’, Health and Human Rights, Vol. 7, No 2)
Exatamente em razão de tais complexidades e armadilhas, apreciei também a ênfase do artigo quanto à questão do desejo, que sublinha a volatilidade da sexualidade. Contudo, discordo, radicalmente, do apego do autor a concepções naturalistas ou fisicalistas do “sexo”, as quais, inclusive, o levam a resgatar – como fundamento de sua argumentação – o que há de mais positivista em Freud (o instinto heterossexual), deixando escapar o que ele tem de melhor para compreender a instabilidade e variabilidade da sexualidade humana: a fratura interna dos “sujeitos”, a bissexualidade infantil e a polimorfia sexual.
Esse traço essencialista forte constitui, ao meu ver, um obstáculo instransponível quando se trata de articular sexualidade e direitos humanos. Pois se o “sexo” está dado, se é “instinto”, se é traço imutável e universal da condição humana, estão fechadas as possibilidades para pensarmos a sexualidade como esfera à qual podem ser aplicados os critérios reflexivos e de razoabilidade que ancoram as premissas do direito moderno. Em tal perspectiva, o “sexo natural” seria como o “mal radical” –traço da queda dos humanos – que não é possível transformar.
Entretanto, se pensamos a sexualidade como alquimia complexa entre o que está dentro (genes, hormônios, libido) e o que está fora (linguagem, normas, habitus culturais e praticas sociais) – tal como elaborado por autoras como Judith Butler e Anne Fausto Sterling – abre- se um outro horizonte de flexibilidade e plasticidade. Nessa trilha é possível conceber a sexualidade – corpos, desejo, identidades, normas e práticas – como campo da experiência humana ao qual é possível aplicar os critérios de razoabilidade e princípios fundamentais de direitos como liberdade, privacidade e igualdade de tratamento perante a lei. Esse esforço conceitual, no qual muitas e muitos estamos engajadas, também implica interrogar categorias ocidentais do sexo – de que a noção de instinto é apenas uma ilustração – bem como reconhecer que os direitos humanos embora imprescindíveis são também insuficientes (Corrêa, Parker e Petchesky – Sexuality , Health and Human Rights, 2008).
Finalmente, mas não menos importante, causou-me espanto o viés marcadamente heterossexual, para não dizer sexista, das concepções de Janine Ribeiro sobre sexualidade e desejo. Numa sociedade nacional e numa cultura global em que muitos outros corpos, inclusive masculinos, estão expostos na publicidade, na televisão e na Internet, não faz nenhum sentido tratar o corpo feminino como fonte única e principal da incitação ao desejo. Nesse aspecto o artigo, remete à análise magistral de Peter Gay (Da Rainha Vitória a Freud) sobre o pânico que se instalou entre os homens, no fin de siécle europeu dos novecentos, quando o papel da mulher quanto à sexualidade feminina estavam em franco processo de transformação.
Aliás, suspeito que não sou a única a evocar Peter Gay. Ontem a coluna de Joaquim Ferreira dos Santos (O Globo, 25/11/2009) publicou uma nota sobre um debate organizado por psicanalistas cariocas para discutir o episódio UNIBAN a partir da seguinte pergunta: “Por que os homens têm tanto medo de mulheres vestidas de rosa ou de vermelho.”
¹ Agradeço à Valéria Pandjiarjian que foi com quem primeiro discuti os problemas do artigo de Renato Janine Ribeiro e que também foi a primeira leitora desse breve comentários.