Dia 25/8/09 – manhã
O painel da sessão 3 foi coordenado por Lucila Esquivel, coordenadora da Associação de Trabalhadoras Sexuais do Paraguai, e contou com Ofélia Becerril, professora do Colégio de Michoacán, no México; Adriana Piscitelli, pesquisadora da Unicamp e coordenadora associada do Núcleo de Estudos de gênero PAGU; Maria Elvira Benítez, assessora da coordenação regional do Centro Latino-americano em Sexualidade e Direitos Humanos (CLAM); e Bruno Zilli,antropólogo também pesquisador do CLAM. Os comentários foram feitos por Lohana Berkins, presidenta da Associação de Luta pela Identidade Travesti e Transsexual (ALITT) na Argentina, e Miguel Muñoz Laboy, professor do Departamento de Ciências Sociais e Medicina da Universidade de Columbia e membro da equipe do Observatório de Sexualidade e Política.
Ofélia Becerril apresentou os achados de um estudo sobre sexualidade e migração em que se examinou a dinâmica migratória entre o México e o Canadá, cujas regras são definidas por um acordo bi-lateral, o Programa de Trabalhadores Agrícolas Temporais (PETA). Os/as migrantes, a cada ano, permanecem algumas semanas no Canadá trabalhando em setores da agroindústria, no período de colheita. E estão sujeitos a dispositivos de controle de sua sexualidade, tais como: estabelecimento de horários para encontros amorosos, vigilância permanente com câmeras de vídeo nos dormitórios e regulação estrita dos espaços de sociabilidade.
O desrespeito a essas regras pode significar deportação automática. Além disso, a experiência vivida por mulheres e pessoas homossexuais é ainda mais problemática, pois são objetos de controle, tanto por parte dos empregadores, quanto da própria comunidade migrante, que se rege por padrões heterossexuais restritos. O achado mais interessante da pesquisa, contudo, é que as pessoas resistem a essa lógica disciplinar, reafirmando seus desejos sexuais e desafiando abertamente os dispositivos de controle, como por exemplo, mantendo relações sexuais em locais proibidos. Ofélia também observou que, a despeito das normas sexuais restritas nos locais de trabalho, a chegada dos migrantes mexicanos suscita, a cada ano, uma migração interna de trabalhadoras sexuais que vão de Toronto e Montreal a essas zonas para prestar serviços sexuais.
Adriana Piscitelli, por sua vez, analisou o fluxo de brasileiras que migram para a Espanha a fim de trabalhar na indústria do sexo. As mulheres entrevistadas são, na maioria, muito jovens. Mas não são nem muito pobres, nem de baixa escolaridade, vêm dos setores de classe média baixa e têm níveis de escolaridade iguais ou superiores à média brasileira. Embora algumas sejam negras, a maioria das entrevistadas se considera branca. Muitas nunca haviam trabalhado na indústria do sexo no Brasil, mas há também mulheres de faixa etária mais avançada que eram prostitutas, mas estavam “perdendo mercado” em razão da idade e emigraram em busca de alternativas.
Neste sentido, a pesquisa explorou três aspectos: Como se dá a decisão de migrar? Quais são as possibilidades de inserção na indústria do sexo espanhola? Quais são os efeitos dessa decisão na trajetória destas mulheres?
Os relatos das entrevistadas revelam que a decisão de emigrar é motivada tanto por aspirações de mobilidade social e econômica – já que o trabalho sexual paga melhor na Espanha do que no Brasil –, quanto por um imaginário de aventura e glamour relacionado ao projeto de viver na Europa. Ao situar a experiência dessas mulheres no contexto de controle de migração, regulação da prostituição e da crise econômica de 2008, Adriana identificou como efeitos mais significativos desses condicionantes a violência sistemática por parte das autoridades migratórias, a crescente violência policial nas ruas e, desde o ano passado, perdas econômicas que levaram algumas dessas mulheres a voltar (ou pensar em voltar) ao Brasil.
A pesquisa informa que, a despeito de dificuldades, um terço das entrevistadas considera que teve êxito ao sair do país para trabalhar na indústria do sexo na Espanha. Isso porque tiveram ganhos financeiros maiores do que se ficassem no país. Muitas enviam remessas de dinheiro para o Brasil, seja para apoiar suas famílias, seja como investimento. Uma das entrevistadas, por exemplo, é hoje dona de uma fazenda em Rondônia e paga os/as trabalhadores/as desse empreendimento com os recursos que ganha como prostituta na Espanha. Adriana conclui, portanto, que o fluxo internacional de pessoas relacionado ao mercado do sexo deve ser compreendido e analisado como parte do movimento mais amplo de migração internacional, pois suas motivações e efeitos não diferem, substantivamente de outros deslocamentos populacionais transnacionais.
