Sxpolitics [PTBR]

Primeira sessão – Sexualidade, Estado e Processos Políticos

Dia 24/8/09 – manhã

Sonia Corrêa, Rafael de la Dehesa e Gloria Careaga
Sonia Corrêa, Rafael de la Dehesa e Gloria Careaga

A primeira sessão do Diálogo Latino-americano sobre Sexualidade e Geopolítica foi coordenada por Sonia Corrêa. Gloria Careaga, integrante do conselho diretor do SPW e co-secretária da Associação Internacional de Lésbicas e Gays (ILGA) e professora no Departamento de Psicologia da Universidade Nacional Autônoma do México (UNAM) comentou o texto panorâmico, “Sexualidades e políticas na América Latina: um esboço para a discussão”, preparado por Rafael de la Dehesa, professor de Sociologia da Universidade da Cidade de Nova York e da Faculdade de Staten Island, nos Estados Unidos, e Mário Pecheny, professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade de Buenos Aires.

O texto corretamente ressalta que uma análise de escopo regional implica sempre o risco de homogenizar indevidamente experiências muito heterogêneas em termos de países, experiências políticas e culturais, sexualidades. Além disso, a análise recupera a trajetória histórica dos debates sobre direitos sexuais e reprodutivos nos países latino-americanos identificando forças e tendências estruturais tais como: as independências de matriz liberal novecentista, a secularização de corte patriarcal, os regimes autoritários, os processo de re-democratização, as políticas neoliberais e as recentes vitórias eleitorais das esquerdas.

Também são analisadas instituições – estatais e religiosas – bem como os atores e atrizes sociais e políticos relevantes para compreensão da política sexual contemporânea: movimentos sociais clássicos, feministas, movimentos pela diversidade sexual, os ativismos nos campo de HIV/AIDS e trabalho sexual, grupos religiosos, setores médicos, entre outros.

No contexto de esforço analítico amplo e complexo, os autores pontuam momentos de inflexão que foram marcantes nesse percurso e buscam situar as políticas da sexualidade em relação aos grandes debates da sociologia e ciências políticas sobre as relações sociedade-estado e poder na América Latina: o tema da modernização ou modernidade.

Lembram que há paralelos flagrantes entre os debates sobre políticas sexuais, cidadania e direitos e os argumentos desenvolvidos por teóricos/as e pesquisadores/as acerca dos limites e possibilidades da inscrição da América Latina num processo transnacional de “modernidade”, e dos imensos desafios que isso implica em termos de secularização, democracia e desenvolvimento econômico.

Um dos sinais flagrantes da interseção entre política sexual e os debates sobre “modernidade” parece ser a adoção do discurso ou linguagem dos direitos como língua franca por parte de seus atores e atrizes. A despeito de sua matriz liberal, a linguagem dos direitos está incorporada ao vocabulário de indivíduos, grupos e movimentos inesperados, muito para além dos homens brancos, ocidentais, burgueses e proprietários (que foram, na origem, seus propagadores). Por outro lado, a proliferação e uso da linguagem de direitos coexiste com os limites e distorções da “modernidade latino-americana”, em particular a permanência de uma esfera privada desproporcionalmente ampla, e a extensão das relações privadas e pessoais ao âmbito público (Avritzer 2002: 73):

“… a incapacidade das instituições supostamente racionalizadas para subordinar os interesses particulares das elites contribui para: o clientelismo e relações de favor, que intervêm rotineiramente nas ações estatais formais; a impunidade sistemática e as experiências díspares do “estado de direito” numa mesma sociedade; e a persistência de um autoritarismo social que condiciona formas estratificadas de cidadania”.

O texto também revisita criticamente as concepções vigentes de “políticas públicas”, uma terminologia que hoje também está definitivamente incorporada ao vocabulário da política sexual em todos os países da região. Os autores lembram que o modelo clássico de política pública de corte administrativo e limitado à ação estatal está hoje superado. Na teoria política contemporânea os âmbitos de ação da “política pública” já não se circunscrevem ao plano nacional, mas são também pensados como globais e locais e envolvem uma extensa gama de atores não estatais.

Os autores sugerem que as políticas públicas em que estão envolvidos os atores e atrizes da política sexual devem ser pensadas no marco da “governamentalidade” (Foucault 2004; Lascoumes y Le Galès 2007), ou seja, como processos múltiplos e sempre contraditórios que contribuem tanto para a manutenção quanto para a transformação do ordenamento social e político. Enquanto ações dos estados, as “políticas públicas” combinam o “uso da força” e a “política” como ação instrumental, mas também implicam em dimensões expressivas e comunicativas (ou seja, produção de discursos, simbologias e imagens). Segundo Pecheny e La Dehesa as políticas públicas expressivas constituem, inequivocamente, uma das formas mais estendidas e freqüentes da resposta dos Estados às demandas das políticas sexuais na América Latina.

