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Painel 2 – Ciência e Política Sexual

Dia 24/8/09 – tarde

Participantes do Diálogo Latino-americano
Participantes do Diálogo Latino-americano

O painel da sessão 2 foi coordenado por Rogério Diniz Junqueira, pesquisador do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), no Brasil, e teve como comentadoras Tamara Adrian (Venezuela), vice-presidenta da International Lesbian, Gay, Transgender, Transsexual and Intersex Law Association (ILGLAW), e Berenice Bento, professora do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).

Juan Carlos Jorge, professor associado do Departamento de Anatomia e Neurobiologia da Escola de Medicina da Universidade de Porto Rico, trouxe uma reflexão sobre o corpus sexual que se constrói a partir das concepções e discursos da ciência sobre sexo que, constantemente, criam e recriam o binarismo sexual (macho e fêmea). Segundo Jorge, desde 1910, quando os cromossomos foram descobertos, essa lógica binária tem prevalecido como critérios para definir o sexo das pessoas. Ao longo do século XX, os estudos genéticos tem sido complementados pelo estudo dos tecidos das gônadas e pesquisas neurais acerca do funcionamento cerebral. Contudo, as descrições científicas irrevogavelmente binárias do Corpus sexual continuam prevalecendo. Muito embora várias linhas de pesquisas desenvolvidas em anos recentes demonstrem que os processos de diferenciação sexual são mais complexos e tardios do que sugerem as correntes científicas dominantes, esses estudos e achados não têm maior visibilidade, seja na academia, seja no debate público:

“…a embriologista portuguesa Clara Pinto-Correia afirma que: ‘A determinação sexual no caso dos mamíferos continua sendo um quebra-cabeça gigantesco e não resolvido’ (Pinto-Correia, 1997, p. 261). Os dados científicos disponíveis mesmo no interior do paradigma biomédico permitem hoje questionar a noção de que uma fêmea é apenas ausência daquilo que produz um macho e que o se tornar fêmea é um processo biológico passivo (Manolakau et al, 2006). Cabe assim perguntar se esse deslocamento ideológico não é exatamente o que explica por que esses achados moleculares, disponíveis há vinte anos, não são citados em nenhum livro texto de medicina ou da biologia molecular”.

Juan Carlos Jorge também chamou atenção para a dominância das instituições científicas e profissionais norte-americanas como produtoras de parâmetros e normas de determinação sexual – como é o caso da Associação Americana de Pediatria e da Associação Americana de Psiquiatria, cuja influência e poder raramente são contestados nos países do sul econômico.

Carlos Cáceres compartilhou reflexões sobre a Transformação no discurso sobre a epidemia de HIV como uma epidemia sexuada. Cáceres reconstruiu a trajetória histórica do HIV/AIDS, mostrando como esta alterou radicalmente os investimentos e prioridades das pesquisas em sexualidade. Fez uma retrospectiva de conferências, atores políticos e agências que tiveram um papel importante na construção de uma resposta global à epidemia. O texto, sobretudo, mapeia as tensões persistentes entre a lógica biomédica (tecnocientífica) e a perspectiva das ciências sociais que tem caracterizado os debates sobre a epidemia desde os anos 1980. Cáceres relembra que um fato definitivo nesse percurso foi a descoberta e ampla oferta de anti-retrovirais (ARVs). De um lado, os ARVs permitiram a contenção da epidemia, mas, de outro, significaram o renascimento das abordagens biomédicas como resposta privilegiada para a crise da AIDS. Hoje, essas tensões se manifestam de maneira muito evidente nos debates e propostas sobre políticas preventivas, ou mais especificamente na nova ênfase nos métodos de prevenção baseados em evidência, como a circuncisão e a profilaxia com ARV, no caso de grupos expostos à grande vulnerabilidade. Segundo Cáceres, o caminho para hegemonia das novas tecnologias biomédicas em prevenção já foi, perigosamente, aberto. Isso implica, entre outros desafios, em um esforço para “ressexualizar” os debates em curso sobre as respostas à epidemia.

Jane Russo, professora do IMS/UERJ e pesquisadora do CLAM, discorreu sobre O campo da sexologia e seus efeitos sobre a política sexual. Apresentou uma revisão histórica da criação e evolução da sexologia e mapeou tendências observadas na sexologia contemporânea. A cada etapa foram examinadas vinculações com a chamada política sexual. Russo observou que, mesmo nos momentos seminais da sexologia, no século 19, já podem ser identificadas ligações virtuosas entre sexologia e política sexual. Se, por um lado, os estudos de Kraft-Ebing focados nas “perversões” se situam, marcadamente, no terreno da biomedicina, em especial na psiquiatria, os esforços de Karl Ulrich e Magnus Hirshfeld, o inventor da homossexualidade, se desenvolveram no marco de uma agenda de “reforma sexual”. Tinham como objetivo deslocar a questão do campo criminal para o terreno da ciência médica para contestar a punição legal da sodomia na Alemanha.

A autora também lembrou que a primeira sexologia foi européia, sobretudo alemã, tendo sido varrida da cena política e científica após a ascensão do nazifascismo. Já a segunda onda sexológica teve como palco os Estados Unidos do pós II Guerra Mundial, o que implicaria em deslocamentos em termos dos métodos, enfoques e objetos de investigação. Se a primeira sexologia se dividia entre a “clínica” e a política de reforma sexual, focalizando sobretudo a variabilidade da conduta sexual, a sexologia norte-americana se volta para pesquisa da sexualidade do “homem normal” e privilegia os métodos quantitativos de investigação do comportamento sexual, que fizeram de Alfred Kinsey um ícone da pesquisa em sexualidade no século 20. Seus/as sucessores/as seriam o casal Master e Johnson, que “normalizariam” ainda mais a sexologia ao privilegiar os estudos, em laboratório, da resposta sexual dos casais heterossexuais. Quando tomamos a primeira sexologia como referência, essa trajetória norte-americana corresponde a um movimento de mainstreaming e despolitização. Mas deve-se lembrar que, nos anos 1970, o surgimento de uma nova onda de politização da sexualidade abriria novas frentes de contestação ao discurso biomédico, em particular a patologização da homossexualidade, que iriam necessariamente causar impacto no campo sexológico.