Já a pesquisadora Maria Elvira Benítez apresentou resultados de um estudo sobre o mercado pornográfico brasileiro que fez parte de sua tese de doutorado. Ela iniciou sua apresentação lembrando que a pornografia não é um fenômeno contemporâneo, mas tem uma longa história vinculada ao crescimento da cultura de massa e da indústria de entretenimento. A pesquisa investigou a configuração e lógica da produção de filmes pornográficos em São Paulo (que é o grande centro produtor do país). Segundo ela, a produção de filmes e vídeos pornôs comporta uma complexa cadeia produtiva, na qual:
“O dinheiro determina os ritmos e funcionamentos do processo de elaboração de um filme: o recrutamento de elenco, a negociação dos cachês, o orçamento destinado às filmagens (dependendo também da capacidade econômica da produtora, a disposição das performances sexuais, a qualidade e trajetória de atores e atrizes, as locações, as práticas, corpos e repertórios sexuais que se pretende expor)”.
Este mercado implica também num elevado grau de rotatividade das pessoas envolvidas, especialmente atrizes a atores. A exigência de “renovação” é particularmente intensa no caso das mulheres, travestis e homens que atuam em filmes para gays. Já os homens heterossexuais permanecem no mercado por mais tempo. Embora a pornografia heterossexual seja dominante, tanto no mercado interno quanto no externo, o Brasil detém um fatia importante do nicho de mercado internacional em que circulam vídeos de pornografia com travestis. O Brasil também se destaca na exportação de filmes de pornografia bizarra ou dos fetiches, como aqueles que exibem sexo feito com pessoas muito gordas ou com animais.
María Elvira finalizou observando que na produção e no mercado pornográfico também se identificam moralidades e hierarquias sexuais. Atores e atrizes que atuam na chamada pornografia bizarra recebem cachês mais baratos e são estigmatizadas nos circuitos de produção. Em contraste, “homens” que têm “bom desempenho sexual” e celebridades e mulheres jovens que fazem o estilo “patricinha” são mais respeitadas e valorizadas. Ela concluiu sublinhando que, assim como a sexologia e a biomedicina, a pornografia também produz classificações, taxonomias, normalidades e perversidades.
Bruno Zilli encerrou o painel compartilhando reflexões inspiradas em uma pesquisa sobre comunidades virtuais BDVSM e em achados, ainda muito preliminares, de uma pesquisa sobre regulação da sexualidade na Internet. Trouxe dados sobre uso da Internet no Brasil, informando que, segundo o IBOPE, 38.2 milhões de pessoas acessam Internet de casa no país, das quais 87% têm acesso à banda larga. Também informou que é muito evidente o uso do MSN por 75% dos/as internautas, dos/as quais 48% têm entre 6 e 24 anos, e do Orkut, que contava com mais de 23 milhões de cadastros em 2008, ou seja, 53% dos/as usuários/as da plataforma no mundo segundo o Google.
Citando Pierre Lévy, que interpreta o virtual como uma nova “modalidade do ser”, Bruno enfatizou que as pessoas engajadas no ciberespaço o percebem como um lugar real. O uso de expressões como navegar, ir, acessar um site, informam que o mundo on line é vivido como espaço móvel no interior do qual as pessoas também se movem. Isso altera, radicalmente, noções de tempo e presença e exige que problematizemos a oposição convencional entre real e virtual. O pesquisador lembrou ainda que a Internet desempenha um papel crucial nas dinâmicas contemporâneas de sociabilidade e auto-expressão. Assim, a Internet não só contribuiu para novas conectividades no interior da política sexual, como abriu amplo espaço para o surgimento de comunidades ligadas a identidades e práticas sexuais específicas, como no caso da comunidade BDVSM.
Trocas sexuais são hoje um componente nodal da Internet, comportando modalidades que vão do sexo virtual aos namoros e casamentos. Mas ao mesmo tempo, a Internet se converteu num espaço perigoso que precisa ser controlado ou regulado, especialmente no caso das crianças, objetos clássicos da tutela e do disciplinamento sexual.