Adicionalmente, identificam como um paradoxo da política em geral e das políticas sexuais, em particular, na região: a brecha abissal entre a instituição formal de leis e políticas públicas e sua implementação efetiva. Em praticamente todos os países há políticas públicas voltadas a promover os direitos sexuais, que, na prática, ficam no papel. Por exemplo, no caso do Equador, cuja constituição foi uma das primeiras a contemplar a não-discriminação por orientação sexual, o acesso à justiça está marcado por desigualdades sociais e a influência da igreja católica e de outras vozes do conservadorismo religioso tem ganhado terreno nos seus esforços de oposição aos direitos sexuais e reprodutivos. Isso implica em reconhecer que:

“…a proliferação, no final do século XX, de movimentos feministas e femininos, de ativismos LGBT, de organizações de HIV/AIDS e de grupos de trabalhadoras/es sexuais, entre outros atores, tem transformado a esfera pública na qual se configuram e se entendem as sexualidades na região. Mas para ter uma compreensão dos ganhos destes movimentos, assim como de seus limites e desafios, é preciso tomar em conta os contextos políticos mais amplos nos quais eles têm se consolidado, os tempos históricos e sua articulação com outros atores”.

Outro desafio identificado pelos autores é traduzir o erótico ou uma noção de justiça erótica para as políticas públicas institucionalizadas. Segundo eles, a sexualidade constitui um terreno amplo e complexo de pensamentos, fantasias e desejos, valores, comportamentos e relações sociais, cuja tradução para a lógica e linguagem das políticas públicas pode resultar, por um lado, na cristalização de novas visões normativas particulares e estreitas, e, por outro, no reducionismo e simplificação deste vasto e heterogêneo campo em que se constituem e se transformam as subjetividades e demandas relacionadas à sexualidade.
:: COMENTÁRIOS ::

Gloria Careaga em seus comentários enfatizou aspectos relacionados à trajetória do feminismo e do movimento de lésbicas que, ao seu ver, mereceriam maior visibilidade no texto panorâmico. Lembrou, por exemplo, que a sexualidade foi um tema importante do feminismo latino-americano nos anos 1970, para depois perder densidade. Segundo ela, geralmente se pensa que a luta pela saúde sexual, os direitos reprodutivos e o aborto dêem conta das questões de sexualidade. Entretanto, de fato, as discussões sobre direitos sexuais no campo feminista são escassas e débeis. Além disso em anos mais recentes, o feminismo regional fez uma inflexão no sentido de discutir temas macro, restringindo o debate sobre intimidade e vida privada às lutas por legalização do aborto.

Isso tem reflexos na política sexual como um todo. Hoje em apenas três países da região é possível identificar conexões orgânicas entre política feminista, lutas por direitos LGBT e das trabalhadoras sexuais. Da mesma forma, muito embora em anos recentes os grupos e iniciativas lésbicas tenham se multiplicado e mesmo quando a sigla LGBT comece com o L, na maioria dos países a visibilidade é garantida por lideranças individuais e carece de uma base ativista mais organizada e vocal.

Gloria também chama atenção para a urgência de enfrentar o desafio da Interseccionalidade, não apenas no interior da política sexual, mas para além dela, pois pareceria que tanto o movimento feminista quanto o ativismo LGBT “padecem de um viés de classe média educada que dificulta sua aproximação com outros grupos sociais”.E, ainda, sublinhou o quanto hoje na América Latina a política se converteu num emaranhado complexo e contraditório:

“ O binarismo de esquerda/direita já não nos dá elementos suficientes para analisar o que acontece ao nosso redor. Um governo de ‘revolucionários’, como o da Nicarágua, aboliu o acesso ao aborto e persegue as feministas, ao mesmo tempo que descriminaliza as relações entre pessoas do mesmo sexo e são ocultados os dados acerca dos crimes de ódio contra pessoas trans… Em contraste, em um país governado por “conservadores”, como a Colômbia, foram adotados marcos legais de proteção aos casais do mesmo sexo e estão sendo implementadas políticas favoráveis à população LGBT.

Ela concordou com a análise de Pecheny e La Dehesa acerca de um enorme hiato entre leis e política públicas, por um lado, e as realidades das sexualidades, por outro. Mas sugere que essas “letras mortas” não estão apenas nas leis ou documentos governamentais, mas também podem ser identificadas nas declarações acerca dos ganhos obtidos pelos movimentos pela diversidade sexual, pois há uma distância significativa entre ser capaz de influenciar a gestão das políticas e, de fato, alterar as condições da vida cotidiana.

Olhando mais de perto o movimento pela diversidade sexual, Gloria lembra que suas lutas se concentraram nos esforços de despenalização e no campo de direitos específicos (como em relação ao HIV/AIDS ou união/casamento entre pessoas do mesmo sexo). Embora sejam importantes os ganhos conseguidos nesse campo, essa pauta não possibilitou até hoje a construção de uma agenda de cidadania sexual mais clara e ampla que permita, de fato, romper com estereotipo e estigmas. Concordando com os autores, ela pensa que os ganhos obtidos nas últimas décadas, podem ter sido efetivos para lutar contra a violência e criminalização, mas não tiveram tanta eficácia no que diz respeito aos direitos de livre expressão e no que diz respeito ao tema do prazer.

> Leia o resumo do painel 1



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