Finalmente, o texto examina as diferenciações e desdobramentos que caracterizam o cenário da sexologia contemporânea. Por exemplo, o surgimento e a rápida expansão da “medicina sexual”, a partir dos anos 1980, que a autora caracteriza como sendo uma terceira onda sexológica nascida

“ Como uma espécie de ramo da urologia, na esteira do sucesso dos medicamentos lançados para disfunção erétil. Inteiramente comprometida com a indústria farmacêutica, de algum modo aprofunda a característica básica da sexualidade moderna: sua autonomização em relação à reprodução e conseqüente ancoragem na busca do prazer. A ênfase na performance, no comportamento, já presente em Masters e Johnson, é levada às ultimas conseqüências, na medida em que os aspectos que poderíamos chamar de relacionais da atividade sexual estão ausentes” .

Essa “novidade” implica, sem dúvida, um recrudescimento da “medicalização do sexo”, que, entre outras coisas, reifica a centralidade do coito e a dominância da genitália masculina como referentes de saúde sexual e prazer. Mas a análise de Russo nos informa que, simultaneamente, um movimento de re-politização está em curso na velha sexologia. São ilustrações das dinâmicas e iniciativas em curso desde a segunda metade dos anos 1990, no âmbito da antiga Associação Mundial de Sexologia (WAS) e suas ramificações regionais. Por exemplo, a mudança de nome da organização para Associação Mundial de Saúde Sexual e a adoção, em 1999, da Declaração dos Direitos Sexuais, que se inspira nas agendas e propostas elaboradas pelos movimentos feministas e LGBT nos últimos trinta anos. A autora, portanto, faz um apelo no sentido de que reconheçamos que – nem no passado nem nos dias atuais – a sexologia pode ser descrita com um campo homogêneo e que, sobretudo, a despeito de tensões, sempre existiu circulação de idéias entre o campo sexológico e a “política sexual”.

:: COMENTÁRIOS ::

A primeira comentarista, Tamara Adrian, observou brevemente que, em matéria científica, todo o discurso oficial se estrutura na base da negação da diversidade sexual. Segundo ela, a literatura científica e as ordens de poder – legal, religioso, político, e social – visam restringir a liberdade do ser humano de viver plenamente sua sexualidade. Um traço forte da regulação é o enquadramento de corpos e pessoas no binarismo sexual que torna “absolutamente impossível transpassar as fronteiras”. Tamara, finalmente, ressaltou que hoje, na medida em que o binarismo sexual – cristalizado pela biologia e pela Bíblia – vai sendo contestado no mundo da vida, são feitos investimentos para que ele seja reificado pelos discursos científicos.

Berenice Bento, por sua vez, vinculou o debate da tarde à primeira sessão, lembrando que “fazer ciência” é sempre “fazer política”. Segundo ela, não é possível pensar sexualidade e geopolítica sem examinar a contribuição da biomedicina (e das ciências psi) na configuração da matriz heteronormativa que sustenta as lógicas do estado. Exatamente por essa razão, a prática dos/as cientistas, seja nas ciências biomédicas, seja nas ciências sociais, implica sempre em efeitos de natureza política.

Ao comentar o trabalho apresentado por Juan Carlos Jorge, Berenice enfatizou a importância de reconhecer que hoje o discurso científico se deslocou da estética das genitálias para tecidos, hormônios e processos cerebrais, tornando cada vez mais profundos os determinantes da identidade sexual. Ela ainda lembrou que, embora Jorge tenha analisado os efeitos da APA, existem outras associações científicas como o Instituto Harry Benjamin, de Amsterdã, que estão investindo pesadamente em pesquisas para demonstrar definitivamente a determinação biológica da transexualidade (no caso do Harry Benjamin, trata-se de investigações acerca da função do hipotálamo).

Com relação ao trabalho apresentado por Jane Russo, Berenice apreciou o enfoque adotado de pensar sexologia e ciência como mercado. E questionou se seria possível pensar a primeira onda da sexologia como uma etapa de produção discursiva de identidades sexuais (tal como definidas pela ciência) e a terceira onda como estando mais associada ao tratamento biomédico destas identidades. Além disso, chamou a atenção para as mudanças terminológicas no campo da sexologia – em especial a substituição de “impotência” por “disfunção erétil” –, um deslocamento que pode ser interpretado como estratégia para a linguagem médico-científica do jargão popular sexual, tornando-a assim cada vez mais secreta.

Nos comentários sobre a apresentação de Carlos Cáceres, Berenice perguntou como as políticas oficiais consideram as travestis, se as classifica como homens que fazem sexo com homens. Também observou que seria interessante se Cáceres aprofundasse a análise anunciada no paper sobre a tensão entre o conhecimento produzido pelas ciências sociais sobre prevenção em saúde e a perspectiva biomédica. A comentarista lembrou que várias pesquisas antropológicas nos dizem que travestis e trabalhadoras do sexo não usam camisinha, seja porque podem ganhar mais nos “programas”, seja porque sexo desprotegido compõe a cena do prazer sexual. Se o conhecimento disponível indica que a recusa da prevenção é um fato entre grupos específicos, caberia perguntar se as políticas oficiais de resposta ao HIV estão ou não tomando esses achados como referência.

> Leia o resumo da sessão 2



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