:: COMENTÁRIOS ::
Após as apresentações, Lohana Berkins iniciou pontuando que ela e suas companheiras de organização não reconhecem a prostituição com um trabalho e, por isso, preferem se referir a trabalhadoras do sexo como pessoas em situação de prostituição. Consideram que prostituição é uma situação de transição que as pessoas podem viver em algum momento de suas vidas, mas que é preciso assegurar a elas “opções de saída”. Como feminista que já viveu em situação de prostituição, ela considera que a prostituição é uma forma específica de regulação da sexualidade. Assim, considera que prostituição existe porque as sociedades a legitimam, ainda que na marginalidade, e os estados, sejam socialistas ou capitalistas, se beneficiam dos rendimentos que o mercado do sexo produz. Por outro lado, as pessoas em situação de prostituição mesmas não se beneficiam desses ganhos. Segundo Lohana, as prostitutas nunca ficam ricas.
Ela ainda sublinhou que há diferenças significativas entre as condições experimentadas por mulheres e por travestis e transexuais em situação de prostituição. Isso porque as sociedades e os estados impõem a travestis e transexuais a prostituição como única alternativa de sobrevivência. É preciso perguntar: por que as travestis, ainda que famosas, só têm seu corpo reconhecido e valorizado no mercado sexual? Na sua avaliação, essa é uma lacuna importante do texto panorâmico. Finalmente, sugeriu que ao pesquisar e refletir sobre prostituição, é fundamental incorporar o debate sobre corporalidades, no sentido de problematizar a noção dominante que aponta para a existência de uma linearidade, uma unicidade entre corpos femininos.
Miguel Muñoz-Laboy usou quatro personagens para ilustrar seus comentários: Angélica, uma atriz travesti que grava um filme no Rio de Janeiro para a Internet; Camila, uma trabalhadora sexual brasileira que está em Barcelona; Oliver, um ator pornô que participa de seu primeiro filme em São Paulo; e Isabel, uma migrante mexicana que chegou a Ontário para trabalhar por dois meses. A partir destes personagens, explorou aspectos e dimensões que dizem respeito à multiplicidade e complexidade dos mercados sexuais contemporâneos.
Um primeiro aspecto a ser pontuado é que hoje, muito claramente, mercados locais também devem responder a demandas globais. Por outro lado, também é preciso preencher expectativas de consumidores e consumidoras muito heterogêneas. Assim sendo, a flexibilidade é uma condicionante crucial das regras que regem esse campo de atividade econômica. Um segundo aspecto diz respeito à intensificação ou aceleração da velocidade de produção: é a produção muito rápida de um filme pornô, a girlfriend experience por uma semana, a transa que vale um real por minuto etc.. Estas são situações que evocam os debates sobre a condensação do tempo nas sociedades pós-industriais e confirmam que os trabalhos são cada vez mais rotativos e as trabalhadoras e trabalhadores facilmente dispensáveis. Um último aspecto diz respeito às dinâmicas de circulação. As pessoas circulam em migrações sexuais, mas também em busca de outros trabalhos e as imagens circulam nos espaços virtuais que já são reais. Dito de outro modo, a sexualidade e os mercados do sexo estão definitiva e intrinsecamente associados a lógicas mais amplas e profundas que caracterizam o chamado capitalismo tardio.
O painel ainda teve um comentário complementar de Gabriela Leite, fazendo um apelo no sentido de que seria importante relativizar ou desconstruir o significado do termo riqueza. Tomando sua trajetória pessoal como referência, ela afirmou que:
“Eu não fiquei rica trabalhando como prostituta. Mas riqueza não é só dinheiro. Não ganhei dinheiro, mas fiquei rica de experiência, rica de conhecer mais de perto os homens, de admirar os homens, mas também ver as fragilidades dos homens perante a sua sexualidade, homens que me deram o grande prazer de conhecer um ‘outro’ sem preconceito”.
Por essa razão, segundo ela, embora seja necessário e importante analisar a prostituição como um setor da economia transnacional, continua sendo fundamental contestar o forte estigma que continua a pesar sobre a associação entre sexo e dinheiro. Gabriela sugeriu, portanto, que os debates sobre prostituição sejam pautados pela crítica a esse estigma, por uma agenda de direitos sexuais e pela premissa da liberdade.